Para Patrick Burglin, in memoriam
Importantes interpretações da origem e conformação do pensamento político ocidental identificam em Platão dois marcos fundamentais que diferenciavam sua posição diante do universo político que o rodeava. Com ele, a invenção da filosofia política se punha contrária à polis e, como seu sustentáculo, desenvolvia um conceito sistemático de justiça. A crítica a um sistema pautado na atividade e não na razão coloca a existência da política em xeque na medida em que o governante, e o critério para se governar, é aquele que sabe, tal qual o médico sabe como cuidar da doença. Assim, desse ponto de vista, a teoria da justiça é a primeira e até hoje mais robusta formulação contrária à política enquanto atividade humana, inventada por humanos para os humanos como convívio sustentado no diálogo e no conflito não violento. A boa ordem, a ordem justa por excelência, só é capaz de se impor em uma cidade quando governada por uma aristocracia treinada, justamente o que falta ao governo democrático (ARENDT, 1998; WOLIN, 2004).
Se transpusermos essa tensão não apenas entre democracia e aristocracia, mas sobretudo entre política e justiça para o século XX, veremos de modo semelhante a crítica de Philip Pettit (2012) a John Rawls, principal formulador contemporâneo da teoria da justiça, de que, para ele, a dominação não é um problema em si. Uma vez dominado, o indivíduo é alienado de sua cidadania e, consequentemente, da atividade política. Independentemente da pertinência da crítica, o fato de existir essa posição mostra a pertinência da pergunta: a realização da justiça inviabiliza a política? Na modernidade, diante de uma perspectiva institucional, torna-se necessário reformular a questão: os sistemas judiciais blindam o desenvolvimento da política como esfera autônoma das relações humanas? Em outras palavras, a aplicação da justiça é inversamente proporcional à materialização das vontades políticas e, portanto, democráticas?
Evidentemente, existem teorias da justiça compatíveis e até mesmo interdependentes da democracia, como a de Tocqueville, no dizer do próprio Rawls (1993). Mas apenas o são na medida em que a justiça se mundaniza, politiza e perde seu caráter transcendental e absoluto, pois os cidadãos “preservam seus direitos básicos e liberdades” (RAWLS, 1993, p. 205. Tradução nossa.). “A ideia é que sem uma ampla participação na política democrática por um vigoroso e informado corpo de cidadãos […] até mesmo as mais bem formatadas instituições políticas cairão nas mãos daqueles que pretendem dominar” (RAWLS, 1993, p. 205. Tradução nossa.). A reformulação de uma teoria da justiça carrega nas tintas da democracia justamente para torná-las compatíveis e aproximarem-se da política. Mas o que dizer das teorias da justiça que não se legitimam pela política?
Em 1919, Max Weber (1968) já se perguntava algo semelhante quando chamava a atenção para o fato de que o Ocidente rumava para um lugar perigoso à medida que desqualificava a política e enaltecia a tecnocracia. Em primeiro lugar, a questão fundamental é que existem decisões que não são, e não há a possibilidade de serem, técnicas; são, antes, decisões políticas e a democracia, tal qual formulada pelo Ocidente, é o instrumento mais eficaz de tornar tais decisões progressivamente mais legítimas. Se a atividade política prescinde, em tese, da democracia como forma institucional de governo, sem ela, a ameaça é constante. O Ocidente ainda não inventou outro modo de sustentar a política sem que haja, corrompida e imperfeita que seja, democracia.
Esse ponto converge autores tão díspares quanto Weber e Hannah Arendt. Se o primeiro anunciou a ascensão do totalitarismo, a segunda deu-lhe significado conceitual: o primeiro regime de dominação no qual a política está suspensa por completo, a sociedade se torna presa do Estado e a liberdade volta a ser o problema fundamental das relações humanas (ARENDT, 1962). Mas, como ensinou o mesmo Weber (2004), as formas de dominação possuem, cada uma, sua legitimidade e a mais característica do Ocidente moderno é a dominação racional-legal, cujo tipo ideal é a burocracia. Não é coincidência que esta seja uma ordenação pautada na legalidade, na técnica, no conhecimento a fim de distribuir adequadamente a justiça. Aliás, vê-se que ela pode, inclusive, subverter a ordem democrática em favor da jurídica.
