Agosto

Ler o Capital antes de nadar no Sena: impressões líbias – Número 27 – 08/2011 – [100]

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Diante da grossura dos Grundrisse, ela me falou considerar inaceitável a publicação daquilo que o autor não quis fazê-lo. Eu não soube o que dizer. Incapaz que sou de trair. Ou de me livrar dos despojos de qualquer delito. Meu corpo se adiantou. O dela foi depois. Sob uma mão apertada e um braço puxado. Abandonado o outro ao ar, eis que se fez puxadora de um volume à prateleira de Celan. Da recolha se nos encontramos com poemas por ele escritos sob segredo, encontrados depois de sua queda no Sena. Estava claro que o volume me era recomendado. Ela o fez. Aos poucos descobrimos que o livro tivera sido composto de versos encontrados em pastas etiquetadas. Amaldiçoei as moiras, pela ironia. Afinal, era claro que elas queriam me dizer que deve restar claro que além de não se respeitar os opulentos, a humilhação à vontade dos autores de livros belos e finos não deve ser diferente. Nas etiquetas estava escrito: [Não publicar depois de minha morte], [Não publicar depois de meu salto], [Não publicar em caso de vôo], [Não publicar sob a hipótese de fôlego anfíbio] e [Não publicar apenas por soluço]. Percebemos que o destino não respeita os dentes rangidos dos finos ou dos grossos. Sim, com a agudeza do canino rompi o plástico que guardava o livro da minha possibilidade de salto. Mas não sem antes perguntar à florista, por nós avistada: – se ela por acaso houvera lido o capital.

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Cesar Kiraly

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Erros de amigos – Número 26 – 08/2011 – [97-99]

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Há muito tempo descobri a sombra fresca que vem da amizade com quem já morreu. Coisas maravilhosas vêm dos autores mortos. A mais elementar (e acolhedora), creio, é que a morte lhes confere algo de distante e torna possível encontrar alguém que, embora humano, parece não partilhar da humanidade. Esta, que responde ao mesmo tempo pela aproximação e pelo invariável desgosto que toda amizade sempre promove, só é neutralizada pela morte. Continue Lendo

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A corrupção como poluição: uma reflexão sobre o caso brasileiro – Número 25 – 08/2011 – [93-96]

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Faxina. […] 6. Serviço de limpeza ou de condução de rancho nas casernas. 7. P. ext. Limpeza geral. 8. Fig. Estrago, destruição. 9. Fig. Desfalque.
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa

Certa vez disseram que corrupção era como poluição, e não foi nenhum ativista de causas ambientais. A metáfora é precisa. Frequentemente definida pelas enciclopédias escolares como a ação do homem no meio ambiente que altera a situação anterior, poluição é, então, alguma coisa fora do lugar adequado. Exemplo simples: carbono, ao entrar na atmosfera, torna o ar mais denso e contribui para o efeito estufa. O mesmo carbono, fixado em um jequitibá, por exemplo, não causa qualquer dano. Poluição é, portanto, uma substância que não está no seu devido lugar, devido à ação humana. Do mesmo modo, paixões e interesses, no universo político, fora de seu devido lugar se tornam agentes maléficos do Estado. Quando as diversas vontades dos diferentes segmentos da sociedade encontram espaço público para se manifestar, tudo fica em seu lugar. Em comum, existe a crença de que, em sua situação ideal, a natureza e a coisa pública possuem tudo em seus devidos lugares: o carbono fixado, as paixões e interesses institucionalizados. Continue Lendo

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Saramago, as letras e a opinião pública – Número 24 – 08/2011 – [90-92]

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Único escritor lusófono a receber um Prêmio Nobel de Literatura, Saramago foi um dos grandes nomes das letras portuguesas, mas sua celebridade esteve sempre envolta em polêmica. Jamais foi uma unanimidade, o que não é mau. Pois, uma vez que toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues, a falta dela representa uma vantagem do debate público português. A morte de Saramago, ocorrida há um ano, foi cercada de pompa, circunstância e polêmica; foi, nesse sentido, fiel a sua vida. Militante comunista, intelectual franco e crítico da sociedade portuguesa, ateu inveterado, Saramago acumulou pertenças controversas que justificam certos desentendimentos e a coleção de desafetos. Continue Lendo

