Aviso aos Governantes – Número 31 – 09/2011 – [116-118]

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Se for verdade a máxima de que ninguém governa só, não obstante a solidão do poder, deve-se não apenas ao fato das necessárias alianças, mas ao modo reflexivo das deliberações. A partir da recepção do conceito de soberania no universo político por Jean Bodin no século XVI, as distinções entre as funções de aconselhamento e de responsabilidade tornaram-se claras no sentido de imputar o mínimo de ordem nas funções estatais. Entretanto, desde a origem do pensamento político existe a preocupação com o suporte àqueles que governam.

A lista é longa. Na antiguidade, Xenofonte e Tucídides merecem destaque, mas é no quinto livro da Política que se permite entrever um Aristóteles negligenciado pelos moralistas. Na Idade Média tardia, a tradição dos espelhos dos príncipes se fixa e oferece aos governantes diversos tratados de preceitos lógicos não sobre o bom governo, mas sim sobre a conquista e manutenção do poder. Em 1516, Erasmo de Roterdã escreveu A educação de um príncipe cristão, provável referência a Ciropédia de Xenofonte, tentativa de unir a lógica do governo eficaz com valores do cristianismo. Nos fins do mesmo século, o italiano Giovanni Botero expande os conselhos ao príncipe para todo e qualquer regime, consolida com isso o que nomeou de Razão de Estado, conquista e manutenção do poder por uma necessidade imperativamente lógica e não moral. Estabelece-se, assim, um lugar próprio para os conselheiros no funcionalismo público.

Os conselhos aos governantes deram origem não apenas a instituições políticas, mas cumpriram com o papel de auxiliá-los em sua atividade. Fundamenta-se, desse modo, na percepção de que a política pode ser manejada com uma determinada técnica, como uma arte. Compreende-se então como o ponto de partida de muitos pensadores políticos é a interpretação do Homem enquanto tal, da natureza humana. Desnudando este ser, identifica-se o que o anima. Até Bodin, o fato de aconselhar governantes, antes da necessária interpretação da natureza humana, não implicava em uma distinção entre responsabilidade e irresponsabilidade. É verdade que Maquiavel já distinguira em O Príncipe os barões e os ministros. Se o príncipe deve governar com um ou com outro é a questão que ele se propõe a solucionar. Assim, o príncipe, hora só, hora acompanhado, poderia ser ajudado ou traído, o que aponta para obscuridade da soberania. Na contingente solidão do poder, o príncipe deve se arriscar a assumir todas as conseqüências de seus atos, mas esse príncipe de virtù ainda não sabe distinguir entre aduladores e conselheiros, a soberania, então, não se põe como conceito formado visto ser o novo príncipe ator e autor dos atos do governo.

A irresponsabilidade da soberania dos reis – argumento largamente utilizado no Brasil a época do Império – colocava-os em um posto permanente, seguro e estável. O único caminho para mudanças abruptas de regime era a revolução, o que de fato, ocorrera em algumas ocasiões. Com Hobbes, já no século XVII, a soberania ganha status distinto e se torna possível tratá-la como um conceito primário, necessário à política, que paira sobre qualquer esfera de poder e se distancia do poder responsivo. Aprende-se com isso o que é conselho aos governantes e o que é responsabilidade.

Cardeal Mazarin, sucessor de Richelieu no primeiro ministério da França, escreveu o Breviário dos Políticos. Texto curto, rápido e de fácil leitura que procurava ensinar a todos aqueles que desejavam viver próximos ao poder como se comportar. Os conselhos vão de como limpar as unhas até como as punições devem ser feitas e pode ser resumido em cinco preceitos: simula, dissimula, não confies em ninguém, fale bem de todo mundo, reflete antes de agir. Um verdadeiro manual para governantes que deixaria as mais perniciosas interpretações de Maquiavel com inveja por seu amoralismo. O conselho tem essa premissa: a neutralidade axiomática da moral. O objeto do conselheiro não é o governo, mas o emprego eficaz e eficiente dos meios com vistas aos fins dados pelo soberano, seja ele rei, seja uma Constituição escrita.

Diferentemente de um conselheiro, um ministro é responsável e responsivo por seus atos, divide a soberania com os mais altos cargos. A prova definitiva do progressivo distanciamento entre conselheiros e ministros reside no fato de cada pasta ser destinada a uma determinada responsabilidade do governo: saúde, educação etc. Antes do conhecimento do manejo político, um ministro é aquele que decide os rumos de suas atividades.

Mas em que importa tal diferenciação? Na condução dos negócios públicos, sem ter-se claro o que é meio e o que é fim o regime perde sua legitimidade. A criação do conceito de soberania permitiu que os fins fossem responsabilizados, bem como os meios. Mais do que isso, o conceito identificou, por conseguinte, aqueles que são ou não responsáveis pela máquina estatal. Com isso, permitiu-se que a política deixasse de ser uma atividade somente da técnica e expandir-se para os mais diferentes setores da vida humana. A grande conquista da diferenciação de conselheiros e ministros reside, portanto, na possibilidade de os governantes serem responsabilizados de acordo com cada uma de suas funções. Tema caro às democracias contemporâneas.

No Brasil, Secretarias, Gabinetes e Ministérios dividem o mesmo princípio, qual seja a responsabilidade para com a condução das atividades governamentais. Por outro lado, o país não abdicou de conselheiros. A criação da Assessoria Especial da Presidência da República, mesmo que definida a área específica de atuação, revela o retorno dos conselheiros, sem qualquer juízo de valor embutido nisso. Mas o que é um assessor especial senão alguém que conhece a intermediação adequada entre meios e fins sobre determinadas matérias? É preciso lembrar que junto com o conselheiro sua função necessita da irresponsabilidade, embora isso quase não ocorra.

A clareza da distinção entre ministro e conselheiro traz consigo a devida cobrança de seus respectivos papéis. Compartilhando o Poder Executivo com a Presidência da República, o ministro deve responder pelos projetos, pelo andamento da máquina pública, pela realização, pela execução. O conselheiro, ao contrário, é o personagem que viabiliza a implementação da política, aponta os caminhos, reflete sobre as conseqüências, analisa os fatos, mas não delibera. Em comum, ambos estão em uma escala abaixo do lócus da soberania, em repúblicas ou principados. Contudo, o ponto realmente de contato é a proximidade com o poder. Ministros e conselheiros se comunicam menos entre si do que com os órgãos superiores, a Presidência e a Constituição.

A ambivalência da utilização das duas categorias de assessoramento do poder leva a sobreposições ou mesmo a troca de funções, o que confunde a precisa distinção entre meios e fins. Se a burocracia dos Estados modernos, desde sua definição em Weber, é o corpo que aponta os meios técnicos das realizações governamentais e estatais, o conselheiro cumpre com os meios políticos das mesmas. Um ministro, com ou sem assessoramento técnico e político, aponta os fins. Fica, então, um aviso aos governantes: a clareza da distinção entre meios e fins reflete diretamente na legitimação dos atos do governo (meios) para a realização de seus fins.

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Luís Falcão

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.