Resenha de ‘Subcultura e mudança’, de Candido Mendes – Número 5 – 05/2011 – [12-15]

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Em memorável texto, publicado nos idos da década de 1950, o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, exortou os que se dispusessem a interpretar o país de forma não usual a adotar do que designou como o “ponto de vista do infinito”. O texto em questão — Ideologia e Desenvolvimento Nacional, editado pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em 1956 —, uma obra-prima de clarividência e estilo, criticava hábitos intelectuais fincados na estrita finitude das coisas. Tal circunscrição, marcada pela obsessão com o imediato, caracterizava, para ele, o ponto de vista do finito, presente na fragmentação da experiência e na adoção de protocolos mentais meramente descritivos e, por essa via, cativos daquilo que se está a observar.

Vieira Pinto, entre outros de sua geração, militou por uma reeducação da sensibilidade analítica, diante da história e da experiência brasileiras. O ponto de vista do infinito, por ele defendido em uma glosa de Leibiniz, relevava da necessidade de uma “compreensão filosófica” renovada, capaz de superar o “finitismo”. E mais, impunha-se como necessária para o processo de “tomada de consciência”. A expressão, estratégica para o entendimento do que houve de melhor no pensamento brasileiro na altura, significava uma compreensão alargada do processo histórico do país, condição para relançá-lo não apenas como nação materialmente sustentável, mas, sobretudo, como sujeito capaz de refletir de modo autônomo sobre si e seu destino. Uma consciência que, ainda que não dispensasse a ação de uma inteligentsia mannheiminana na sua formalização, só viria a ganhar capacidade de decantação se compartilhada e vivenciada pelo que então se designava como “o povo brasileiro”.

A alusão a Álvaro Vieira Pinto, e ao seu texto que vale como um lançamento do ISEB, não se deve a mera nostalgia por um estilo de pensamento a um só tempo analítico, observador do mundo e militante. Tal menção se faz pertinente diante do fato de que o tema da “tomada de consciência” reemerge, mais de meio século depois e com força total, no mais recente livro de Candido Mendes de Almeida – Subcultura e Mudança: por que me envergonho do meu país. Não se trata, a meu juízo, de mera coincidência nominalista ou de evocação estilística, mas de fecunda reentronização de uma perspectiva há muito deslocada pelas avaliações e interpretações rotineiras da vida brasileira.

Candido Mendes, um dos mais importantes intelectuais públicos brasileiros, pertence ao mundo que cunhou a perspectiva formalizada por Vieira Pinto. Foi participante ativo em um grupo de notáveis intelectuais e homens públicos que, em 1953, se reuniram em torno dos célebres Cadernos de Nosso Tempo e do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política – IBESP. Além de Candido Mendes, entre outros, ali estavam Alberto Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe, Hermes Lima e Ignácio Rangel. Em 1955, o IBESP dá lugar ao ISEB, vinculado ao então Ministério da Educação e Cultura. Diversos intelectuais notáveis viriam a associar-se ao ISEB, entre os quais o já mencionado Álvaro Vieira Pinto. É virtualmente impossível falar da história brasileira que antecedeu ao republicídio de 1964, sem mencionar a reflexão e a militância desse conjunto de intelectuais.

Em torno do ISEB praticou-se uma forma de interpretar o Brasil interrompida com o desastre de 1964. Mesmo com a superação do infortúnio do consulado de 1964, tal estilo de pensamento pouco abrigo encontrou no país em vias de democratização, em função de adoção de padrões epistêmicos positivistas e fundados em tosco behaviorismo por parte da ciência social brasileira, sobretudo a que se ocupa dos fenômenos políticos. Uma quantificação infrene e uma adoração institucionalista afastaram a tanto a inspiração humanística como a necessidade de associar a inteligibilidade do mundo político a indagações a respeito da natureza da vida social, de sua história e dos processos que a compõem.

Ademais, a modernização brasileira, pace 1964, deu azo à reorientação de um processo de esclarecimento e de interpretação do Brasil, em curso desde os primórdios do Estado Nacional brasileiro, atravessada, a partir dos anos 1970, pela profissionalização das ciências sociais, uma espécie de sedentarização de uma reflexão que antes gozava de certo nomadismo e forte presença na vida pública. O fato e o processo da profissionalização, como nos ensinou Luis Werneck Vianna, são, por certo, inevitáveis. O que se disputa é sua pretensa naturalidade e a crença de que eles se constituem como avanço indiscutível no processo de compreensão da experiência nacional.

Dissolveram-se, sobretudo, a idéia e a imagem do intelectual público, não como demiurgo onisciente, mas como provocador e fertilizador de uma reflexão sobre o que deve ser o país. Em grande medida, a inteligência analítica das ciências humanas e sociais, devidamente profissionalizada e padronizada, rendeu-se ao exercício de dizer e constatar o que existe. Quando se lança ao tratamento de questões públicas, o faz na persona do especialista do detalhe, com freqüência associado à implementação de alguma política pública específica. O personagem, seja dito de modo claro, além de resultar de dinâmicas sociais e culturais invencíveis, é em grande medida indispensável. É, nesse sentido, uma tolice a fobia ao especialista. A questão é de outra natureza: uma coleção de especialistas, ainda que necessários, configura uma reflexão de conjunto a respeito da experiência brasileira, de suas necessidades e seus futuros possíveis?

