(A Jangada de Pedra, 1986)
Enquanto puxa para si Joana Carda, que se queixa de frio, José Anaiço tenta não adormecer, quer reflectir na sua ideia, se a história é realmente invisível, se os visíveis testemunhos da história lhe conferem visibilidade suficiente, se a visibilidade assim relativa da história não passará de uma mera cobertura, como as roupas que o homem invisível vestia, continuando invisível
(História do Cerco de Lisboa, 1989)
É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má foi ela, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como.
(Caim, 2009)
Quando a criança viesse ao mundo seria para toda a gente filho de noah, e se ao princípio não iriam faltar as mais justificadas suspeitas e murmurações, o tempo, esse grande igualador, se encarregaria de limar umas e outras, sem contar que os futuros historiadores tomariam a seu cuidado eliminar da crónica da cidade qualquer alusão a um certo pisador de barro chamado abel, ou caim, ou como diabo fosse seu nome, dúvida esta que, só por si, já seria considerada razão suficiente para o condenar ao esquecimento, em definitiva quarentena, assim supunham eles, no limbo daqueles sucessos que, para tranqüilidade das dinastias, não é conveniente arejar. Este nosso relato, embora não tendo nada de histórico, demonstra a que ponto estavam equivocados ou eram mal-intencionados os ditos historiadores, caim existiu mesmo, fez um filho à mulher de noah, e agora tem um problema para resolver, […] como já sabemos, a história oficial nem sequer irá dedicar uma linha.
Da introdução
A apresentação deste trabalho é uma provocação. Esta, entretanto, bem intencionada. Todas elas pertencem ao escritor português José Saramago, possivelmente um dos autores mais reconhecidos na literatura contemporânea, e estão contidas em livros que compõem sua obra, separados por um período de tempo aproximado de vinte anos. A distância temporal tem o objetivo de demonstrar o quanto questões relativas à história – em especial a dita científica – fazem parte do universo de preocupações de um romancista, tema que de modo geral não os apela tanto quanto reflexões mais abstratas, como a do próprio tempo.
Logo, a provocação atenta para um destinatário específico, que no caso são os historiadores. Seu uso, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, não tem por fim rechaçar uma disciplina como a história, mas recuperar a validade da cooperação entre áreas distintas para análise crítica de certas questões. Tais questões, no presente trabalho, serão o debate acerca da criação literária e da ideia de verdade histórica, com seus respectivos pontos de convergência e distanciamento. Se a pretensão é, pois, pesquisar sobre os limites entre história e literatura, fazê-lo pela obra de Saramago parece um caminho proveitoso. Não nos deixemos levar pela violência de suas palavras a perpetrar juízos prévios.
Todavia, a referida obra é demasiado extensa e, apesar de discutir como um todo assuntos caros aos historiadores, o que me faz discordar da divisão em fases que sua recente biografia estipula [1], será necessário propor um recorte analítico. Optar-se-á por utilizar História do Cerco de Lisboa, de 1989, a efeito de suscitar o debate acima referido. Como o disse Saramago em entrevista:
Digamos que não me satisfaz aquilo que os textos históricos me dizem; informam-me, esclarecem-me, evidentemente, porque é justamente para isso que a História se faz, que a História se escreve, mas a verdade é que me deixa sempre com essa sensação de falta, de ausência – falta aqui qualquer coisa – e digamos que com este romance [História do Cerco de Lisboa] e com o meu trabalho de ficção, é certamente por vezes como se eu quisesse, mas também às vezes e, talvez mais do que isso, é como se eu quisesse acrescentar, como se quisesse dizer: “atenção!, o que disseram está bem, mas falta qualquer coisa, que eu venho dizer”. (…) De resto, quando da conversa inicial entre o revisor e o autor, o revisor chega ao ponto de dizer que a própria história é literatura, digamos que no fundo é isso mesmo [2].
O livro escolhido traz, portanto, uma série de apontamentos polêmicos que envolvem o estatuto da própria disciplina história. Partir de um romancista tem o intuito de recuperar a interdisciplinaridade que a meu ver torna tão rica a pesquisa histórica. A crítica externa de outros campos do conhecimento, por sua vez, não raras vezes viu em resposta o isolamento da história para dentro de si, o que diminui o valor do debate e o oblitera.
