Quinhentos Anos dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, lidos daqui: ainda sobre a questão da atualidade – Número 149 – 06/2017 – [58-61]

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– se del male è lecito dire bene –

Machiavelli, Il Principe, VIII

Em 2013, durante as comemorações dos quinhentos anos da escrita de O Príncipe, de Maquiavel, perguntaram, em longa entrevista realizada para os festejos, a Gennaro Sasso, um dos mais importantes intérpretes de Maquiavel, sobre a atualidade da obra. Ele foi peremptório: “Não há nenhuma”. O estudioso discorre então sobre as divergências entre os conceitos contidos no texto e o mundo político atual, revelando, por exemplo, que, para um americano, principado misto não quer dizer nada, ou que o principado civil não determina e sequer indica qual seja o conteúdo da civilidade ou da cidadania. Em suma, “não é atual”. Relativamente às questões de comportamento político – se é melhor ser amado ou temido, se se deve manter a palavra dada etc. – não se trata do príncipe propriamente, mas antes de questões humanas. Qualquer pessoa atenta a esta fala esperaria que na sequência o intérprete desse a esperada guinada na resposta inicial para mostrar então a atualidade de O Príncipe. Decepcionados, os ouvintes precisariam refletir sobre no que consiste as tais questões humanas, as condições da política, do realismo, ou seja, da reinterpretação de Maquiavel das condições históricas vividas e objetivamente apreendidas.

Em 2017, comemoram-se os quinhentos anos dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (Discorsi), obra de maior folego teórico e alcance do que O Príncipe. Longe de nos colocarmos a questão posta para Sasso, apenas acompanhamos sua resposta destinada a O Príncipe para os Discorsi.

Se optarmos por um percurso randômico, saltando de questões em questões, e reordenarmos alguns dos temas dos Discorsi, podemos seguir o caminho da reinterpretação de Maquiavel a respeito das condições históricas. Comecemos por um ponto de partida conhecido da obra: os novos modos e ordenações. Das diversas formas que são possíveis classificar a atividade e reflexão políticas, duas formam um binômio complementar ou excludente. Os modos são classificados em ordinários – aqueles que seguem as ordens estabelecidas, as leis, as instituições – ou extraordinários – os que não as seguem, mas, via de regra, produzem novas. Os modos, portanto, se chocam sempre com as ordens, seja para respeitá-las, seja para refazê-las. No primeiro caso, quando se vive em uma cidade livre e se respeita as ordens estabelecidas não há outro resultado das transformações políticas que não a própria liberdade (Machiavelli, Discorsi, I, 25), se, e somente se, o povo se mantiver como o legítimo guardião da liberdade (Machiavelli, Discorsi, I, 3-6). Nessa situação, a política segue seu fluxo esperado pelas próprias instituições que lhe dão formato e tais instituições são, uma vez que essa atividade é dinâmica, transformadas dentro de suas próprias regras. A atualização das leis e das funções estatais segue as normas das leis e da garantia da liberdade no povo.

Por outro lado, há situações nas quais as ordens são ameaçadas extraordinariamente, isto é, quando forças políticas pretendem transformar as leis e instituições desrespeitando as próprias leis e instituições vigentes. É um caso extremo, é verdade, mas sempre plausível e carrega consigo a destruição do princípio da garantia popular da liberdade. Entre uma ponta e outra – o respeito total das ordens e o aberto desrespeito –, há um meio termo, mais obscuro e de difícil reconhecimento público. As ordens podem ser formalmente respeitadas com o objetivo de transformá-las sem a legitimidade popular. Em outras palavras, as leis e instituições podem ser manejadas para cumprir com objetivos diversos ou mesmo contraditórios para os quais elas foram feitas, tudo, sob a aparência de normalidade, sob a aparência de modos ordinários. Nesse caso, os agentes de tal empreitada são aqueles que querem fundar um “poder absoluto”, uma “tirania” (Machiavelli, Discorsi, I, 25).

O modo mais eficiente de manter o povo sob controle, de garantir o domínio sobre ele, de sustentar o regime tirânico, é reformar tudo de uma só vez, já que o regime não tem qualquer legitimidade: “como seus fundamentos são frágeis”, esse tirano deve “fazer novo governo com novos nomes, com novas autoridades, com novos homens […] em suma, não deixar coisa nenhuma intacta no país. […] São esses modos cruéis e desumanos” (Machiavelli, Discorsi, I, 26). Corrompida, assim, a cidade deve buscar resistência por dois caminhos progressivamente mais radicais. O primeiro deles é ainda creditar às ordens alguma legitimidade:

Podia um tribuno e qualquer outro cidadão propor ao povo uma lei, sobre a qual todos podem se pronunciar, a favor ou contra, para que se deliberasse. Era essa instituição boa, quando os cidadãos eram bons, porque é sempre bom que todos possam debater publicamente e propor. E é bom que qualquer um possa dar sua opinião, para que o povo possa eleger a melhor. (Machiavelli, Discorsi, I, 18)