Nada mais atual, portanto, do que a reencenação de um ponto de vista do infinito. Parte de obra recente de Candido Mendes tem trilhado essa perspectiva, a partir de um projeto, lançado na década de 1990, de uma história imediata, iniciado no aziago consulado Collor de Mello e continuado através quase dezena de livros, publicados desde então. Livros multivariados, com percursos simultâneos, por vezes mais sugeridos do que perseguidos com sofreguidão, e, por isso, de difícil síntese. Mas, há neles um atrator inegável: a afirmação de uma perspectiva de esquerda democrática, com as marcas do que de melhor houve no pensamento brasileiro, e que, tal como sustentava Santiago Dantas – outra fonte permanente de Candido Mendes – a necessidade imperiosa da reforma social e do alargamento simultâneo da democracia e da promoção cultural das massas. Em Candido Mendes, reúnem-se, portanto, os temas de Vieira Pinto e Santiago Dantas: democracia, desenvolvimento e consciência crítica.

Em “Subcultura e Mudança”, encontramos, já à partida, a exigência de uma definição genuína do que deve ser o desenvolvimento. Passagem aparentemente trivial, mas decisiva para o entendimento do conjunto do livro: desenvolvimento, tal como o define o “senso comum”, é a “convergência dos desempenhos econômico, social e político de uma nação, somados, necessariamente (ênfase minha), à maturação de sua cultura”. A introdução da dimensão cultural, como aspecto necessário, reencena o tema da “tomada de consciência”, e permite a construção de um argumento que interpela o processo social e político recente no país.

Sem negar avanços relevantes, produzidos nos “anos Lula”, Candido Mendes, afasta-se da sensibilidade acadêmica predominante, apegada a indicadores de estabilidade e regularidade políticas e a índices econômicos e de mensuração social. Não que não sejam relevantes, mas parece haver algo que compulsoriamente deve ser levado em conta quando se trata de avaliar o estado da democracia, e que não se mede, posto que resiste à quantificação e a regularidades observáveis. Nesse sentido, o livro concentra-se no tema da reflexão do país sobre si mesmo. O argumento que desenvolve considera o que define como a aparição do “povo de Lula” como sinal da “maturidade do processo cultural brasileiro”. “Maturidade” que teria permitido, nos oito anos de Lula, a emergência de uma sincronização do processo histórico brasileiro, nos termos de uma definição completa do que seja o desenvolvimento. Lula, portanto, aparece na análise de Candido Mendes, como marcador dessa sincronia, presente na passagem da experiência da “nação para outrem” para a da “nação para si”.

O pano de fundo negativo dessa possível promoção é a persistência do que Candido Mendes denomina como “subcultura”, um conjunto renitente de crenças e hábitos refratários à democratização política e fundamental do país. A subcultura, no entanto, mais do que assentada nos atores clássicos da demofobia nacional, se apresenta, com força, na rarefação do próprio espaço público, agravada por uma idéia de inclusão associada predominantemente a acesso a dimensões materiais. Dessa forma, cabe a prudente indagação: em que medida a argamassa na qual consiste o “povo de Lula” configura o referido processo de “tomada de consciência”? Por vezes, o texto de Candido Mendes aposta nessa convergência entre o “povo” e o “seu” presidente, como sinal de um ponto de não retorno na direção de maior refletividade coletiva. No entanto, o texto não evita o reconhecimento da baixíssima qualidade dos hábitos políticos do país, o que inclui a invertebração dos partidos como atores relevantes na moldagem da consciência cívica. O próprio partido de Lula não parece isento a tal rarefação de uma função básica dos partidos políticos.

Fica, pois, da análise a fixação da emergência incompleta de um ator que se presentificou na identidade com “seu” presidente, como nunca antes na história deste país. Mas, se o que se trata é retomar toda a força analítica e crítica do conceito de desenvolvimento, tal como formulado pela geração de Candido Mendes, nos anos 50, tal presentificação parece ser insuficiente para a fixação de uma capacidade crítica independente e auto-reflexiva. Décadas de criminosa desconsideração da educação pública, associadas à crescente identificação entre política, segredo e heterodoxia penal, fizeram do espaço público um campo refratário e inabitável ao cidadão comum. O processo de tomada de consciência, cujo conceito em ótima hora é retomado por Candido Mendes, exige, como condição básica de consistência, a superação dessa trava histórica e estrutural. O entendimento dessa urgência torna compulsória a militância imagética de intelectuais públicos, com os riscos inerentes desse envolvimento. Em Candido Mendes, a fragmentação analítica e a riqueza metafórica operam a serviço de um desejo, tão forte como evidente, de fertilização e de dispersão de estímulos ao pensamento. Neste livro, o projeto da história imediata se vê diante do reconhecimento de um grave desafio no país de Lula: saber se as expectativas de uma imagem do que deve ser o país – calcada na associação entre desenvolvimento, democracia e consciência – podem ser preenchidas, ou, ao contrário se seremos vencidos pela rarefação cívica. Quem se dispuser a pensar a respeito terá, neste livro ótima companhia.

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Renato Lessa

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.