Notas sobre a revisão do Código Florestal e a questão agrária – Número 61 – 05/2012 – [130-141]

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Não se pode compreender a recente e intrincada discussão em torno da revisão do Código Florestal brasileiro sem uma informação, ainda que sucinta, sobre a trajetória do desenvolvimento da agricultura no país.  O ponto chave para a compreensão deste processo histórico é a política empreendida pelo regime militar, que no final dos anos 1960 suprimiu as possibilidades de articulação entre o reformismo agrário e a democratização do país e agiu seletivamente em torno de políticas de capitalização da grande propriedade rural e da ocupação das terras de “fronteira”. Esta verdadeira “empresa política” dos militares possibilitou, por meio de farta oferta de crédito subsidiado, a conversão de boa parte do antigo latifúndio em empresas capitalistas no campo integradas aos circuitos de acumulação agroindustriais. De patinho feio nos projetos de industrialização, a agricultura alcançaria destaque, recebendo novos estímulos durante as crises de balanço de pagamentos nas décadas de 1980 e 1990, com o objetivo de retomar seu “drive exportador”. Decisivo no resultado alcançado foi também o papel desempenhado pela Embrapa, empresa pública de pesquisa voltada à agricultura que desenvolveu o conhecimento e as técnicas necessárias ao cultivo nas regiões do Cerrado, expandindo a “fronteira” agrícola.

A narrativa desta experiência permanece controversa e disputada. Se a bibliografia nas ciências sociais consolidou a interpretação de uma “modernização conservadora”, o esforço recente de articulação de um projeto político em torno da insígnia “agronegócio”, tem ofuscado o papel das políticas públicas, isto é, da ação do estado na condução da modernização e enfatizado o “empreendedorismo” dos agora empresários do agronegócio. Outro ponto importante de controvérsia, na esfera pública e nos trabalhos científicos, diz respeito às possibilidades da reforma agrária em tempos de agronegócio.

No curso deste processo, a posição das elites agrárias mudou substancialmente. No final do período nacional – desenvolvimentista, os agrários haviam sido deslocados para uma posição secundária no jogo político. Mesmo durante o regime militar, ainda que algumas de suas lideranças civis fossem oriundas de excelsos latifúndios, o proscênio foi ocupado pela articulação entre empresários industriais e as burocracias do estado, sobretudo a militar. O projeto era claramente voltado para o desenvolvimento industrial e a agricultura desempenhava “funções” secundárias[1]. Em certo sentido foi com a crise do nacional – desenvolvimentismo que as posições das elites agrárias se alteraram, especialmente no terreno da economia, e relativamente, também no da política.

A rigor, a própria composição destas elites agrárias se alterou com a “modernização”, sobretudo com a integração da agricultura aos processos agroindustriais. Há boas razões para considerá-la um grupo mais heterogêneo, com características econômicas e sociais distintas e com interesses também fragmentados em cadeias produtivas diversas. Indicador disto são as  alterações por que passou a representação dos interesses agrícolas entre os anos 1980 e 1990. As antigas organizações de representação unitária, como a Sociedade Rural Brasileira e mesmo a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), perderam espaço para outras formas de representação, agora vinculadas a cadeias produtivas específicas e ao cooperativismo[2]. A formação da Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG), que recebe em seus quadros não só empresários estritamente rurais, mas também representantes de bancos e indústrias, pode ser reveladora de uma malha de interesses mais complexa que articula campo e cidade em torno de um conjunto de valores e projetos comuns, ainda que não homogêneos, nem certamente politicamente unificados. O destaque conquistado pela ABAG vem sendo apenas recentemente ofuscado, em grande medida devido ao protagonismo político desempenhado pela senadora Kátia Abreu, também presidente da CNA.

A reorganização das associações de representação dos agrários é apenas parte da complexa representação política. Papel determinante aí foi desempenhado pela assim chamada “bancada ruralista” na Câmara dos Deputados. A trajetória da bancada foi mapeada em estudo realizado pelo INESC (2007) que aponta a evolução da representação de cerca de 20 deputados nas duas primeiras legislaturas da redemocratização (1986/1990 e 1990/1994) para 117 na legislatura seguinte, patamar que com variações (às vezes fortes) vem se mantendo. O Congresso vem sendo o palco decisivo da negociação dos novos interesses das elites agrárias. A “bancada ruralista” priorizou desde meados dos anos 1990 a negociação da dívida rural, oriunda do não pagamento dos créditos recebidos no Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). A estratégia revelou uma forte capacidade de adaptação ao funcionamento do assim chamado “presidencialismo de coalizão” no Congresso Nacional, com a barganha do apoio político às diversas e heterogêneas coalizões governamentais em troca da permanente renegociação dos débitos em condições pra lá de vantajosas[3].