Tendo em vista que este trabalho não pretende, como tantas vezes se fez, reforçar o antagonismo das ditas áreas da arte e da ciência, cabe, por fim, apresentar sua estrutura. Sabendo-se da profundidade do diálogo entre os campos alavancados, não entrarei em pormenores como o primeiro a propor tal relação ou quem o respondeu e/ou criticou e assim por diante. Levantar-se-á a temática da verdade histórica com base no enredo do romance citado de Saramago, apontando-se, quando necessário, dados do autor e da sua produção. A perspectiva teórica privilegiada será a linha seguida por Antonio Candido, referente à teoria literária, e Carlo Ginzburg, com relação à história. Também se contemplará autores da semiologia, da linguística e, evidentemente, dos estudos históricos. Como se verá.
Do cerco: o romance e a historiografia
A personagem principal chama-se Raimundo Silva e é revisor de uma editora em Lisboa. A história se inicia quando Raimundo recebe um livro de um historiador sobre a famosa empreitada do futuro rei de Portugal D. Afonso Henriques e seu exército, em 1147, sobre a cidade de Lisboa tomada há tempos pelos mouros. Para tal façanha, a nação que ainda não era contou com a ajuda de cavaleiros cruzados estrangeiros que se deslocavam rumo à Terra Santa. Descontente com o modo segundo o qual o historiador escreveu sua obra, o revisor, num gesto de revolta, acrescenta um “não” em uma frase que mudaria por completo seu sentido, lendo-se a partir de então que os cruzados “não” auxiliaram na conquista de Lisboa pelos cristãos. O enredo desenvolvido por Saramago desde então passa a operar consoante duas histórias paralelas, a do revisor, que teve que assumir as consequências de seu ato e de uma “nova história” da fundação de Portugal, na qual não se encontraria menção à grande colaboração dos cruzados a D. Afonso.
Ao longo da narrativa, o autor, com sua escrita característica que perfilha traços de oralidade, lança uma série de críticas ao modo pelo qual vislumbra a produção historiográfica. Conforme argumenta Felipe Matias e Gerson Roani, é possível identificar na personagem principal, Raimundo Silva, o próprio olhar de Saramago acerca desta produção e o afirmam por terem empreendido uma exaustiva pesquisa em diversas entrevistas dadas pelo escritor [3]. Então, a questão que se coloca é como trabalhar com o universo da literatura, seja o autor, seja o seu enredo, a fim de se intentar uma abordagem de proveito à história.
Antonio Candido apresenta um viés. Quando analisada uma obra, o que o historiador ou sociólogo denominariam enquanto elementos externos ao texto, os condicionamentos sociais, como a ideologia do autor e a sociabilidade a qual pertence, deve ser encarada junto aos aspectos formais do mesmo, a estética. Ou seja, o texto e o contexto em relação dialética. Deste modo, a ligação entre literatura e sociedade não se daria de forma mecânica, como se uma simplesmente refletisse a outra. No entanto, esta metodologia, que seria mais crítica do que sociológica, necessita de um esforço intelectual maior, pois a obra seria vista como um todo. Reconhecendo esta perspectiva mais completa, não raras vezes, o pesquisador de ciências humanas acaba por produzir um estudo da produção literária que beneficia determinadas partes, uma vez que seu objetivo pode ser a identificação de pontos específicos. Na visão de Candido, tal abordagem também é válida [4].
O autor adverte: “Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação causal” [5]. Perigo, uma vez que a representação literária do mundo passa pelo crivo da fantasia, não se pretende mera reprodução do real. A advertência do crítico demonstra a dificuldade para o historiador lidar com uma obra, afinal, construída de maneira dialética com a “realidade exterior”. Os estudos de linguística, por sua vez, tendem a se ater aos aspectos estruturais do texto. Trabalhos que se debruçaram sobre a História do Cerco de Lisboa neste campo, mesmo os interdisciplinares, valeram-se de um método voltado para a compreensão da construção narrativa e de seus elementos (tempo, espaço, ação) [6]. Quando inseriram a história no seu âmbito, são quase todos unânimes ao ratificarem a verve narrativa da disciplina, questionando sua cientificidade pela dificuldade – senão impossibilidade – de se encontrar um consenso com relação aos seus principais conceitos, como verdade e tempo [7].
