Em cerimônia ocorrida no Itamaraty como parte das solenidades transcorridas em virtude do Dia Internacional dedicado à celebração do continente africano, comemorado em 25 de maio, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, aproveitou para consagrar os novos rumos da política exterior brasileira para a região.
Com este intuito, Patriota ressaltou a expansão do comércio entre Brasil e África que passou de US$ 5 bilhões, em 2002, para US$ 25,9 bilhões, em 2008, tendo sofrido uma retração em 2009, em conseqüência dos efeitos da crise econômica mundial. O decréscimo, porém, foi seguido de rápida recuperação em 2010, ano em que o volume de comércio cresceu 240%, alcançando a cifra de US$ 25 bilhões. Em termos comparativos, o montante equivale à metade do intercâmbio brasileiro com a China, de acordo com dados apresentados no Financial Times. Para o continente africano, por sua vez, o Brasil aparece como o 11º parceiro comercial.
Este estreitamento de laços comerciais guarda uma relação de incentivo recíproco com o adensamento dos elos diplomáticos. Ao longo dos oito anos de seu governo, o presidente Lula realizou 29 visitas ao continente africano, um número que ultrapassa a soma de todas as visitas realizadas por mandatários brasileiros até então. De modo análogo, a rede de representações diplomáticas sofreu expressivo alargamento. Conforme os dados do Itamaraty, nos últimos anos, o governo brasileiro abriu ou reativou embaixadas em 19 países africanos (são hoje 37 embaixadas no total). Não obstante, este movimento foi recíproco. Entre 2003 e 2010, dezessete embaixadas africanas foram instaladas em Brasília, que passou a ser a capital latino-americana com o maior número de representações diplomáticas africanas.
A empreitada em África, contudo, deve ser lida no contexto de uma mudança maior, que marca a guinada da política externa brasileira rumo a um novo paradigma, no qual as relações Sul-Sul ganham destaque. No tocante ao comércio, a nova estratégia também pode ser expressa em termos de volume de comércio. Nossas exportações, por exemplo, retratam com clareza a viragem. Em 2000, apenas 38% desse fluxo se direcionava aos países em desenvolvimento, taxa que ao final da década atingia a marca de 57%. Em contrapartida, os Estados Unidos – que ao longo de boa parte de nossa história ocuparam o centro de nossas atenções e esforços no plano comercial e diplomático –, durante os últimos oito anos tiveram o seu protagonismo eclipsado pela emergência de novos parceiros. Ainda seguindo como parâmetro o volume de exportações, o mercado norte-americano teve sua importância reduzida a menos da metade. Em 2000, o país era o destino de 25% de nossos produtos vendidos no exterior; em 2010, esse número chegou a 10%.
Essa alteração indubitavelmente atende às demandas pragmáticas de uma economia mundial em metamorfose com a emergência de novos global players, particularmente, a China. A opção pela África, ao seu modo, também pode ser interpretada a partir de tal prisma. Alguns fatores favorecem este ponto de vista. Primeiramente, podemos observar a opção de incentivar as relações entre Brasil e África como estratégia estruturada em vantagens geográficas e culturais, haja vista, as múltiplas proximidades entre ambos. Como chama atenção o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em artigo publicado na revista Carta Capital, Recife está mais próximo da cidade senegalesa de Dacar do que da brasileira Porto Velho. Os vínculos culturais, por sua vez, adensados pelas incontáveis remessas de mão de obra cativa africana trazidas ao Brasil durante os sombrios séculos de escravidão, sobressaem nas mais diversas áreas. São influências determinantes para o que entendemos por brasilidade.
Há, todavia, um segundo aspecto possível para uma hipótese pragmática acerca do incremento nas relações comerciais entre ambos. Elas podem ser vistas como um reflexo de um movimento endógeno do continente africano, que vem despontando como um mercado com grande potencial de crescimento, cuja expansão econômica tem alcançado taxas mais elevadas do que a média mundial. A África Subsaariana, por exemplo, obteve uma média de crescimento na última década (2000-2010) de 5,7%, correspondente ao dobro do obtido nas décadas anteriores, que mantiveram uma média de 2,4%. Tal crescimento, por conseguinte, vem acompanhado de um processo acelerado de urbanização e ampliação dos mercados internos, assim como do consumo interno, cujo aumento tem sido mais pronunciado do que aquele observado nos países desenvolvidos.
