Não há objetos mortos, duros, limitados. Tudo se difunde para além dos seus limites, permanece apenas um instante numa determinada forma, para deixá-la na primeira oportunidade. Nos costumes, nos modos de ser dessa realidade manifesta-se um certo princípio – o da pan-mascarada. A realidade reveste-se de certas formas apenas para fingir, para brincar, para se divertir. Alguém é um homem, alguém é uma barata, mas essa forma não atinge o essencial, é apenas um papel assumido por um momento, apenas uma epiderme, que logo será tirada.(…) A vida da substância consiste no gasto de inúmeras máscaras. Essa migração das formas é a essência da vida. (…)
Trechos da carta de Bruno Schulz a St. I. Witkiewicz de 1935. BN, 443
O Caderno
Em meio ao esfarelar das horas alguém revirava a estante. Mãos mergulhavam de cima à baixo traçando um movimento de inércia inconstante como quem retira as pedras de uma ruína há muito esquecida. Lá jaziam páginas e mais páginas da memória humana, letras submersas e destituídas de qualquer função prática; por isso permaneciam estáticas, ressequidas pela ferrugem e pelo mágico anelo das teias. Os dedos logo ficavam pretos de tanta tintura velha. Bastou um sopro para as imagens desembaraçarem seus grilhões, levantando as asas numa simplicidade muito nostálgica. Foi assim que, repentinamente, um caderno azul se materializou cor. O azul forte da capa com um estilo jovial, adquirido por inteiro desejo de sua mãe para as aulas escolares, fez com que nele se agitassem dias remotos quando apoiava o cotovelo na beira da mesa e se debruçava sobre aquela relva de folhas alvas, inoculando-as de letras e garranchos.