Pelo lado da semiologia, o argentino Walter Mignolo, com clara influência foucaultiana, também se arriscou nesta discussão e, estabelecendo um histórico daquilo que se costuma entender por história e literatura, chegou à conclusão de que a diferença entre ambas se dá essencialmente por convenções. Sua ideia, de maneira geral, é que ao longo do tempo convencionou-se que à literatura caberia a linguagem da ficcionalidade e à história a da veracidade, sendo, portanto, fluidas as barreiras que as limitariam. Para localizá-las, o melhor modo seria a busca de suas comunidades, a literária e a historiográfica, por serem aquelas que enunciam as convenções e que definem ou o reforço ou a eliminação desses marcos discursivos [8]. A opinião de Saramago sobre esta esfera de classificações é expressa na seguinte passagem, em que conversam o historiador e o revisor:
O meu livro, recordo-lho eu, é de história, Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional dos géneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura, A história também [?], A história sobretudo, sem querer ofender [grifos meus] [9]
Observa-se que tudo indica espécie de consenso entre as áreas que estudam a linguagem e os signos sobre o que seria a historiografia – vista mais como uma colega de ofício do que como uma ciência stricto sensu. A aproximação, como já salientado, é em grande medida feita pelo fato da história não possuir um conceito-chave de verdade, termo que lhe é basilar. Entretanto, ainda que não mais sobre o chavão positivista da verdade absoluta e do fato incontroverso, continuamos a lidar com alguma perspectiva de veracidade, historiadores de diversos tempos e distintas escolas indicam a conexão [10]. Seríamos, assim, no dizer de Walter Benjamin, literatos e cientistas sociais, todos narradores, comprometidos com a perpetuação de certas sabedorias, de conselhos, através da prática narrativa? [11]
A proposta de Benjamin, mesmo que não diretamente, indica um caminho de proximidade entre as áreas em jogo, explicitando algo comum às duas: a escrita. Tanto em uma quanto em outra, materializamos nossa produção pela via da palavra escrita. Para além desta, Ginzburg insinua uma vinculação no que tange ao modo de ver o mundo, que define como prática de “estranhamento”. Em outras palavras, os romancistas e os historiadores, cada qual seguindo sua maneira de registro, teriam um “fim cognitivo”, que se resume no questionamento daquilo que é socialmente dado como o pronto e acabado. Para tal, “estranham” esse mundo e desenvolvem uma análise crítica, seja em romance, seja em um artigo acadêmico. Independente da voz narrativa se apresentar enquanto um ser místico ou um narrador de terceira pessoa, distante do seu objeto de estudo, ambos possuem um papel importante na desnaturalização das relações sociais. O autor reforça, contudo, que esta semelhança, por si só, não justifica uma destruição do limes entre ficção e história, como vários ensaios pós-modernos sugeririam [12].
A questão da escrita é fundamental no debate em torno da verdade histórica, pois, se por um lado, nós historiadores contemporâneos refutamos as máximas universais do positivismo, nossa escrita, desde o século XIX, não passou por grandes modificações. Raimundo Silva acrescenta um “não” ao texto do historiador porque o “Que o invadia e entorpecia, seriam os tempos verbais exactos” [13], enquanto que em termos práticos bastaria o jogo nada exato: “Fulano diz que Beltrano disse que de Cicrano ouviu, e com três autoridades dessas se faz uma história […]” [14]. O próprio Ginzburg corrobora esta necessidade de mudança, alegando que o historiador precisa aprender a lidar com as “possibilidades históricas”, posto que as verdades que chegamos são elas parciais e não se podem pôr à prova tal qual um experimento das ciências ditas exatas [15].
