Em 21 de março, os principais veículos de informação noticiaram a suposta ocorrência, dias antes, de uma festa num trem da Supervia. A rigor, as reportagens não o noticiaram assim. Como é costume, menos comunicaram informações do lhes imprimiram um sentido elitista. E, seguindo a praxe, não o fizeram com muito refinamento. Nas reportagens, o uso gratuito de marcadores discursivos negativos para falar dos pobres ficou evidente até para o pior e mais fiel dos leitores – que, obviamente, segue na vida a mesma linha editorial. Afirmá-lo é possível por uma razão simples: notícia é atividade econômica. E, como qualquer comércio, procura não desagradar o comprador, ao mesmo tempo em que vende seus produtos para uma demanda que ajuda a criar. Até os bancos, que não vendem nada e não perdem nada desagradando seu público, participam ativamente de nos transformar a todos no correntista necessário. Uma das operações criadoras dessa qualidade de media é a naturalização da específica carga semântica dada a tudo que é notícia sobre o mundo dos pobres[1].
Não é exagero. Uma das reportagens faz referência à festa como um ‘“evento”’, grafado entre aspas[2] – talvez por supor alguma relação entre a autenticidade do evento e a classe social de seu público-alvo. Não sabemos. Nossa hipótese é que um dos protocolos adotados em notícias assim opera no registro da sugestão. Para tanto, adota medidas muito explícitas. O primeiro gesto da reportagem é a citação textual da divulgação elaborada pelos organizadores do evento: ‘“Achei a solução, galera!”’. Como se sabe, essas primeiras linhas compõem o momento mais nobre de um texto, quando ele ainda não perdeu nenhum leitor para a distração, a indicar que é pouco provável que algo seja escrito ali ingênua ou desinteressadamente. É nesse espaço que a notícia apresenta a síntese de que um “baile funk” da “galera”, com “muita bebida alcóolica” e “quase nenhum” “passageiro” “de máscara”, foi divulgado pelos organizadores como “solução”. O sentido posto pela citação integral[3] da passagem é certamente mais eficiente do que qualquer comentário. Dificilmente a atenção não será atraída para a conclusão de que há ali uma contradição, exatamente porque suposta e apresentada como fato e sem comentário. Se descuidado, o leitor pode, ainda, ser tocado pelo tom jocoso impresso por essas escolhas tanto ao evento e seus organizadores, quanto a quem a ele compareceu.
De novo, não é exagero. O evento noticiado tem seu nome alterado no texto da reportagem de Trem do Funk para “uma espécie” de “Trem Fest”. Parece de interesse mencioná-lo. Primeiro porque nada é oferecido como motivo a justificar a autoridade da reportagem para mudar o nome de fenômenos sobre os quais claramente sabe pouco. Segundo porque a escolha do nome original, Trem do Funk, pode conter um gesto, tão relevante quanto belo, pelo qual um evento que recupera o funk clássico rende homenagem a um outro, atualizando a histórica tradição do Trem do Samba. Alterá-lo parece, de um lado, uma manifestação de lamentável e elitista ignorância e, de outro, de truculento silenciamento de uma das mais relevantes tradições da cultura carioca. Esta discussão enseja um outro ponto de interesse, pertinente ao áudio do registro de vídeo disponibilizado pela reportagem. Nele, mulheres e homens negros aparecem entoando a canção Rep do Festival, cuja letra transcrevemos:
“Massa funkeira, não me leve a mal
Vem com paz e amor curtir o festival
O festival daqui é muito bom
O festival é um jogo de emoção[4].”
Algum tempo atrás, em julho de 2020, quando da reabertura limitada de bares no Rio, aquele mesmo comerciante da desinformação noticiou uma outra ocorrência de aglomeração na noite carioca. E, da mesma forma, acompanhava a reportagem a disponibilização de um vídeo publicado em redes sociais – um dos recursos preferenciais desse tipo de jornalismo interessado, preguiçoso e sem ‘furo’ – nos quais homens e mulheres eram vistos bebendo e conversando em pé, numa calçada do Leblon. Mas, ao contrário dos registros do Trem do Funk, não se ouve música nos vídeos da Zona Sul, apenas pessoas falando. Entre elas, ouve-se a voz de uma moça que torna pública sua opinião desinformada sobre medidas de segurança sanitária. Registramos abaixo um excerto do áudio de outro vídeo o qual, embora mencionado, não foi disponibilizado na reportagem. Nele, um rapaz fala das imagens que registra, como se as descrevesse para quem as vê – entenda quem puder:
“vai tomar no cu, corona e vai tomar no cu, máscara“
Na linha Japeri trabalhadoras voltam do trabalho que não podem escolher interromper ou fazer remotamente, num trem caro e aglomerado que não podem optar por não pegar, às 19:00 da noite, enquanto bebem cerveja e cantam palavras de respeito e paz sob um ritmo caro à cultura da cidade que constantemente lhes é negada. No Leblon, um jovem profere xingamentos sexistas e homofóbicos a um vírus e a um dos instrumentos capazes de detê-lo.