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Por que o debate da reforma política ainda não começou? – Número 23 – 08/2011 – [87-89]

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A recente ascensão dos debates em torno da reforma política carece demasiadamente de explicações de fundo. Não raro se encontram desde jornalistas indignados até partidos políticos exaltando a premente necessidade da reforma. Entre um sem número de sistemas políticos consultados, listas de todos os matizes, distritos de tal ou qual arregimentação, financiamentos diversos não se chega ao tema propriamente. Não é difícil elaborar um sistema político que valorize os partidos, assim como também não o é que faça o mesmo para a representatividade, o verdadeiro desafio se constitui na convergência de ambos. Da mesma maneira ocorre com diversas outras categorias políticas, participação popular e voto facultativo, governabilidade ou pluralismo partidário são exemplos do quão difícil é convergir vontades distintas. Continuar Lendo

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A “chacina de Realengo” entre a normalização espetacularizada e o espetáculo normalizador – Número 22 – 08/2011 – [82-86]

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“O monstro é, paradoxalmente – apesar da posição-limite que ocupa, embora seja ao mesmo tempo o impossível e o proibido –, um princípio de inteligibilidade. No entanto, esse princípio de inteligibilidade é propriamente tautológico, pois é precisamente uma propriedade do monstro afirmar-se como monstro, explicar em si mesmo todos os desvios que podem derivar dele, mas ser em si mesmo ininteligível. Portanto, é essa inteligibilidade tautológica, esse princípio de explicação que só remete a si mesmo, que vamos encontrar bem no fundo das análises da anomalia” (Foucault, Michel. Os anormais. São Paulo: Ed. WMF, 2010, p.48).

Estudando as práticas de saber e de poder envolvidas nos costumes penais da França a partir de fins do século XVIII, o historiador e filósofo Michel Foucault classificou a associação entre o emergente saber psiquiátrico e o sistema jurídico pós-Revolução Francesa como um regime de “normalização”. Naquele contexto, tratar-se-ia, para Foucault, de um sofisticado arranjo entre saber científico e poder judiciário, a partir do qual se estabelecia uma linha demarcatória entre o normal e o patológico. Com tal arranjo, a defesa da sociedade contra certos “crimes bárbaros” se apoiaria na própria construção da categoria do monstro, do anormal, como algo em grande medida alheio ao social – um lado de fora da sociedade que, assim, atribuir-se-ia o trabalho de normalizar o desviante tal como uma civilização se dispõe a colonizar um povo bárbaro. Nesse sentido, o anormal, longe de ser pensado e tratado em sua relação intrínseca com o “normal”, seria visto como manifestação de algo monstruoso, e poderia apenas explicar a si mesmo. No circuito de inteligibilidade tautológica de que fala Foucault, o monstro é compreendido como um princípio de explicação, mas permanece, paradoxalmente, isolado e ininteligível – dele apenas se infere sua própria opacidade. Continuar Lendo

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A Internacional Digital – Número 21 – 08/2011 – [80-81]

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Deixo como isca para debates um trecho não publicado da entrevista que fiz com  Bernard Stiegler, filósofo francês. A versão editada está no Valor do dia 03 de Junho de 2011. Transcrevi o trecho que segue abaixo porque me parece que tem muito a ver com algumas coisas que tenho tentado escrever por aqui ultimamente. (Claro, pombas, como leitor dele, muito do que ele diz me influencia.) Mas ele se expressa, naturalmente, muito melhor do que eu.

Stiegler é um dos principais herdeiros de meu autor de predileção,  Gilbert Simondon. É também diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou (Paris), fundador da associação Ars Industrialis e professor em Compiègne, Londres (Goldsmiths), Cambridge e, a partir do segundo semestre, mais uma instituição superior francesa. Para saber mais sobre o sujeito, basta clicar nos links. Continue Lendo

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