The Philosophy by the Foot of the Letter – Número 157 – 11/2017 – [116-118]

T

Este Breviário em PDF

Todos podemos pegar as traduções de Millôr Fernandes em The Cow Went To The Swamp e enxergar-lhes o efeito cômico: são ao pé da letra do português para o inglês. No entanto, a julgar por algumas notas e introduções de tradutores acadêmicos lusófonos, a comicidade se só se dá em mão única, e o português tem de aceitar as construções mais artificiais e menos inteligíveis em nome da literalidade. Veja-se que, no Tratado da natureza humana, a frase “Tudo o que é produzido sem causa é produzido por nada” (p. 109) tem uma nota de rodapé aonde lemos que “a frase gramaticalmente correta em português seria ‘Tudo o que é produzido sem causa não é produzido por nada’, mas isso deixaria sem sentido o raciocínio de Hume.” Ora, a ninguém que conheça português pareceria sem sentido o raciocínio de Hume por haver uma dupla negação com sentido de negação. Podemos dizer que não tem nenhum sentido a explicação da tradutora, e ninguém há de depreender dessa nossa dupla negativa que a afirmação tenha algum sentido. Mas o mais preocupante é a noção de que não se pode ser gramatical e filosoficamente correto em português. Como se nossa flor do Lácio fosse tão estranha à philosophia prima e à scientia causarum quanto o chinês ou o basco.

(Sobre a passagem de Hume, eis a citação extensa, junto ao original: “Tudo o que é produzido sem causa é produzido por nada; ou, em outras palavras, tem como causa o nada. Mas o nada nunca pode ser uma causa, assim como não pode ser alguma coisa, ou ser igual a dois ângulos.”; “Whatever is produced without any cause, is produced by nothing; or in other words, has nothing for its cause. But nothing can never be a cause, no more than it can be something, or equal to two right angles.” A própria tradutora adotou uma solução natural no fim da mesma frase, e de novo na seguinte: colocar um artigo e tornar o nada um substantivo. Outra possibilidade para a primeira passagem, natural e correta, seria dizer “Tudo o que é produzido sem uma causa por nada é produzido”.)

E não é caso isolado, essa concepção. Vemos uma parecida, mas menos grave, na tradução de excertos da Busca da verdade, onde o tradutor nos conta que “o francês de Malebranche é bastante fluente e agradável, dispensando um vocabulário técnico. Procurei ser o mais literal possível, mas sem perder de vista a correção do português.” (p. 35, grifo nosso) Há uma tensão entre tradução literal e correção do português, sendo ambas coisas a serem buscadas. É como se houvesse a língua de partida onde a filosofia do autor se expressa plenamente, e a de chegada, onde há de ficar, ainda que mal-ajambrada. Já a tradutora de Susan Haack diz, em sua apresentação ao Manifesto de uma moderada apaixonada, ter optado

por uma tradução mais direta e próxima do original, em vez de buscar de forma livre uma adaptação do texto ao idioma português. Em certos casos, uma tradução literal pareceu-me mais eficiente não somente para conduzir os leitores à escrita rigorosa e precisa da autora, mas também para preservar seu estilo. (p. 22)

Parece, então, haver duas formas de tradução: a literal e a livre adaptação, sendo a primeira a preferível. E a superioridade da literalidade faria com que o “jugement” de Malebranche devesse se traduzir como “julgamento” e não como “juízo”; ou até mesmo, em Haack, “phrase” por “frase” e não “expressão”, evitar ao máximo subjuntivos (inexistentes em inglês) e criar a palavra “autodecepção” (HAACK, 2011, p. 62) para falar do ato de se enganar deliberadamente. Além, claro, de impedir a dupla negativa do português. Rimos ao ler The Cow Went to the Swamp, mas entre acadêmicos pode-se ter por índice de seriedade e rigor a literalidade em português.

(Sobre o porquê de juízo, e não julgamento: toda a tradição cartesiana em português usa “juízo”, e quem leia as traduções de Descartes e Malebranche no Brasil sem se perguntar pelo original achará que ambos falam de coisas diferentes (julgamento e juízo), sem ser o caso. A escolha por juízo em vez de julgamento tampouco é injustificada, pois é a palavra que, assim como jugement em francês, traduz o iudicium latino – e lembre-se que Descartes escrevia também em latim.)

Decerto Paulo Rónai não terá pego exemplos tão estranhos, mas em sua Escola de tradutores há um ensaio para tratar do mito de que tradução boa é tradução literal:

Pensa-se geralmente que a tradução fiel é a tradução literal, e que, portanto, qualquer tradução que não seja literal é livre. A maioria dos candidatos a tradutor, ao serem convidados por uma editora, pergunta invariavelmente se a casa deseja traduções fiéis ou livres, literais ou literárias. Essa pergunta é feita na tácita suposição de que o requisito de fidelidade concerne apenas a um dos dois idiomas, aquele do qual se traduz. Uma versão literal, isto é, fiel a apenas uma das duas línguas, é impossível. (p. 21)

Em seguida, para ilustrar o ponto, menciona o caso de um romance epistolar anglófono onde mocinho e mocinha começam distantes e terminam íntimos. Ora, o tradutor literal deveria considerar que todo you é igual – e aí teríamos ou o par distante tratando-se por “você”, ou o casal apaixonado tratando-se por “o senhor” e “a senhorita”. Para ser fiel também ao português, é preciso considerar que em nossa língua os pronomes de tratamento mudam a depender da relação que haja entre os falantes, e portanto escolhê-los conforme o contexto. Longe de ser um autômato literal, o tradutor deve escolher a melhor opção lusófona para expressar o pensamento daquele texto.

E não pensemos que escolhas sejam possíveis somente em literatura. Afinal, como aponta Rónai, línguas têm peculiaridades que, na versão para o português, demandam opções – quer conscientes, quer inconscientes. O tradutor do latim e do russo terá de escolher sempre entre não pôr artigo, pôr artigo definido ou indefinido. “Cada um desses casos”, diz ele, “é resolvido segundo as leis orgânicas do português; o original não fornece indicação alguma. Se existisse tradução literal, isto é, fidelidade unilateral, o problema nem surgiria e deixaríamos de pôr o artigo ao longo de toda a obra.” (p. 22)

Deixemos de lado, então, a ideia de que tradução literal é tradução fiel. E expulsemos esse viralatismo linguístico da nossa filosofia.

***
Bruna Frascolla Bloise

MALEBRANCHE, N. A Busca da Verdade (Textos escolhidos). Trad. Plínio Junqueira Smith. São Paulo: Paulus, Discurso, 2004.

HAACK, S. Manifesto de uma moderada apaixonada. Trad. Rachel Herdy. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2011.

HUME, D. Tratado da natureza humana. 2. ed. Trad. Déborah Danowski. São Paulo: UNESP, 2009.

RÓNAI, P. Escola de tradutores. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.