No terreno da economia a posição das elites agrárias se fortaleceu com o avanço do processo de liberalização da economia brasileira e sua integração ao mercado mundial, especialmente após a crise cambial de 1998, que levou o governo de FHC a oferecer um novo pacote de incentivos ao setor com vistas à retomada do “drive exportador”. A exportação foi beneficiada pelo incremento dos preços das commodities agrícolas, sobretudo a soja, no mercado mundial e pelo aquecimento da demanda em função das importações chinesas. Os saldos obtidos no comércio exterior pela agropecuária tornaram-se no período uma variável estratégica para a gestão da política macroeconômica do país, especialmente com a perda de competitividade dos setores industriais.

O resultado econômico do agronegócio favoreceu a reconstrução da narrativa das elites agrárias em torno da modernização do setor e forneceu justificativa na esfera pública para as políticas voltadas à sua reprodução. Sua agenda no Congresso se ampliou para outros temas além da renegociação da dívida, e sua força no legislativo se tornou um ativo para a ocupação de postos chave no Executivo, especialmente no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. É possível observar na atuação legislativa um certo padrão que combina resistência e ativismo. A bancada atua defensivamente, isto é na resistência a agendas tais como a revisão do índice de produtividade rural para efeito de reforma agrária, punições mais rigorosas ao trabalho escravo (PEC do Trabalho Escravo), demarcação de terras indígenas. Em todos eles, o que se ressalta é a autonomia da propriedade privada frente à expansão da regulação pública ou da aplicação do conceito constitucional de função social da propriedade. O ativismo aparece nas tentativas de revisão da legislação ambiental, na liberalização da compra de terras por estrangeiros, liberação de sementes transgênicas.

É neste sentido que se pode compreender a iniciativa de revisão do Código Florestal, em vigor desde 1965 e modificado por Medida Provisória em 2001, regulando a ocupação do território com finalidade de preservação de áreas estratégicas para o controle ambiental. Em torno do debate há uma disputa feroz de narrativas, sobretudo as constituídas pelos dois atores de maior destaque na esfera pública, de um lado a “bancada ruralista” e as entidades representativas do “agronegócio”, de outro o “movimento ambientalista”. O dilema se apresentaria como uma contradição entre a necessidade de cautela na ocupação territorial frente ao risco sempre presente de degradação irreversível do meio ambiente e as possibilidades de adequação da agricultura aos limites estabelecidos pela legislação, que não vem sendo cumprida por quase todos os estabelecimentos agropecuários.

A defesa da legislação prevista no Código Florestal foi realizada por um conjunto diverso de organizações, o “movimento ambientalista”[4] e parte das organizações de camponeses e trabalhadores ruais, como MST, Via Campesina, Movimento dos Atingidos por Barragens. Mesmo reconhecendo que o Código continha imperfeições propunham em geral uma regulamentação que consolidasse e ampliasse a proteção ambiental, admitindo a implementação de políticas públicas que oferecessem alternativas de recuperação de áreas em pequenas propriedades e/ou pagamento de serviços ambientais prestados pelos produtores. Também a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) defendeu que a revisão da legislação respondesse à necessidade de “medidas urgentes dos tomadores de decisão para reverter o estágio atual de degradação ambiental”, pautada no princípio de que “o uso adequado da terra é o primeiro passo para a preservação e conservação dos recursos naturais e para a sustentabilidade da agricultura”[5].

Os sindicatos representativos de trabalhadores rurais se dividiram e oscilaram durante o  processo de negociação e votação da nova lei. A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) participou das negociações em torno do primeiro relatório elaborado pelo deputado Aldo Rebelo, defendeu proposições próprias, mas ao fim e ao cabo terminou por criticar a versão final aprovada na Câmara em abril de 2012. Nem todas as Federações Estaduais de sindicatos acompanharam a posição da CONTAG, tendo por exemplo a FETAG – RS elogiado o texto. Já a representação da agricultura familiar no âmbito da CUT, a FETRAF, esteve mais próxima às posições do movimento ambientalista.

