Belchior ou o elogio dos comuns – Número 118 – 02/2014 – [19-23]

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Certos comportamentos coletivos são sintomas das tensões entre algumas virtudes e misérias da vida moderna no ocidente. A celeuma em torno do “sumiço” do cantor Belchior é um bom caso para pensarmos sobre essa questão. O lugar que a vida do homem e da mulher comuns ocupa na cultura ocidental é o ponto em discussão.

Melchior, Gaspar e Baltazar[1] talvez tenham sido os primeiros a prestar homenagens ao homem comum pelas bandas do ocidente. Os três reis atravessaram distâncias atrás da estrela que dava no lugar simples do nascimento do filho do carpinteiro. O Rei dos Judeus não era rei, nem filho de rei. A visitação dos reis magos se vincula à teologia do Verbo Encarnado e a unio mystica entre o Deus católico e os homens como germes das noções fundadoras de humanidade e indivíduo.[2] Os leitores de romances, precedidos pelas premissas do direito natural, inauguram um tipo de sensibilidade pública que, através da empatia, define a dignidade como um atributo universal e autoevidente da humanidade.[3] É no seio desta tradição que o indivíduo e a dignidade humana, abstrações do homem comum (nem rei, nem nobre), emergiram como valores essenciais às ideologias modernas em diversas vertentes.[4] Essa é das invenções políticas mais originais e belas: o valor autoevidente da humanidade, sua dignidade que se opõe à fragilidade e brutalidade de nossa condição, um tipo de existência que tem como prerrogativa a negação de seus limites exteriores. Esse repertório de valores está no cerne das concepções de justiça que atualizaram a noção de equidade como igualdade: não só a cada um o quê lhe cabe, mas também a concepção de que a todos cabe o mínimo necessário à dignidade.

A miséria dessa invenção, entretanto, reside no lugar público que a pulsão por distinção possui em contextos específicos e como ela mobiliza elementos simbólicos que negam o homem comum. Virtude e celebridade, então, se confundem. Em uma sociedade hierárquica e desigual como a brasileira, na qual o esforço das elites, seja das aristocracias rurais seja dos bacharéis burocratas urbanos, sempre foi se afastar e distinguir da patuleia, o discurso da celebridade se hipertrofia. Os veículos de comunicação administrados por um número restrito de famílias herdeiras de nossas práticas cartoriais são o templo do culto à celebridade. Este tipo social possui grande abrangência no contexto brasileiro contemporâneo e um modus operandis que procura ser englobante dos demais tipos. Sobrepondo-se a diversas esferas de justiça[5] a celebridade se propaga como o lugar legitimador de discursos e carreiras das mais variadas ordens: consolida-se como o lugar monopolizador das competências: o bom músico, o bom ator, o bom escritor, o bom médico, o bom político são pressionados a vestirem a carapuça da celebridade, ou sua versão eufemística da “figura pública”. A celebridade, aquele que é ouvido, que tem a palavra, a competência, é a negação de todos os demais, mudos e imersos na multidão.

O Belchior que é objeto deste curto ensaio não tem somente o nome semelhante ao de Melchior visitador do menino Jesus; mas está mais para filho do carpinteiro do que para rei mago: é um apologeta e sujeito da ideologia do homem comum. O cantor, trágica e ironicamente, foi alvo recente do assédio da cultura da celebridade. Enfiado a contragosto nos trajes da celebridade, por ser um cantor e compositor brasileiro “famoso”, teve sua vida privada e as agruras típicas dessa esfera devassadas em praça pública. No final do ano de 2013, correram na imprensa as notícias sobre o fato de que Belchior estaria com dívidas e problemas na justiça e que, por isso, teria saído do país e passado a viver a custa da “solidariedade de seus fãs”. Em 2009, o cantor já tinha sido “perseguido” pelos meios de comunicação. O Fantástico, programa televisivo dominical da Rede Globo, exibiu uma reportagem especial na qual a jornalista Sônia Bridi percorre o interior do Uruguai atrás de Belchior para investigar o fato de ele ter “sumido”. A repórter narra a sua “saga” de uma semana atrás dos rastros do compositor até que encontra a pousada na qual ele estaria hospedado havia alguns meses. Ela relata que finalmente o havia encontrado depois de muitos “emails, telefonemas e pistas falsas”. À porta do quarto de Belchior, Sônia Bridi chama por ele. Sem resposta, insiste. Bate na porta. Diz pela janela que quer falar com ele, que veio “de tão longe”, que havia “tanta gente [o] procurando lá no Brasil”. A mulher do cantor, depois de algumas horas sitiada pela jornalista, sai para “negociar”. Anoitece e Belchior “finalmente” sai para uma entrevista arrancada a vácuo extrator. Começa, então, a sessão de perguntas sobre os problemas pessoais do compositor: suas dívidas, as razões de seu “sumiço”, um carro de sua propriedade que teria sido abandonado em um estacionamento e uma súplica para que ele volte. Não é preciso dizer o quanto a situação toda é constrangedora.[6] Ao longo da entrevista são exibidos trechos dos videoclipes gravados por Belchior para o Fantástico. Ao fim da reportagem, os apresentadores do programa exclamam: “Finalmente encontramos o Belchior!”. Com a satisfação de quem tivesse restituído um bem perdido ao seu dono.