O ponto de contato entre essas coisas é igualmente uma invenção grega, amplamente absorvida pelos republicanos modernos: o império da lei. A tensão entre o governo dos homens e o das leis é, como a justiça, tão antiga quanto a filosofia política. O próprio Platão pareceu estar ciente disso quando transportou o rei-filósofo para o regime legalista de sua obra final, As Leis. E Aristóteles jamais deixou de anunciar que as formas retas de governo tinham suas garantias nas leis. O império da lei, ao contrário do dos homens, é a garantia mais bem-acabada de que não existam arbitrariedades dos governantes e, portanto, todos sejam igualmente submetidos a ela, não importado marcas de origem, credo, posição social, ideologia etc. Platonicamente, entende-se assim, a confecção e sobretudo a execução da lei deve ser feita apenas por aquele conjunto de indivíduos capazes para tal, de modo a não deixar que indivíduos que não nasceram ou não foram preparados para isso assumam a condução dos negócios públicos. Assim, a justiça, devidamente justificada pelo império da lei, se coloca de fora da política e a submete a seu bel prazer e a limita a seus caprichos, com seu martelo e sua espada. A justiça é, por vezes, o império da moral contra a existência da política.
A questão se torna complexa quando se observa que ao menos parte da função judiciária em suas atribuições de cumprimento das leis depende de algum grau de interpretação, afinal, essa técnica, mesmo que cientificamente orientada, jamais terá a precisão das ciências naturais. Essa obviedade estranhamente causa bastante desconforto de diversos círculos. Antes de uma pomposa hermenêutica jurídica, basta apenas que se reconheça que o império da lei atribuindo as responsabilidades aos homens e mulheres que sabem o que fazem abre enorme fenda para o arbítrio interpretativo de alguns. Ora, se a lei existe para obliterar arbitrariedades e, uma vez convalidada pelo necessário conhecimento técnico-científico de quem a maneja, o seu objetivo fundamental cai por terra. O papel da filosofia política como a mais perigosa inimiga da política retorna à cena: diante de leis previamente estabelecidas, se não as mudarem, quem de direito ou de fato, restam apenas agentes para fazer com que sejam cumpridas, sob pena de seu próprio rigor.
Voltamos aqui ao problema da democracia. Problema por dois motivos: primeiro porque a democracia não é o governo dos melhores ou daqueles que sabem o que estão fazendo, segundo porque não há outro meio legítimo de se produzir leis. A democracia encara as leis de modo distinto, elas não são objeto externo do qual se vale a fim de buscar legitimação para seus atos, muito menos um instrumento de contenção do poder. Ao contrário, da ótica democrática, as leis são a garantia da realização da vontade popular, do autogoverno, do regime no qual o povo governa para si mesmo. Mas não apenas isso.
O mais importante na relação entre a democracia e a lei é o fato de que elas se fazem a partir de uma polaridade conflitiva e interdependente reciprocamente espelhada. As leis garantem o Estado de direito e, com ele, a Constituição que lhe dá a forma e a democracia. Esta garante que as leis sejam revistas e atualizadas, adaptadas às paixões, interesses e ideologias de cada circunstância. A volatilidade da democracia é compensada pela estabilidade das leis num processo virtualmente infinito de produção, execução e revisão. Nesse sentido, basta que se compreenda que as leis são submetidas ao princípio democrático da soberania popular, porquanto aquelas dependam destas. Esta definição rousseauniana de república, regime regido por leis, consolida e não reduz a soberania popular. A diferença de princípio, neste ponto, para com a aristocracia não é, em si, a garantia contra a arbitrariedade, mas a percepção de que a confecção das leis, tal qual a tecedura da política, não é exclusividade daqueles que sabem. Em outras palavras, a democracia é o regime que pressupõe que a política não é da esfera do conhecimento, mas da invenção.
Nesse ponto, a democracia se reencontra, problematicamente, com a justiça. Como, invariavelmente, conferir a cada um o que lhe é devido se a esfera que determina o cumprimento, mesmo que coercitivo, é, em última instância, exclusividade da soberania popular? A conclusão pelo governo pautado no conhecimento e não na opinião faz com que se negue peremptoriamente a democracia. Baluartes da moralidade, os defensores acríticos da justiça acabam por sustentar a soberania do judiciário em detrimento da democracia. Parece que por esse caminho chegaremos à fatídica escolha: democracia ou justiça?