A narrativa elaborada pela representação dos grandes proprietários tentou o tempo todo agrupar os interesses dos pequenos e dos grandes, formando uma frente única da agropecuária. Mas esta solidarização era concebida por cima, sem que de fato fossem levadas em conta as proposições dos representantes da agricultura familiar. Emblemática foi a resistência ao tratamento diferenciado às pequenas propriedades de acordo com o conceito de agricultura familiar (estabelecido em legislação específica, a Lei no. 11.326/2006). As referências à pequena propriedade serviam mais às pretensões de universalização dos interesses dos grandes produtores agrícolas do que às reivindicações da própria representação do setor, fortalecendo o apelo público em torno da revisão das regras, mas reproduzindo a assimetria existente entre as duas formas de agricultura. Esta operação assemelha-se mais a cooptação do que  hegemonia, para utilizar a terminologia consagrada de Antonio Gramsci. A construção de um bloco hegemônico exigiria a incorporação efetiva dos interesses das classes subalternas do campo nas formas de regulação da ocupação do território, o que levaria a extrapolar o terreno estrito da gestão ambiental apontando para o conjunto das políticas de desenvolvimento agrário do país. A opção política das lideranças da grande propriedade todavia é pragmática, voltada para a regularização das ocupações já existentes[6]. Esta solidarização “por cima” entre classes distintas faz tábula rasa da questão agrária tanto no que diz respeito à concentração de terras[7] quanto no que diz respeito ao acesso a recursos (sobretudo os públicos) para o desenvolvimento de cada uma delas[8].

Parte desta narrativa tentou se afirmar com base na recuperação de uma suposta “questão nacional”, que estaria a opor interesses nacionais a interesses estrangeiros na regulamentação das atividades agropecuárias. A se destacar que historicamente a vinculação entre agricultura e questão nacional no Brasil havia sido argumento em favor do reformismo agrário, já que a reforma, seja da estrutura agrária (como na versão por exemplo de Alberto Passos Guimarães) ou da legislação trabalhista (como em Caio Prado Júnior), serviria à incorporação dos camponeses e trabalhadores rurais à nação por meio da ampliação dos direitos e da elevação das suas condições de vida. Como parte desta nova narrativa, a questão nacional tornou-se porém traduzível na linguagem da disputa comercial entre produtores agrícolas no mercado globalizado. Assim, restringir terras para a exploração agropecuária representaria desvantagem para os agricultores nacionais na disputa de mercado com os estrangeiros.

É todavia difícil sustentar o argumento quando se examina o processo acelerado de internacionalização da agricultura no Brasil, especialmente na década passada. Heredia, Palmeira e Leite (2009) mostram, por exemplo, que entre 1995 e 2005, a participação de capitais internacionais saltou de 16% para 57% no total do capital aplicado no setor de agroindustrial de esmagamento de grãos de soja. Das cinco maiores processadoras, apenas uma é brasileira. Cresceu também na última década a demanda internacional por compra de terras – fenômeno que não se restringe ao Brasil, mas refere-se também à África e à Europa Oriental[9] – outro indicador da internacionalização da agricultura.

Não deixa de ser intrigante que no que diz respeito à regulação da aquisição de terras por estrangeiros, a representação do “agronegócio” se afaste da narrativa centrada na “questão nacional” e prefira estritamente defender seus interesses. Confrontada com a possibilidade de limitação legal da aquisição de terras por estrangeiros, a CNA e sua presidente[10] opuseram-se à regulação pública, com base no direito à livre disposição da propriedade privada e na defesa da liberação do mercado de terras, posição coerente com a valorização da propriedade rural no mercado e distante da precedência da “questão nacional” alegada em outros momentos. O que nos parece é que a posição que o “agronegócio” ocupa na inserção da economia brasileira no mercado mundial o empurra para posições mais liberais e mais “cosmopolitas” quando se trata de temática econômica. As particularidades da agricultura no capitalismo e especificamente de sua trajetória no Brasil não permitem porém que este liberalismo se apresente desvinculado do estado, pois depende em boa medida dele para sua reprodução política e econômica. Assim, em nome da autonomia da propriedade privada pode-se rejeitar a expansão da regulação pública e em nome da “competitividade” no mercado mundial, pode-se reivindicar o engajamento estatal no financiamento do setor. As condições sociais envolvidas no seu projeto de expansão econômica, entretanto, dificultam a universalização do discurso e dos interesses na esfera pública. A “questão nacional”, de forma semelhante ao apelo aos pequenos proprietários, é argumento conjuntural, mobilizado com finalidades específicas, de solidarizar o estado e a esfera pública com o interesse particular. A combinação não deixa de ser entretanto explosiva, para dizer o mínimo.