Este panorama, contudo, esclarece apenas em parte a declaração de Patriota, quando no encerramento de seu discurso comemorativo, afirmou que “desafiando os céticos, a África aparece hoje no imaginário mundial como espaço em dinâmico processo de transformação política e econômica; um verdadeiro espaço de oportunidades”. Neste sentido, o propósito desta análise é propor uma abordagem mais abrangente para o fenômeno. Para isso, o primeiro passo é indicar que o pragmatismo econômico não é a melhor chave interpretativa para a compreensão dos novos rumos da política externa brasileira. Pois, se a era PT apresentou a intensificação das relações Sul-Sul como uma meta da política internacional, o aumento no comércio e nos investimentos deve ser visto não apenas como uma estratégia para maximizar os interesses econômicos e políticos do país. Além do fortalecimento da economia brasileira e de sua posição como global player, esses esforços atendem a um princípio de solidariedade; que se torna, portanto, a categoria central para a compreensão de uma série de mudanças pelas quais o país tem passado. Sendo esta a argumento a ser desenvolvida na presente análise.
O viés solidário, que passa a ser uma diretriz fundamental das relações internacionais do Brasil, pode ser observado em inúmeras iniciativas de suporte financeiro, técnico e político concedido aos países que ocupam uma posição menos favorável na economia mundial. Estas iniciativas direcionadas, sobretudo, aos países latino-americanos e africanos, correspondem, por conseguinte, a um padrão assimétrico de integração. Ao segui-lo o Brasil passa a arcar com uma parte maior dos custos em suas relações comerciais e políticas com países menos desenvolvidos.
Este novo paradigma de política internacional pode ser observado em inúmeras iniciativas que, de acordo com estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se estendem por mais de 80 países, para os quais o Brasil oferece ajuda técnica e financeira. Os custos desta estratégia revelam seu caráter assimétrico. Entre 2005 e 2009, o país gastou quase oito bilhões de reais em programas de formação educacional, cooperação técnica, científica e tecnológica, contribuições para organismos internacionais, ajuda humanitária e perdão de dívidas de países pobres.
É a partir deste padrão assimétrico, por conseguinte, que deve ser compreendido um segundo eixo das relações entre Brasil e África, estruturado a partir de projetos de cooperação que têm por objetivo reduzir as carências do continente em inúmeras áreas. No que diz respeito às relações com os membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), o princípio da solidariedade ganha um caráter ainda mais singular.
Citando um documento do próprio Ministério das Relações Exteriores brasileiro, “a cooperação técnica prestada aos países da CPLP pelo Brasil no período 2003- 2010 insere-se no paradigma da cooperação Sul-Sul, o qual se distingue por padrões próprios de gestão, diferentes daqueles aplicados à tradicional cooperação Norte-Sul. Busca-se, sobretudo, sem imposições ou quaisquer condicionalidades, o desenvolvimento sócio-econômico, em bases sustentáveis, dos países parceiros”.(relatório de Política Externa do Ministério das Relações Exteriores para os países da CPLP). Esta assistência realizada pelo Brasil tem como instrumento principal a ação de instituições nacionais com conhecimento e experiência técnica em áreas estratégicas para o desenvolvimento dos países envolvidos, como é o caso da Fiocruz, da Embrapa e do SENAI. Os resultados positivos foram obtidos nas mais diversas áreas. Como ilustrado no quadro abaixo, extraído do mesmo documento do MRE.
Formação de recursos humanos nos PALOP e Timor Leste nas seguintes áreas:
• Concepção e elaboração de projetos para o desenvolvimento (projeto concluído em 2004, com a formação de 103 especialistas); cooperação técnica internacional (formação, até 2010, de 563 especialistas);
• Gestão em saúde pública (projeto que contou com o apoio da Fiocruz; e desporto (formação de 32 técnicos de futebol);
• telecomunicações; cooperação eleitoral; segurança alimentar; gestão administrativa,governo eletrônico (apoio brasileiro à programas nacionais de Governo eletrônico); e educação ambiental.
• Criação do Centro Regional de Excelência em Administração Pública (CREAPE), com o apoio do Brasil, com sede em Moçambique (a gestão do Centro encontra-se atualmente já transferida para o Governo moçambicano);
• Adoção do Plano Estratégico da CPLP de Cooperação em Saúde (PECS) (2009);
• Adoção da Estratégia da CPLP para os Oceanos (2010); e
• Adoção do Plano Estratégico da CPLP para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (2010).
Uma hipótese republicana
A consolidação destes inúmeros programas de cooperação internacional, promovidos e custeados em sua grande parte com dinheiro proveniente do tesouro brasileiro, delineia uma estratégia de integração de caráter assimétrico. Quanto a isso há pouco espaço para a controvérsia, que se estabelece, contudo, quando o questionamento desloca-se para os motivos que embasariam esta opção, explicando sua origem.