Do outro ponto de vista, o problema pode ser reformulado de modo alternativo: os critérios para o estabelecimento da justiça são fundamentalmente distintos daqueles das democracias. Não é sem razão que, entre os gregos, as aristocracias eram regimes pautados em eleições, ao passo que as democracias eram nos sorteios. Não importando sob quais sejam os critérios, quando se vota em alguém se vota no melhor. Mas o que a aristocracia e a democracia ainda têm em comum é que ambas convivem com esferas de deliberação e participação, do reconhecimento mútuo de que o que se faz não é da ordem da natureza e, por isso, aceita-se a igualdade artificial dos homens, aceita-se a política. Possivelmente ainda seja Tocqueville (1963) o pensador que melhor identificou a tensão e a proximidade entre os princípios aristocráticos da diferença e os democráticos da igualdade, porém, percebeu ele também que ambas as formas são igualmente capazes de sustentar a política. Quando suspensa, entramos, modernamente, no mundo totalitário da tecnocracia.
Se a aristocracia deve ser criticada pela democracia, pelo critério do conhecimento para o governante, ambas não podem se furtar a criticar o totalitarismo. Ora, mas elas não podem fazê-lo do mesmo modo ou com a mesma força. A democracia é a que possui a vocação e os instrumentos necessários para combater a suspensão da política, somente ela é capaz de ordenar e reordenar a correlação de forças a fim de impedir o pior dos desfechos. Ao passo que a aristocracia avizinha-se perigosamente dos regimes tecnocráticos quando pendem mais ao critério do conhecimento do que o da deliberação. O problema a ser enfrentado é da altura de sua própria grandeza, mas o combate é inédito justamente pelo fato de que as justificativas ora mobilizadas jamais foram enfrentadas.
A judicialização de todas as esferas da vida cotidiana se mostra como uma tendência em todo Ocidente. Desde o fim da Guerra Fria, e com ela o esquecimento interno nos países para postos secundários do militarismo, a ameaça à política torna-se progressivamente mais forte do que a ameaça à democracia, e como a primeira é quesito para a segunda, a coisa pode se tornar ainda mais grave. Não se trata apenas de juízes autointitulados reis-filósofos ou de processos contra prefeitos que não taparam os buracos das ruas e quebraram a perna de um transeunte qualquer; trata-se do deslocamento invisível do eixo da soberania nacional. O que sustenta tal tendência, certamente avalizada pelo discurso midiático, é justamente aquilo que a difere da política: o conhecimento técnico. Posto como questão a priori, e devidamente adornado, o conhecimento técnico desautoriza o que de mais significativo o Ocidente produziu, o que de mais belo os gregos legaram, desautoriza a vocalização pública da divergência. Constrói-se então um discurso legitimador da ordem sustentada em leis, as mesmas que são simultaneamente a flecha e o alvo das democracias. Sob a exclusividade do império das leis, só os magistrados governam e a política encontra seu fim. O problema maior não é que os setores ávidos pelo justiçamento legal legitimem golpes supostamente ancorados em leis, mas que não enxerguem o abismo dos regimes totalitários, repletos de silêncio e harmonia. No fim, o sereno e calado consenso nacional não passa de um gigantesco cemitério.
Bater de frente com mais recursos jurídicos não vai além de deslocar a partida para o campo do adversário. A eficácia do instrumento de combate depende da própria democracia compreender a si mesma. O argumento é oriundo de Giovanni Sartori (1994). Não obstante a ira que ele causa em muitos pensadores progressistas no mundo, e por isso mesmo o utilizamos aqui, destacaremos apenas um ponto de sua encadeada teoria. A peculiaridade da democracia diante de outras instituições humanas, com particular ênfase nos sistemas judiciais e economias de mercado, é que ela não é um modelo cujo comportamento dos agentes pode-se supor a priori. Os sistemas judiciais, por definição, só funcionam porquanto seus agentes se comportem como se soubessem seus respectivos papéis, pressupondo que conhecem seus interesses. De modo similar, as teorias econômicas mais benquistas na atualidade supõem que o funcionamento da economia dependa que seus agentes tomem decisões como se conhecessem o modelo explicativo. Em suma, os sistemas judiciais e as teorias econômicas ortodoxas absorvem o comportamento humano tal como ele é, no primeiro caso (porque são reflexos dele), ou julgam terem modelado com perfeição esse comportamento, no segundo. Em ambas as situações, não importa para as partes conhecerem as regras de condução do sistema no qual estão envolvidas, seja no caso do sujeito que processa a prefeitura não saber as técnicas jurídicas (e por isso depende do especialista), seja do agente econômico que não sabe nada de teoria econômica. Em tese, os sistemas funcionam a despeito do conhecimento dos agentes de suas regras básicas.