As observações de Saramago são interessantes no sentido de que sua intenção não é dinamitar a história – apesar de não reconhecê-la como ciência. Elas caminham em direção a uma crítica que, se lida com bons olhos, pode ser muito útil ao fazer historiográfico. Atenta a esta colaboração, Teresa Cristina Cerdeira da Silva chega a afirmar que o quadro esboçado pelo escritor português em sua obra como um todo, não é estranho ao quadro da chamada Nova História (francesa, na qual ela se especializou), sendo ele um “poeta/historiador”. Entre outros pontos, chama atenção da preocupação do literato em se superar o modelo de história nacional e institucional a fim de se pensar os próprios homens do povo, no seu caso, deixar de lado Portugal e olhar com mais ênfase os portugueses [16]. Também se poderiam mencionar as ressalvas acerca do uso de documentação de época, já que o escritor a usou para a confecção do livro [17]:
Porém, o mal das fontes, ainda que verazes de intenção, está na imprecisão dos dados, na propagação alucinada das notícias, agora nos referíamos a uma espécie de faculdade interna de germinação contraditória que opera no interior dos factos ou da versão que deles se oferece, propõe ou vende, e, decorrente desta como que multiplicação de esporos, dá-se a proliferação das próprias fontes segundas e terceiras, as que copiaram, as que fizeram mal, as que repetiram por ouvir dizer, as que alteraram, as que rectificaram, as que tanto lhes fazia, e também, as que se proclamaram única, eterna e insubstituível verdade, suspeitas, estas, acima de todas as outras [18].
Um historiador mais intransigente talvez dissesse que essas palavras, de outro modo, já foram ditas no seio da própria historiografia. E a afirmação seria mais do que contundente. Marc Bloch, no despontar do século XX, já expunha a questão do olhar sobre as fontes e o perigo de tomá-las enquanto representação direta de uma realidade objetiva, sem se considerar a intervenção de intermediários e mesmo da subjetividade humana. Uma das excepcionalidades do trabalho do historiador residiria no cuidado com a documentação, tendo em vista todas estas supostas barreiras para o conhecimento do passado [19]. Contudo, a partir do momento que a crítica vem de extramuros, é curioso como seu apelo na disciplina a ser revisitada ganha força. A título de exemplo, nas últimas décadas do século passado, com a poderosa influência no meio acadêmico das novas abordagens da linguística, a história recebeu uma série de críticas que, em realidade, soaram como verdadeiras condenações. Em resposta, muitos historiadores, para além de seus trabalhos empíricos, passaram a escrever sobre sua própria profissão, absorvendo as críticas e se inserindo no debate [20].
Um dos representantes deste momento, pela teoria literária, foi Hayden White. O autor resume a história à retórica, e o faz pela tônica discutida no presente trabalho, a problemática da verdade. Argumenta que, para alcançá-la, seria preciso uma linguagem de literalidade que não vê na historiografia, havendo por outro lado uma série de “narrativas que competem” pela versão dos fatos [21]. Dentre aqueles que o responderam está uma das referências já expostas, Carlo Ginzburg. O historiador demonstra que White – e a crítica poderia se estender a outros autores – não consegue lidar com a ideia de que a “memória e a destruição da memória são elementos recorrentes na história” e que esta nunca está totalmente despregada de uma base material que pode ser analisada pelo testemunho [22]. A questão levantada por Ginzburg encontra eco na epígrafe de Saramago a sua História do Cerco de Lisboa: “Enquanto não alcançares a verdade não poderás corrigi-la. Porém, se não a corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes”.
Recuperar a escrita saramaguiana neste ponto é relevante porque os apontamentos do literato não se inserem propriamente no âmbito da pós-modernidade [23]. O escritor se proclama marxista e enfatiza suas bases racionalistas, classificações de peso que não o colocam a par com Hayden White. O marxismo declarado em sua vida pessoal (em 1969, filiara-se ao PCP), também o era em seus anos de jornalista (contra o regime salazarista) [24] e, como não poderia deixar de ser, em sua vida literária. Nesta, por outro lado, não surgiu sob a capa da militância. É possível identificar tal marxismo através da construção dos seus narradores e, ainda que suas personagens usufruam de uma personalidade muito bem trabalhada, na relação destas com a paisagem (que pode ser lida não apenas como a geográfica, mas também o contexto social ou as próprias circunstâncias) [25]. Esta linha, no entanto, não foi a aqui privilegiada. Mesmo o marxismo de Saramago mereceria um trabalho em separado. As informações são importantes na medida em que cooperam para a demonstração da validade da sua obra para os historiadores refletirem sobre sua produção e agência.