Em contraste com as tentativas do que chamamos de solidarização por cima entre grandes e pequenos produtores, é relevante trazer à luz os argumentos que foram mobilizados pelas entidades representativas de trabalhadores rurais e agricultores familiares no debate. Ressalte-se que a agricultura familiar vem se revelando o segmento com melhores indicadores de produtividade no uso da terra da agricultura brasileira. Estudos com base no Censo Agropecuário de 2006 indicam que apesar de sua menor participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária (cerca de 23%), os estabelecimentos que se enquadram nos critérios legais que definem agricultura familiar, ocupam apenas 18% do total da área. Os demais utilizam 82% do total da terra para produzir cerca de 76% do VBPA, o que caracteriza uma eficiência 40% maior no uso da terra pela agricultura familiar (Spavorek et alli, 2010; Censo, 2006). Seriam estes indicadores de produtividade que poderiam sustentar o tratamento diferenciado reclamado pelas entidades representativas na regulamentação ambiental, isto é, não é a expansão da agricultura familiar a maior ameaça à conservação ambiental.

As principais organizações de trabalhadores e agricultores familiares manifestaram descontentamento com o resultado atingido no Congresso. A CONTAG considerou o relatório aprovado “um retrocesso e uma derrota para as políticas diferenciadas para a agricultura familiar”. A organização reclama que as medidas foram desproporcionais sendo mais permissivas com as grandes propriedades[11]. Já a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar, ligada à CUT, atuou em conjunto com a Via Campesina, o MST, a Comissão Pastoral da Terra e outras entidades adotando um tom mais aguerrido de denúncia da revisão e defesa da legislação então vigente[12].

O ponto que parece unificar um campo mais amplo de interesses é a dificuldade de cumprimento das regras do Código Florestal então vigente, tal como alteradas pela Medida Provisória de 2001. O estudo de Spavorek et alli (2010) corrobora a informação amplamente circulada nos meios de comunicação de que apenas uma ínfima parte dos produtores vem conseguindo cumprir as exigências desde o ano de 2001. O mesmo estudo a partir da análise da estrutura de ocupação de terras tenta localizar com maior precisão o problema da expansão agropecuária no território. De acordo com os autores, a atividade que mais ocupa terras no país é a pecuária de corte, que retém 211 dos 275 Mha (milhões de hectares) utilizados pela agropecuária brasileira, isto é, as pastagens ocupam cerca de 3,5 vezes a área de todas as demais produções agrícolas. O Censo Agropecuário de 2006 mostra que a produtividade média da pecuária brasileira pode ser considerada baixa, de cerca de 1,14 cabeças por hectare e com um desfrute de apenas 20% do total do rebanho por ano, caracterizando uma prática de natureza extensiva na maior parte do território. O mesmo estudo conclui que a elevação da produtividade da pecuária poderia liberar um imenso estoque de terras (61Mha) para a expansão agrícola[13]. Assim, a necessidade de aumento do estoque de terras para a agricultura não seria um argumento “tecnicamente aceitável” para uma revisão permissiva do Código. Mais relevante seriam os custos econômicos para restauração do passivo ambiental em áreas em desconformidade com a legislação, que os autores calculam em 85 Mha, o que poderia apontar para a importância de uma política racional de restauração de áreas estratégicas para a preservação ambiental e consolidação das atividades em áreas de menor impacto.