O erro basilar de inúmeras interpretações da democracia é julgar que ela é um sistema como o jurídico ou o econômico, funciona malgrado o entendimento dos atores saberem bem suas regras e suas posições. Os meados do século XX viram o auge dessa interpretação comportamentalista que, além de buscar unidade nas ciências do Homem, logrou fazer efeito em sistemas democráticos em perfeito funcionamento sem que as partes saibam seu papel em todo o processo. Como peças de uma engrenagem complexa e finamente ajustadas pelo conhecimento técnico, a democracia não seria nada além de um regime legitimador de resultados de escolha (DOWNS, 1957; SCHUMPETER, 2008). Deve-se, e é aqui que entra a força do argumento de Sartori, antes, ter-se claro que o desconhecimento das regras do sistema inibe a democracia. A democracia não é um relógio ajustável, não é um motor, muito menos um sistema de calibragem perfeita. A perfeição, em si, é tema para a justiça.
Uma vez que se ordene um sistema de justiça – seja dar a cada um o que lhe é devido, distribuir as propriedades convenientemente, maximizar as posições inferiores etc. –, ele pretende-se hermético, mesmo quando vazio de conteúdo ou aberto a mudanças. Não foi ninguém menos que Leo Strauss (1959) quem disse que a filosofia política é o conhecimento do justo, de sua descoberta, com todo peso que isso envolve. A imperfeição da democracia é ontológica, por isso, se opõe à justiça. Dádiva de poucos, a justiça se deixa ver apenas àqueles que a ela se dedicam ou aos que nasceram para tal. Invenção de muitos, a democracia depende de um habitus político. Assim, justamente o ponto no qual a justiça se legitima, retira autoridade da democracia. Antes de uma consequência inevitável das condições históricas ocidentais, o que faz do discurso da judicialização da vida um processo progressivamente vencedor é a crença de que, tal como ele, a democracia depende de conhecimento técnico.
É verdade que tudo isso nada explica da convulsão política pela qual passa o Brasil hoje, mas coloca no devido lugar a suposta legitimidade de juízes e aparelhos de Estado. Em que pese a evidente necessidade de se julgar e punir os possíveis culpados, o risco de a democracia ser encarcerada junto é grande.
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Desde a posse de Dilma, ou antes com os pedidos de recontagem dos votos ainda em 2014, muitas causas se levantaram sobre o impeachment. A coisa engrossou com a suposta alquimia fiscal e chegou ao sítio de pobre, segundo o prefeito olímpico, do Lula ou do amigo dele. O imbróglio jurídico só fez aumentar e entrar no vocabulário das conversas de elevadores com estranhos. Entre reclamar do calor e das enchentes, restam ainda “conduções coercitivas”, “teoria do domínio do fato”, “foro privilegiado”, “ADIn”, “Zavascki”, “Lewandowski” etc. A judicialização da vida judicializa nosso vocabulário, evidência cabal de que o discurso tecnicista já se encontra imiscuído no cotidiano. Não precisamos entrar nele, mas precisamos entender outra coisa. Regimes presidencialistas como o nosso, sustentados no fato de que o poder executivo não advém do legislativo, não podem, por definição, ter impeachment político, pela singela razão de que o que confere as opções políticas institucionalizadas do país é apenas a eleição. O Congresso é chamado à responsabilidade para dar legitimidade política a um processo que se remete a um poder constituinte, inclusive, como forma de contrabalanceamento ao judiciário. Ou seja, o pior dos governos não pode sofrer impeachment por isso, e o melhor não pode terminar o mandato se cometer algum crime.