Em parte, muita da agressividade do estilo saramaguiano pode parecer absurda ao historiador contemporâneo, uma vez que a história a qual ataca, a chamada “oficial”, não é homogênea e segmentos dela não mereceriam tão forte advertência. Ao mesmo tempo, podemos explicá-la pelas palavras de Adam Schaff, já que nós historiadores:
ou tentamos mergulhar neste mar de erudição e expomos o nosso saber perante um largo público, o que contribui para o decoro do sábio mas não acrescenta nada ao problema em si, a não ser deselegância na exposição e aborrecimento; ou ignoramos as regras do cerimonial sábio e dizemos simplesmente o que temos para dizer sobre um assunto determinado. [26]
Por optar pelo primeiro caminho, Schaff talvez não atribua tanto valor ao segundo. De qualquer forma, a citação ganha destaque por tornar latente que muitos dos assuntos discutidos na academia se restringem a ela, fazendo com que outras áreas (e o onipresente senso comum) mantenham uma ideia de história que fira os ouvidos do historiador profissional de hoje, a princípio não tão aberto a discutir categorias como a de verdade. Sob este prisma, a referida agressividade faz todo o sentido e nos induz a melhor pensar os efeitos da produção historiográfica.
A problemática é complexa e não se esgota tão facilmente. A este trabalho, entretanto, cabe um desfecho.
Da conclusão
Em instância alguma foi circunscrita a palavra verdade num sentido único. Isto se deu pelo fato de perfilhar com Schaff a ideia que existe por trás do vocábulo. A verdade não se configura para a história enquanto um elemento de universalidade, como dito em dado momento, ela é parcial ou, nas palavras do citado historiador, um “processo”. Logo, se vista em relação processual, é dinâmica, o que a torna ainda mais desafiadora para a análise histórica. Esta, por sua vez, não deve ver-se diminuída frente à ficção, nem confundida com a mesma. Para o historiador, a dificuldade de uma explanação teórica está muitas vezes na distância que criamos para com a filosofia [27].
O limite entre história e ficção não é, pois, rígido, ambas dividem semelhanças e diferenças, como apresentado ao longo do texto. Em que pese a exposição maior das semelhanças, optou-se para esta conclusão promover uma diferença das mais fundamentais. Se tanto uma quanto outra se permitem certas “invenções”, a história, vale frisar, não inventa por inventar – o que seria um completo absurdo – e, se incerto ou não, ainda apela a tão falada verdade, se balizando em um criterioso estudo dos testemunhos passados [28]. A ficção, mais livre de normas, pode colocar-se métodos ou objetivos próximos dos estudos históricos, não sendo, todavia, uma prática obrigatória do fazer artístico. Candido lembra a conexão “arbitrária e deformante da literatura para com a realidade, mesmo quando quer retratá-la” [29].
A obra de Saramago, em especial sua História do Cerco de Lisboa, se situa no plano da produção literária como um caminho de pensar questões relativas à disciplina história, sem nela se inserir diretamente. Dentre todas as suas considerações, a que mais ressoa é aquela relativa à escrita da história, pois enquadraria o historiador, no dizer do romancista, numa “categoria humana que mais se aproxima da divindade no modo de olhar” [30]; e o apelo tem seu valor. Não seriam algumas críticas que sofremos, em parte, resultado do modo segundo o qual escrevemos? Com o que diz respeito à noção de veracidade, a pergunta não é das mais inocentes e a resposta tende a ser afirmativa, como os artigos de Ginzburg utilizados também sugerem.
Por isso, este trabalho teve um objetivo outro ao da discussão de termos e limites entre campos do saber, que foi recuperar a vitalidade da interdisciplinaridade por intermédio do diálogo entre história e literatura. Assim, foi indispensável, para a pesquisa não se tornar demasiadamente tendenciosa, que autores de diversas disciplinas fossem alavancados. Conforme registrado na introdução, não sendo o questionamento da cientificidade da história o cerne da questão, partir de José Saramago foi uma escolha metodológica, acima de tudo, voltada para a realização de uma análise crítica de uma área do conhecimento que, em hipótese alguma, deve perder-se em si mesma, em cerco.