A relação entre a pecuária extensiva e a expansão da “fronteira” agrícola tem sido observada há algum tempo pelos pesquisadores brasileiros. A expansão da “fronteira” agrícola, isto é, a expansão de uma forma de agricultura capitalista, em geral de larga escala, para regiões que antes não ocupava, tem sido novamente intensa no último período. Heredia, Palmeira e Leite (2009), no estudo supracitado, mostram o rápido deslocamento da produção de soja: em 2000, 75% de sua produção tinha origem nas regiões Sul e Sudeste do país, percentual reduzido para 55% em 2003 e para 40% em 2006. A área de destino da expansão do complexo agroindustrial da soja foi o cerrado, especialmente o Mato Grosso, Goiás, o oeste da Bahia e o Triângulo Mineiro. Boa parte desse movimento deslocou áreas dedicadas à pecuária. Também a expansão da cana-de-açúcar, ligada ao crescimento da demanda por biocombustíveis, teria impacto no deslocamento da pecuária, que passa a ocupar novas áreas já no bioma amazônico. O deslocamento dessas duas culturas e sua relação com o deslocamento da pecuária e com o desmatamento gerou iniciativas importantes, porém interrompidas, de autorregulação a partir da própria sociedade civil, como documentado por Abramovay et alli (2010) em torno das mesas de negociação entre produtores, sindicatos e ONG’s às vezes com participação do poder público, que levaram à “moratória da soja” entre 2006 e 2010 e a acordos em torno da produção de cana. Hoje é o chamado MAPITO (corruptela para Maranhão, Piauí e Tocantins) o destino principal das frentes de expansão capitalismo agrário.

Além do interesse da pecuária extensiva, a regulação frouxa pode estar ligada a um interesse pouco visível na esfera pública, o da valorização patrimonial. As proposições ligadas à consideração de pastagens como Áreas Permanentes de Preservação (APPs), de diminuição das obrigações em propriedades de até quatro módulos fiscais independente da atividade ali desenvolvida (isto é, mesmo que não sejam áreas de agricultura familiar) e de anistia dos descumprimentos da legislação após a estabilização do marco regulatório em 1999, podem estar ocultando interesses ligados mais diretamente à especulação fundiária do que o interesse propriamente da agricultura. Esta indiferenciação prejudica a regulação e imputa um ônus desnecessário à política pública, tanto do ponto de vista da regulação ambiental quanto do desenvolvimento agrícola.

Considerações finais

A revisão do Código Florestal é reveladora de um conflito importante na sociedade brasileira dos dias de hoje. Trata-se das contradições engendradas pela expansão de um modelo de ocupação do território e de atividade econômica ligada à agropecuária, é a expansão do capitalismo agrário. É certo que todo processo de desenvolvimento econômico é carregado de contradições, as que vivemos são características da trajetória específica da modernização brasileira. Não se pode então compreendê-las sem a sua justa relação com a “modernização conservadora” e com o que se denominou na literatura de a “questão agrária”. A revisão do Código Florestal responde à iniciativa de uma burguesia agrária que nos últimos 40 anos fortaleceu suas posições no campo da economia e da política, sem contudo ter logrado encontrar soluções para a incorporação dos trabalhadores e pequenos proprietários rurais no “modelo” de desenvolvimento em vigor. Ao mesmo tempo, a dependência dos recursos públicos construída no período da modernização se projeta na reprodução de boa parte de suas atividades no período atual. Os limites da “modernização conservadora” tornam-se evidentes quando confrontados com os projetos de ocupação de novas áreas com a agropecuária extensiva, com a permanência das estratégias especulativas de utilização da terra como estoque de valor, com os riscos à biodiversidade ou mesmo com o ainda não residual uso da violência privada no campo.

A expansão do capitalismo agrário brasileiro traz consigo novas e velhas relações sociais. Nos últimos vinte anos um conjunto de políticas públicas tem possibilitado o apoio a agricultores que historicamente foram preteridos, fortalecendo segmentos importantes da agricultura familiar. Também deve-se ressaltar o papel desempenhado pela Embrapa na pesquisa de técnicas agrícolas adequadas às características da terra e do clima no país. A produtividade da agricultura brasileira cresceu, o que é um trunfo para o desenvolvimento futuro da economia. Ainda assim, se é possível identificar setores de uma agricultura familiar de maior produtividade ou setores do chamado “agronegócio”[14] que assumiram uma agenda nova no que diz respeito às suas relações com a sociedade e o espaço público, não se pode concluir pela generalização deste processo.