Durante os dois mandatos do presidente Lula (2003-2010), o Brasil serviu de cenário para a emergência de um novo paradigma de política internacional, no qual as estratégias de integração passaram a ser determinadas por um pragmatismo orientado ideologicamente por uma perspectiva solidária. Por meio desta opção foi possível promover um aumento vultoso nas exportações, na presença de empresas brasileiras no exterior e nas transações comerciais, com saldo amplamente favorável ao país; não obstante, o simultâneo aumento de seu prestígio entre os parceiros comerciais e diplomáticos. A expansão da presença do Brasil no mundo dificilmente é caracterizada de modo negativo, o que certamente nos é favorável do ponto de vista econômico e político, sendo, portanto, inegável a dimensão pragmática da estratégia empregada pelos artífices do novo paradigma.
Todavia, o objetivo do presente artigo é atentar para o caráter superficial das análises que restringem a transformação a uma estratégia pragmática ou ideológica do governo, apresentando uma interpretação mais ampla e republicana do fenômeno enquanto parte de uma reconfiguração societal, isto é, de um movimento ético-valorativo.
Esta percepção rechaça interpretações ingênuas, desenvolvidas a partir da infeliz dicotomia entre pragmatismo e ideologia. Isto porque assume parte de uma concepção da dinâmica política na qual são inextricáveis as relações entre o plano pragmático, – no qual preferências podem ser utilitariamente hierarquizadas conforme um cálculo de vantagens e desvantagens –, e o plano ético-valorativo, que condiciona qualquer escolha a um entendimento teleológico a cerca de valores e sentimentos.
Da mesma forma, são imprecisas as análises que observam apenas sob a lógica utilitária ou ideológica as iniciativas implementadas em território nacional para melhorar a distribuição de renda no país. Elas devem ser compreendidas, ao contrário, em suas duas dimensões, uma vez que se orientam por idéias de inclusão e solidariedade, ao mesmo tempo em que são lucrativas do ponto de vista pragmático.
As transferências de renda e as políticas de inclusão social são em grande parte responsáveis pela maximização no volume de comércio e crescimento econômico nacionais, experimentados nos últimos anos. Por outro lado, a busca por oportunidades econômicas passou a ser combinada ao propósito de romper com os laços de heteronomia que além de obstaculizar nosso desenvolvimento interno, condicionavam negativamente a inserção do país no cenário internacional. Não obstante, tanto a idéia de inserção como a de desenvolvimento estão condicionadas a uma orientação solidária antagônica a quaisquer interpretações da dinâmica política enquanto jogo de soma zero. Autonomia e crescimento são objetivos que não mais podem ser perseguidos através de estratégias excludentes.
Sendo assim, tendo escapado da ingênua dicotomia entre pragmatismo e ideologia, é preciso rejeitar, também, as interpretações messiânicas e cesaristas. Estas atribuem tal guinada à virtu do príncipe, no caso, ao governo do Partido dos Trabalhadores, como se sua consagração eleitoral e popularidade não fossem o resultado de uma dinâmica societária. A compreensão das transformações na política doméstica e internacional, dentre elas a opção por estratégias solidárias de valorização da cooperação com os países latinos e africanos, é drasticamente prejudicada quando vista como o resultado de uma mera troca de gabinete. Assim como a proliferação exitosa das políticas de inclusão social, o atual paradigma de política exterior é o resultado de um novo auto-entendimento societário valorativamente orientado pela idéia de solidariedade.
Deste modo, a guinada política do Brasil em favor de medidas inclusivas e solidárias, no plano doméstico e internacional, deve ser entendida como parte de uma conjuntura ética na qual as noções de solidariedade, inclusão e autonomia passam a se destacar no universo valorativo nacional. Daí a idéia de um movimento radicado no plano ético, a partir do qual estas idéias passaram a ocupar um espaço privilegiado no espectro dos valores, desejos e sentimentos compartilhados pela população brasileira.
Essa reconfiguração ética tem inúmeras conseqüências políticas. A partir dela a idéia de inclusão social torna-se a causa eficiente de iniciativas políticas republicanamente fundadas na vontade popular, sejam elas orientadas para o cenário nacional ou internacional. O sentimento de solidariedade e os desejos de inclusão por parte da sociedade brasileira transbordam para além das fronteiras do país, recaindo particularmente sobre povos histórica e culturalmente próximos, perante os quais é há uma identificação quase que imediata. A solidariedade é um componente da philia e implica e reconhecer no outro um igual, desejando para ele o que se espera para si.
Tais sentimentos, não obstante, ensejam uma opção por iniciativas de integração muitas vezes assimétricas em termos de custos e benefícios econômicos para o Brasil. Sem uma compreensão republicana capaz de atrelá-la aos anseios da população, ela pode soar como uma condescendência estratégica por parte de nossos líderes, demasiadamente custosa e, quiçá, incompreensível para um país que ainda se vê às voltas com a pobreza de boa parte de seus cidadãos.
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Mayra Goulart