No Leblon, o problema é posto em termos de alguém pôs “regras” que outrem “ignorou”[5]. Para ele, a solução – não expressa – é, quando muito, a multa. No trem da linha Japeri, o problema é o baile funk, ao som do qual as pessoas “até” dançam. Para ele, a solução é a policial, gentilmente sugerida no encadeamento do texto, ineficiente apenas porque o governo do estado desconversou – sugerida da mesma forma[6]. Na notícia de ontem, o comerciante é a Supervia, apresentada não como concessionária prestadora de serviço público essencial de transporte – o que, aliás, faz de maneira escandalosamente sub-humana -, mas como indignada e disposta a mover as medidas jurídicas (desoneradoras) cabíveis (e selecionadas à conveniência de sua desobrigação).
Espanta a desfaçatez. Os trabalhadores da linha Japeri são instados à aglomeração diariamente e de muitas formas. Todos sabemos e muitos de nós usufruem do sacrifício que lhes é imposto. Não é notícia. Mas, quando cantam, rimam, dançam… a atenção que lhes é dedicada é bem outra. Provocam incômodo nas supostas elites. Por que estes querem aqueles como gado, submetidos aos caprichos de uma moral estruturalmente excludente. Essencialmente racista. E a Pandemia é mais que apenas um contexto, uma oportunidade, para o fel de sua hipocrisia. De encobrir sua memória golpista e co-responsabilidade no caos circundante. Como aqueles que, ao guiarem a nau para os arrecifes cortantes, são os primeiros a se lançarem esbaforidos aos botes salva-vidas. Mas, como se sabe, os naufrágios são precedidos da procissão de ratos a balançar as cordas do navio. Esperam, em meio a agitação das ondas, que se esqueça da desordem que provocaram desde sempre nos porões.
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Lênin Pires
Paula Pimenta
[1] Chamamos à atenção o leitor para um destes dispositivos ‘jornalísticos’, selecionado pelo acesso facilitado por ser ‘gratuito’ e online, porque o a notícia disponibilizada em seu site foi uma das mais visitadas ontem e por adotar como praxe o expediente da comunicação demofóbica.
[2] Talvez pela suposição de que nenhuma reunião é possível neste momento – um suposto contrafactual, obviamente, e cretino, vide a fartura de ocorrências em que festas clandestinas de outras classes sociais recebem sem aspas a designação de evento.
[3] “Achei a solução, galera!”. Era assim que partia uma das convocações para uma espécie de “Trem Fest”, um baile funk realizado na sexta-feira (19), em um trem da Supervia, no ramal Japeri, e que desrespeitava todas as normas sanitárias recomendadas em tempos de pandemia.
O “evento” começou às 19h, saiu da plataforma 8 da Central do Brasil e contou com DJs, aparelhagem de som, muita bebida alcoólica e quase nenhum passageiro de máscara.
A divulgação foi feita pelas redes sociais e prometia muito funk antigo no “Trem Fest”. O trem escolhido deixou a Central do Brasil por volta das 20h15 e, em vídeos compartilhados em redes sociais, é possível ver muita aglomeração, nenhum tipo de fiscalização e até passinhos dentro dos vagões.”
[4] Disponível em : https://www.letras.mus.br/danda-e-taffarel/68599.
[5] Bares ignoram regras e passam do horário no 1° dia de reabertura no Rio; clientes se aglomeram e dispensam máscara
Regras da Prefeitura determinam que estabelecimentos funcionem até 23h, mas clientes continuavam em bares da Zona Sul depois da meia-noite desta sexta (3). Em vídeos, frequentadores chegam a debochar da pandemia que já matou 10,3 mil no RJ.
[6] A Secretaria de Estado da Polícia Militar informou que o Grupamento de Policiamento Ferroviário (GPFer) não foi acionado para o episódio, e que a Corporação segue atuando em apoio aos demais órgãos fiscalizadores de ordenamento público e vigilância sanitária no trabalho de conscientização relativo às regras de convívio social durante a pandemia de Covid.