A forma como o poder público intervém no mundo rural é importante para as possibilidades de afirmação ou não do “novo” na agricultura. A hegemonia de uma narrativa que faz tábula rasa da questão agrária, que ignora as limitações severas da modernização conservadora para a democratização do mundo rural, e que projeta uma apropriação diferenciada dos recursos e da capacidade regulatória do poder público, é um obstáculo para a mudança. Esta narrativa vela ao invés de revelar as contradições presentes no campo e com isso obstrui a percepção da sociedade dos problemas e desafios que se impõem. Opõe-se assim um interesse particular à formação de um interesse mais amplo. O particularismo das elites agrárias e seus representantes tradicionais, escudados numa retórica que tenta solidarizar por cima interesses variados, dificultou a formação de um interesse público de natureza diversa, que obrigaria a mediação, a pactuação e o atendimento a reivindicações mais amplas no processo de negociação do Código Florestal. Escudados em uma suposta “questão nacional” e na suposta defesa de uma genérica e indiferenciada “agricultura brasileira”, os grandes proprietários buscaram avançar sobre princípios recomendáveis de cautela no trato com problemas ambientais e na proteção de áreas estratégicas para a conservação dos recursos naturais. Interesses nacionais e interesses públicos não estão naturalmente dados, mas só podem ser construídos no curso de processos políticos, assim, é a despolitização do problema central do projeto de desenvolvimento agrário para o país que impede a conformação de um interesse geral.

Das três versões que o projeto de revisão do Código Florestal assumiu em todo o embate, a última (e portanto a que vai a sanção presidencial) foi a que representou a mais expressiva vitória da “bancada ruralista”, a menos matizada, a mais distante das tentativas de concertação produzidas no período. Esta vitória só foi possível devido ao papel que essas elites agrárias passaram a ocupar no parlamento, especialmente na Câmara dos Deputados, como elemento importante na estabilização do “presidencialismo de coalizão” brasileiro. É neste sentido que se percebe que a questão agrária está longe de ser problema de natureza setorial, mas vincula-se diretamente à dinâmica política mais geral do país, como já está abertamente vinculada às suas dinâmicas econômica e societal.

Enquanto escrevo este texto, ainda não há notícia sobre a decisão da presidenta da República sobre a sanção da Lei aprovada. Argumentos para o veto parcial ou integral não faltam. Considerações de ordem conjuntural condizentes à relação entre a presidenta e sua coalizão, ao posicionamento do país na Conferência Internacional que sediará sobre o meio-ambiente, pressões de natureza diversa, provavelmente orientarão a decisão. O veto à íntegra do projeto representaria possivelmente a maior derrota já  sofrida pela “bancada ruralista”, visto que foi essencialmente obra sua a versão final aprovada. Poderia significar, embora não seja certo, uma mudança na forma que vem se conduzindo o “presidencialismo de coalizão” no país, indicando uma orientação mais programática da presidência da República. Dilma assumiu compromissos de não permitir retrocessos na proteção ambiental no país e deu declarações de que usaria seu poder de veto para tanto. No Congresso, a articulação política do governo foi derrotada pela aliança entre a “bancada ruralista” e o PMDB. Por esses dias, fala-se em uma recomposição do PMDB sob orientação do vice-presidente da República, Michel Temer, que poderia levar ao veto integral e à edição de uma Medida Provisória restaurando a versão da revisão do Código aprovada no Senado e desfigurada na Câmara, tal como defendido pela liderança do governo e pelo PT. Não agradará completamente a ninguém, mas seria visto por parte dos movimentos sociais como um mal menor. Outra alternativa seria o exercício de vetos parciais aos pontos mais críticos da versão aprovada. Qualquer que seja a decisão, certamente não esgotará o conflito. A sociedade não está inerte e a própria mobilização em torno deste debate é um bom indicador das possibilidades futuras.

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Felipe Maia

Bibliografia

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[1] Sobre a agricultura nos planos de desenvolvimento nos anos 1960 e 1970, ver Delgado (1988).

[2] Ver Graziano da Silva (1998).