A posição mais radical de defesa da tecnicidade do judiciário veio justamente da OAB. Em entrevista a O Globo no dia 27 de março, à direita do Merval na página quatro, Claudio Lamachia, presidente da ordem, justificou a posição de sua instituição em favor do impeachment afirmando que “este processo de exame no âmbito da instituição foi absolutamente democrático. […] Foi uma decisão absolutamente técnica”. A evidente contradição de duas frases na mesma resposta foi arrematada pelo desconforto de ter que admitir que a OAB entregará os processos não ao presidente da Câmara, mas ao protocolo da casa, numa vã tentativa de apresentar uma lisura pela burocracia.
Entre pedaladas e pedalinhos, a oposição se perdeu por completo nos acontecimentos. Nas manifestações do 13 de março, quando a Globo repetia incansavelmente que era a maior mobilização que jamais acontecera na história do país, Aécio, depois de chamado de oportunista pelos manifestantes, num quebra-queixo reproduzido pela mesma Globo, disse literalmente que há “três caminhos para o Brasil: o impeachment da presidente, a cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral ou a renúncia. Uma das três saídas possibilitará o Brasil voltar a sonhar com um futuro melhor”, já que “essa é a beleza da democracia. Em paz e harmonia as famílias vieram para as ruas dizer que o Brasil merece algo melhor. E vamos buscar a saída para esse impasse”. A semelhança com Carlos Lacerda – “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.” – não é proposital, mas antes um sintoma. Sintoma de um oportunismo cego, de uma percepção do que se está em jogo é, na melhor das hipóteses, a destruição de uma agenda de governo apocalíptica, um descarrilamento da economia, a perda do controle monetário. O ponto que interessa é que as opções dadas pelo derrotado em 2014 são contraditórias entre elas mesmas: se a Dilma sofrer impeachment pelas pedaladas, não seria pela cassação da chapa (que incluiria Temer e adjacências), se pela cassação da chapa, não seria pelas pedalas. A não ser que ela, além de ter responsabilidade direta com as supostas fraudes de campanha, também as tenha com relação às pedaladas e, além disso, reconheça e renuncie. Pronto! Cercada por todos os lados. Cercada pela cantilena histórica neste país que depõe sob pretexto da corrupção. Cercada pelo discurso legitimado pela justiça.
A questão fundamental é se é possível existir oportunismo humano tamanho capaz de turvar a visão a um palmo do nariz. A história dos bancos escolares afirma que Lacerda realmente acreditou que ele seria o nome depois do golpe. Não sei o que nossos netos lerão nos bancos escolares. Mas se realmente a história ensina e a oposição aprendeu alguma coisa com ela, deveria atentar para o fato de que está ajudando a sepultar novamente a política, jogando o governo aos leões, legitimando a justiça.
Das pedaladas da Dilma aos pedalinhos do Lula, encontraram-se, diz-se sem meias pelos cantos sob nomes diversos, um sem número de motivos para a deposição. Na verdade, basta um. O problema é que ele tem que ser verdadeiro. Há poucos anos havia a preocupação de que as oposições, à direita e à esquerda desde o governo FHC, votariam sistematicamente contra o governo como forma de enfraquecê-lo, uma vez que estavam reféns da fórmula do Millor Fernandes para a imprensa e, por isso, não eram armazéns de secos e molhados. Preocupavam-se alguns com o fato de que as oposições não sabiam ser oposições e, assim, recorriam à “política” para barrar a agenda governamental, isto é, utilizavam prerrogativas para obstruir votações, acordavam pontualmente com partidos menores etc. Contudo, nem os mais pessimistas apostariam na velocidade com a qual o discurso intervencionista cresceria no Brasil.
Adeptos de teorias da conspiração rapidamente lançariam sinais de alerta sobre o conglomerado judiciário-oposição. Mas envergonharam-se de suas interpretações ocultistas conforme as listas dos suspeitos cresciam. De maneira não tão diferente, o dogma de que no Brasil rico não é preso começou a ser questionado. E quando dogmas são questionados, como todos sabem, surgem reformas. As mais robustas empreiteiras desse país estariam há anos em conluio com todos os governos, elas sim eram os maiores armazéns de secos e molhados.