Em outras palavras, o que Maquiavel está dizendo é que para resistir às reformas autoritárias do tirano e retomar a legitimidade popular são necessárias eleições populares. E essas eleições são capazes de reconduzir o país, ainda que abalado pela tentativa de reformas brutais, arbitrárias e impopulares, aos modos ordinários, à dinâmica política propriamente. O fundamento de tal assertiva reside no fato de o povo ser o melhor guardião da liberdade, de ser ele próprio o agente político reativo ao domínio dos poderosos, e apenas por ele o tirano pode ser detido quando ainda se credita legitimidade às ordens. “Concluo, portanto, contra a opinião comum – que diz que o povo quando governa é inconstante, mutável e ingrato –, e afirmo que nele não há esses defeitos que são de príncipes privados” (Machiavelli, Discorsi, I, 58).

Problema semelhante ocorre em situação distinta. Como é bem característico da reflexão maquiaveliana, um determinado fenômeno político pode ter origens e causas diversas, aparentemente, sem qualquer possibilidade de produzir o mesmo efeito. É comparável ao exemplo do avanço tirânico uma sucessão malsucedida de governantes, particularmente, quando não se desfruta do aval da legitimidade das eleições. Aliás, somente a eleição garante a excelência do sucessor.

Do que se pode notar que um sucessor, sem a virtude de seu antecessor, pode manter o governo pela virtude que lhe foi deixada […] Digo, portanto, com esses exemplos, que, depois de um príncipe excelente, se pode manter um príncipe frágil. Mas, depois de um frágil, não se pode, com outro frágil, manter seu reino. (Machiavelli, Discorsi, I, 19)

O problema ao qual o florentino se refere é à sucessão por hereditariedade, isto é, uma forma de instituição do governo que não passa pelas eleições populares e é justamente por não atravessar o crivo das eleições que o regime progressivamente se fragiliza e se corrompe. Para os dois casos – o avanço tirânico e a decadência pela sucessão ilegítima – a solução é pelas eleições populares.

Contudo, o secretário de Florença aventa ainda a falibilidade da resolução eleitoral. Quando as ordens estão de tal monta corrompidas, não há outro meio de corrigi-las senão por modos extraordinários. Fracassado então o dispositivo eleitoral e reconhecida publicamente a ilegitimidade das ações do tirano, as ordens devem ser desrespeitadas.

Quanto a mudar as instituições de uma só vez, quando todos reconhecem que não são boas, digo que é inútil, o que facilmente se reconhece, e é difícil corrigi-las. Porque, fazendo isso, não basta usar modos ordinários, sendo modos ordinários perniciosos, mas é preciso usar modos extraordinários, que é a violência e as armas. […] E porque uma cidade no viver político pressupõe um homem bom, e tornar-se violentamente príncipe de uma república pressupõe homem mal. (Machiavelli, Discorsi, I, 18)

Deturpadas as leis dentro mesmo da formalidade legalista, a política cessa e a última alternativa à derrocada final do país é por modos extraordinários. Uma evidência cabal de que não há mais instrumentos políticos viáveis, de que os modos ordinários foram postos de lado, é a perseguição daqueles que se opõem ao novo regime. Do ponto de vista do tirano, afirma: “E sempre se conhecerá isso pela leitura das coisas antigas, como, depois da mudança de Estado, de uma república em tirania ou de uma tirania em república, é preciso uma ação memorável contra os inimigos das condições presentes” (Machiavelli, Discorsi, III, 3). Os tiranos, portanto, agem enérgica e extraordinariamente contra seus opositores, detratando-os e expulsando-os das condições mais primárias de tecedura da política. Pois bem, essa evidência de que a política está morta é mais do que suficiente para um rearranjo extraordinário de volta à política ordinária. Em outras palavras, dadas as circunstâncias – reforma completa do governo e das funções estatais, eleição suspensa, instituições ilegítimas e perseguição do governo a seus opositores –, não há outro caminho que não romper com os modos ordinários: “Contudo, um povo licencioso e tumultuário pode ser ordenado por um homem bom e ele pode conduzi-lo ao bom caminho: com um príncipe maldoso ninguém pode dialogar, e nem há outro remédio senão o ferro. […] Se, para curar a doença do povo, bastam palavras, para com o príncipe, é necessário o ferro” (Machiavelli, Discorsi, I, 58).

Por séculos, acusaram Maquiavel de ser a encarnação do demônio e de satanismo. Fá-lo-ia eu o mesmo com outros, caso fosse necessário.

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Luís Alves Falcão

* Esse ensaio foi originalmente composto para o seminário “500 anos dos Discursos de Maquiavel”, realizado na UFF-PUCG em 18 de maio de 2017.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.