[3] Para o papel da bancada, o resultado das negociações da dívida e seu limite para as políticas públicas ver Graziano da Silva (2010).

[4] Não vamos nos ocupar aqui de um escrutínio da trajetória do movimento ambientalista, nem mesmo nas linhas gerais como fizemos com o “agronegócio” e a “bancada rualista”. Há vasta bibliografia relevante sobre o assunto. Ver Alonso et alli (2007) e Milani (2008).

[5] A SBPC ao lado da Academia Brasileira de Ciências, formou um Grupo de Trabalho que produziu documento com um conjunto importante de sugestões de alteração na legislação. Ver, SBPC, ABC, O Código Florestal e a ciência: contribuições para o diálogo com a sociedade brasileira. São Paulo: SBPC, 2010.

[6] Há defensores da atual proposta de revisão do Código, como Marcos Favas Neves que argumentam que “este código deve ser aprovado e iniciarmos já os debates para uma próxima versão mais moderna e contemporânea, para ser novamente aprovada daqui 5 ou 10 anos”. Ver: http://www.abag.com.br/index.php?mpg=04.00.00&acao=ver&id=201&pg=0 .

[7] Em cálculo recente  Hoffman e Ney (2010)  mostram que o índice de Gini, utilizado para a mensuração da desigualdade na distribuição de terras, mantem notável estabilidade em torno do elevado padrão de 0,856 nos dados referentes aos anos de 1975, 1986, 1996, 2006 e 2008. Mostram também que em 2006 os estabelecimentos com mais de 1 mil hectares, apesar de perfazerem apenas 0,95% do total de estabelecimentos, ocupavam 44% da área total; enquanto que os menores estabelecimentos, com menos de 10 hectares, apesar de representarem 50,3% do total de estabelecimentos, ocupavam 2,4% da área.

[8] A política agrícola brasileira consagrou desde o final dos anos 1990 uma “estrutura dual”, que pode ser simbolizada pela presença de dois ministérios ligados às atividades agropecuárias, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, cujos programas atendem basicamente aos maiores produtores e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável pelas políticas de reforma agrária, desenvolvimento rural e agricultura familiar. O abismo entre o orçamento de cada um deles indica a chance diferenciada de acesso aos recursos públicos. O estudo empreendido por Heredia, Palmeira e Leite (2009) por sua vez revela a desproporção no acesso a recursos públicos no interior de uma cadeia produtiva, a da soja, nos estados da Bahia e de Mato Grosso. Neste último em 2007, a agricultura familiar recebeu apenas 6% do volume total de crédito agrícola. A informação é mais relevante se considerarmos que a soja concentrou 62% do total de recursos destinados ao custeio da lavoura no Estado.

[9] Ver Sauer e Leite (2010).

[10] É emblemático o título do artigo da senadora Kátia Abreu sobre este tema, intitulado “Nacionalismo fora de hora”, no qual a presidente da CNA acusa a “sobrevivência de ideias anacrônicas (…) a pior delas é o nacionalismo”. O artigo está disponível em: http://www.canaldoprodutor.com.br/comunicacao/artigos/nacionalismo-fora-de-hora .

[11] CONTAG, “Novo Código penaliza a agricutura familiar”. Disponível em: http://www.contag.org.br/indexdet.php?modulo=portal&. Acesso em 7/5/2012.

[12] A carta conjunta assinada pela Fetraf e a Via Campesina pode ser vista em: http://www.fetraf.org.br/site/noticia.php?not=not_fora_home&&id=132. Acesso em 8 de maio de 2012.

[13] Apesar de haver controvérsia no cálculo da produtividade, é vasto o campo que enxerga no aumento da produtividade da pecuária uma alternativa para a liberação de terras para cultivo. O sítio da ABAG divulga artigos que vão neste sentido, ver por exemplo, “Pecuária sustentável é pecuária produtiva” em http://www.souagro.com.br/pecuaria-sustentavel-e-pecuaria-produtiva

[14] Utilizamos em todo o texto as expressões “agricultura familiar” e “agronegócio” no sentido corrente que elas adquiriram no debate público. A classificação porém não é estabelecida e muitos são os pontos de intersecção e sombreamento entre elas. Todavia, como se tornaram identidades políticas razoavelmente definidas no debate, consideramos o uso justificado.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.