Um dos problemas mais relevantes postos por Benjamin Constant há uns duzentos anos é que se todos desejarem apenas desfrutar de suas liberdades individuais com suas riquezas privadas, quem vai governar? Já que na política não existe vácuo, Aécio assume. Mas se o Estado se despolitizar, quem sabe o STF não assume? Não seria tão perigoso esse discurso golpista não fosse o fato de que essa legitimação é feita em Curitiba. Desta aprazível cidade surge uma das mais contundentes ameaças a qualquer definição rasteira e mesmo conservadora democracia. Fiquemos com um lugar comum na ciência política para a definição de democracia: Robert Dahl (1956). Aliás, não é necessário tanto, apenas uma das oito condições assumidamente limitadas: simetria de informações.
É tão somente um fato da realidade que as informações sejam difusas em sociedades contemporâneas. Mas é condição igualmente prejudicial à democracia que as informações de relevo político sejam publicizadas apenas quando transpõem um filtro, particularmente se este filtro tiver um carimbo do conhecimento técnico, a legitimidade da justiça.
A deslegitimação do sistema foi ainda agravada com o início das prisões e a divulgação dos casos de corrupção. A deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada. […] As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite. (MORO, 2004, p. 57)
Aliás, com relação à divulgação das gravações telefônicas, se realmente Lula, Dilma e Jaques Wagner não sabiam que estavam sendo gravados, merecem todos os votos do mundo pelo resto dos tempos. E quando silenciados, era porque o ex-metalúrgico dizia um palavrão que eu, assim como o Bonner, não preciso repetir. “Os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa” (MORO, 2004, p. 59). O vazamento seletivo, como já entrou para o vocabulário comum, vai além da estratégia das mani pulite, além da blindagem da oposição, além do questionamento da legitimidade de tudo, ele define a agenda. E quando a agenda política é definida pelo judiciário, como dizia o legalista Brizola, “estamos mal”.
O suspiro da democracia veio quando o STF apontou discreta discordância com Curitiba. Longe de se poder confiar no STF para tal função, para alguns, talvez excessivamente realistas, trata-se apenas de disputa de ego, para outros, mais pragmáticos, se a justiça brigar, talvez haja controle interno. A “magistratura e o Ministério Público brasileiros gozam de significativa independência formal frente ao poder político. […] O destaque negativo é o acesso aos órgãos superiores, mais dependentes de fatores políticos” (MORO, 2004, p. 61). E ai voltam-se os olhos todos para as instâncias decisórias. Incríveis sessões parlamentares na Câmara dos deputados, em meio a esta bagunça generalizada, foram absolutamente harmoniosas, quase silenciosas, um cemitério com 513 caixões. Finalmente, é a vitória da justiça.
A independência judiciária, interna e externa, a progressiva deslegitimação de um sistema político corrupto, e a maior legitimação da magistratura em relação aos políticos profissionais foram, portanto, as condições que tornaram possível o círculo virtuoso gerado pela operação mani pulite. (MORO, 2004, p. 58)
Se precisássemos lembrar do presidente da Câmara e do quanto lhe interessa correr com as sessões, o faríamos. Mas o processo segue sua burocracia, baluarte do direito e da legalidade.
As pedaladas e os pedalinhos não precisavam justificar a aceleração do tempo, o eminente presidente já o faria. Mas eles acabaram por o fazer. Afinal, lei é lei, não importa o montante, não importam os valores, importa o rigor de sua letra fria. Mas é no aquecimento de tal frieza que se vê o caminho a seguir. A justiça é cega porque não deve ver as partes envolvidas, deve distribuir o que é de direito a cada um sem considerar se o Fulano roubou a galinha porque tinha fome ou se o Marcelo (nome fictício) comprava parlamentares para manter contratos bilionários. É dessa imparcialidade que o Brasil precisa, diz-se por aí. E essa imparcialidade, defendida na mídia, deve governar a todos. Mas quando se perde o controle democrático, não se perde apenas a imparcialidade, perde-se a democracia.
A propósito, na Itália, Berlusconi ainda era primeiro-ministro em 2011, duas décadas depois da operação mani pulite.
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Luís Falcão
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