Por qual razão Belchior não pode “sumir”? O que impede que ele, diante de suas crises pessoais, saía de cena? Os videoclipes para o Fantástico dão saldo para qual fatura que foi cobrada com a invasão de sua privacidade? Por que o cantor não pode ser “o rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”?

O caso, para além do grotesco e do anedótico, é exemplar do caráter degradante da cultura da celebridade. O cantor de sucesso tem que ser também a celebridade; e as celebridades são como a bailarina da ciranda composta por Chico Buarque: não têm remela, nem bigode de groselha, nem problema na família, não têm calcinha um pouco velha, nem pereba, nem ameba, nem lombriga, nem pentelho. A celebridade deve morrer de cara na areia da praia como o Aschenbach do livro de Thomas Mann, maquiada e com a tintura dos cabelos a derreter pelas costeletas. Isto porque a celebridade é a negação do homem e da mulher comuns; ela é, na prática, a negação das vidas, das casas, dos corpos da maior parcela da população; ela precisa de uma sociedade de miseráveis como espelho de sua excelência. A celebridade traz a distinção para o centro do universo simbólico e moral da vida social. Ela opera a corrosão de um valor fundador das sociedades democráticas: a dignidade do homem e da mulher comuns. Para que as sociedades democráticas sobrevivam, a distinção, a pulsão narcísica, a vaidade devem ser vícios privados e a modéstia uma virtude pública.

Quase que profeticamente o próprio Belchior já havia gravado em disco uma resposta aos seus perseguidores, à polícia da celebridade, em diversas canções do álbum “Era uma vez um homem e seu tempo”, de 1979. Temas como “Retórica sentimental”, “Pequeno perfil de um cidadão comum”, “Comentário a respeito de John”, “Conheço o meu lugar”, “Tudo outra vez”, “Voz da América” e “Espacial”, ouvidos sobre o pano de fundo do cerco sofrido no Uruguai, são uma refutação quase que literal dos questionamentos que lhe foram dirigidos na entrevista a fórceps. As canções têm foco na vida do homem comum como eu lírico:

Era um cidadão comum como esses que se vê na rua
Falava de negócios, ria, via show de mulher nua
Vivia o dia e não o sol, a noite e não a lua
Acordava sempre cedo (era um passarinho urbano)
Embarcava no metrô, o nosso metropolitano…
Era um homem de bons modos:
“Com licença; – Foi engano”
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que caminha para a morte pensando em vencer na vida
Era feito aquela gente honesta, boa e comovida
Que tem no fim da tarde a sensação
Da missão cumprida
Acreditava em Deus e em outras coisas invisíveis
Dizia sempre sim aos seus senhores infalíveis
Pois é; tendo dinheiro não há coisas impossíveis
Mas o anjo do Senhor (de quem nos fala o Livro Santo)
Desceu do céu pra uma cerveja, junto dele, no seu canto
E a morte o carregou, feito um pacote, no seu manto
Que a terra lhe seja leve

(Belchior, “Pequeno perfil de um cidadão comum”. Música composta em parceria com Toquinho)

O disco resulta na apologia de um universo simbólico e lírico que se antagoniza com a cultura da celebridade. Ele contém, ainda, um “passa fora” avant la lettre para a intrometida repórter que bateu à porta de seu quarto de hotel:

Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o sol
Por que bate lá meu coração

Sonho e escrevo em letras grandes (de novo)
Pelos muros do país
João, o tempo andou mexendo com a gente sim
John, eu não esqueço (oh no, oh no)
A felicidade é uma arma quente, quente, quente

Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o sol
Por que bate lá meu coração

Sob a luz do teu cigarro na cama
Teu rosto-rouge, teu batom me diz:
João, o tempo andou mexendo com a gente sim
John, eu não esqueço (oh no, oh no)
A felicidade é uma arma quente, quente, quente

(Belchior, “Comentário a respeito de John”)

***
André Rodrigues

[1] Mateus, caps. 1 e 2.

[2] Sobre a unio mystica e o Verbo Encarnado, ver PÉCORA, A. (2008), Teatro do Sacramento. Campinas, Editora Unicamp; São Paulo, EdUSP.

[3] Ver HUNT, Lynn. (2009), A Invenção dos Direitos Humanos: Uma História. São Paulo, Companhia das Letras. Sobre o modo pelo qual a teologia católica trava um debate que se vincula às noções, primeiro de direito subjetivo e, depois, de direito natural, ver EISENBERG, José. (2000), As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno: Encontros Culturais, Aventuras Teóricas. Belo Horizonte, Ed. UFMG..

[4] Trabalhos que investigam os fundamentos da ideologia moderna, como os de Charles Taylor e Marshal Sahlins apresentam de modo mais consistente o modo pelo qual o cristianismo é uma das fontes do pensamento político ocidental moderno. (ver TAYLOR, C. (2007), A Secular Age. Cambridge; Massachusetts; London, Harvard University Press; TAYLOR, C. (1997), As Fontes de Self. São Paulo, Edições Loyola; e SAHLINS, M. (2007), “A Tristeza da Doçura, ou a Antropologia Nativa da Cosmologia Ocidental”, in Cultura na Prática. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.).

[5] WALZER, Michael. (2003), Esferas de Justiça. São Paulo, Martins Fontes.

[6] A entrevista pode ser vista na íntegra no link: http://www.youtube.com/watch?v=QdqIngMqwqk.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.