***
Mateus Bertolino
[1] LOPES, João Marques. Saramago – Biografia. São Paulo: Leya, 2010. O autor elenca a década de 1980 como a fase dos “romances históricos” da obra saramaguiana, minimizando, de certa maneira, a constância com que a temática da história aprece em seus romances em momentos ulteriores; destaque para pp. 89-113.
[2] SARAMAGO, José apud MATIAS, Felipe dos Santos & ROANI, Gerson Luiz. História do Cerco de Lisboa: as fontes medievais de José Saramago e a transfiguração literária da história; p. 5. Disponível em: http://intranet.ufsj.edu.br/rep_sysweb/File/vertentes/Vertentes_32/felipe_e_gerson.pdf (Consultado em 9 de dezembro de 2010)
[3] MATIAS, Felipe dos Santos & ROANI, Gerson Luiz. Op. Cit., pp. 4-9.
[4] CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000, pp. 4-7.
[5] Idem, p. 13.
[6] SIECZKOWSKI, Luís Flávio. O Cerco de Lisboa: História e Ficção. Rio de Janeiro: UERJ/ Publicações Dialogarts, 1998, pp. 9-14.
[7] Idem, pp. 30-31; e SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a História e a Ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. Esta última expõe: “Para continuar a ser o discurso da verdade, a pesquisa histórica tem que limitar os seus anseios e assumir o fracasso do sonho cientificista da plenitude do conhecimento”; p. 25.
[8] MIGNOLO, Walter. “Lógica das diferenças e política das semelhanças da literatura que parece história ou antropologia, e vice-versa”. In: CHIAPPINI, Ligia & AGUIAR, Flávio Wolf (orgs.). Literatura e História na América Latina. São Paulo: EdUSP, 1993, pp. 123-134.
[9] SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. Rio de Janeiro: O Globo, 2003 (1989), p. 12.
[10] A citar como exemplos distantes no tempo e na metodologia: COLLINGWOOD, R. G. A Ideia de História. Portugal: Editorial Presença, 1981 (ver pp. 294-295); e GINZBURG, Carlo. “Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez”. In: GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (ver pp. 60-63).
[11] BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 200-211.
[12] GINZBURG, Carlo. “Estranhamento: pré-história de um procedimento literário”. In: GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 39-41.
[13] SARAMAGO, José. História do Cerco…, p. 43.
[14] Idem, p. 39.
[15] GINZBURG, Carlo. “Provas e possibilidades”. In: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 311-319.
[16] SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. Op. Cit., p. 28.
[17] Foram elas as fontes principais: “Conquista de Lisboa aos mouros. Carta de um cruzado inglês”, do cavaleiro Osberno, e “A conquista de Santarém”, de D. Afonso Henriques. Ver MATIAS, Felipe dos Santos & ROANI, Gerson Luiz. Op. Cit., p. 2.
[18] SARAMAGO, José. História do Cerco…, p. 112.
[19] BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa América, 1963, pp. 47-72.
[20] Uma análise interessante deste período e dentro da perspectiva marxista está em: CARDOSO, Ciro Flamarion. “Epistemologia pós-moderna, texto e conhecimento: a visão de um historiador”. In: Diálogos – Revista do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, v.3, n.3, 1999, pp. 1-29.
[21] WHITE, Hayden. “Enredo e verdade na escrita da história”. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
[22] GINZBURG, Carlo. “Unus testis – O extermínio dos judeus e o princípio de realidade”. In: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros…, pp. 227-230.
[23] LOPES, João Marques. Op. Cit., pp. 139-149. A influência, todavia, é flagrante ao longo dos anos de 1990, após a guerra fria, com as alusões de Saramago a um mundo cada vez menos racional.
[24] Idem, pp. 69-87.
[25] BRANDÃO, Vanessa Cardozo. Viagens da literatura: construção do sujeito e do texto na visão de José Saramago. Tese de doutorado apresentada na Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2010, pp. 162.
[26] SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 72.
[27] Idem, pp. 91-96. Vale o adendo que, diferente do autor, não acredito que este “processo” tenha por fim uma verdade última.
[28] GINZBURG, Carlo. “Provas e possibilidades”. In: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros…, pp. 333-335.
[29] CANDIDO, Antonio. Op. Cit., p. 12.
[30] SARAMAGO, José. História do Cerco…, p. 164.