Desde o dia 03 de fevereiro, um dia depois do aniversário de quinze anos da posse de Hugo Chávez, em 1999, centenas de pessoas participaram de uma assembleia, convocada pela oposição para expressar sua insatisfação com os rumos do país. Na mesma semana, se intensificaram as manifestações dos estudantes, que desde o final de janeiro se reuniam para protestar contra a insegurança, atraindo a atenção da mídia internacional. Percebendo a oportunidade com que a fortuna lhes agraciava, um pequeno grupo de líderes oposicionistas resolveu que era o momento de deixar a phrónesis de lado para exigir a imediata saída dos chavistas no poder, lançando o slogan “La calle es la salida” para nomear o movimento que também tem sido chamado de 12F[1], em referência à data da conclamação, no dia 12 de fevereiro. Desde então, a Venezuela se encontra em convulsão. Entrincheirados em barricadas, operações de resistência civil ou reunidos aos milhares nas ruas, os cidadãos se dividem na defesa ou ataque ao governo e são alvo de atiradores misteriosos, desautorizados e radicalmente criticados por ambos os lados do conflito.
As cenas exibidas, contudo, não parecem inéditas, remetem a um enredo que remonta ao início do século XXI. Neste filme, há dois pontos altos, que compreendem investidas da oposição para derrubar um governo eleito por meio de estratégias à margem da legalidade: a tentativa de golpe, fracassada em 2002; e, o paro petrolero, uma greve geral principal setor produtivo do país, cujas consequências para a economia nacional são dramáticas. Por fim, há um desfecho: o referendo revogatório, instaurado em 2004, quando o então presidente se reafirma como herói nacional, derrotando seus oponentes nas ruas e nas urnas, drenando, assim, a legitimidade de seus antagonistas.
Entretanto, há uma segunda hipótese: a de que o roteiro iniciado em 2014 não seja parte de um remake, mas de uma continuação, uma sequência que revela os verdadeiros protagonistas da narrativa. Essa suposição, amplamente defendida pela academia e pelos meios de comunicação nacionais e internacionais é que, embora tenham perdidos as batalhas iniciais, os verdadeiros heróis surpreendam o público conquistando a vitória em um grand finale, capaz de sepultar de vez o bolivarianismo.
Diante do presente enredo, é fácil constatar que a oposição (na Ucrânia, na Síria, no Brasil e em boa parte do mundo) costuma ostentar uma imagem mais cool do que os seus respectivos representantes no governo, ainda que isso pouco revele sobre suas ideias e comportamentos. Não obstante, é preciso sublinhar que encontramos no caso venezuelano um exemplo hiperbólico. O presidente, assim como seu antecessor, é feio, cafona, sempre aparece suado, mal vestido, mal penteado e fazendo discursos longos e inflamados sobre um tema que (infelizmente) saiu de moda: a luta de classes. Os líderes da oposição, ao contrário, costumam ser lindos, charmosos e bem educados; discursam sobre liberdade e advogam pela (re)união dos cidadãos sob uma só bandeira: a da Venezuela (o que explica o uso constante do uniforme e de bonés da seleção nacional de futebol por suas lideranças e apoiadores).
Em um país que já teve Miss Universo[2] como candidata à Presidência, a menção honrosa no quesito charme e beleza vai para Henrique Capriles, principal líder da oposição[3] – desde 2009 reunida na chamada Mesa da Unidade Democrática (MUD). Solteiro, filho de empresários do setor de telecomunicações e de bens alimentícios, Capriles estudou nos melhores colégios e universidades católicas do país, mantendo-se devoto praticante. Ademais, ostenta um lindo rosto e um corpo atlético – atributo muito ressaltado quando disputava a eleição de 2013 contra um adversário com câncer em estágio avançado que, em resposta, atacava sua virilidade. A disputa em questão, ainda que possa parecer bizarra, tendo em vista o processo de pasteurização aparentemente indispensável aos presidenciáveis brasileiros, é bem representativa do padrão consideravelmente mais cítrico, radical e estridente, dos embates situados no país vizinho[4].
Não obstante, nessa categoria, o prêmio principal certamente vai para o protagonista do último levante oposicionista, Leopoldo López. Malhado, moreno e com um topetinho muito em moda na década passada, sobressai como sex symbol, mas não é apenas um rostinho bonito. Também proveniente de família abastada e tradicional, vinculada aos setores industrial e petrolífero (sua mãe é executiva da PDVSA); têm uma árvore genealógica que remonta ao patriarca fundador e ao primeiro presidente do país[5]. Leopoldo terminou os estudos em uma escola particular norte-americana e, em seguida, graduou-se no Kenyon College e pós-graduou-se em Harvard. Após um breve período como analista da PDVSA e professor da Universidade Católica Andrés Bello (a mesma em que estudou Capriles), ingressou na política tendo sido prefeito por dois mandatos consecutivos (2000-2008) do distrito caraquenho de Chacao[6].
Além da beleza, os dois personagens apresentam uma trajetória política similar. Em 2000, fundaram juntos o partido Primeiro Justiça (PJ)[7] pelo qual conquistaram suas primeiras prefeituras[8] (Chacao e Baruta[9]). Em 2002, lideraram uma tentativa de golpe[10] contra o então presidente e estrela mor do país, Hugo Chávez, substituído por um nome do baixo escalão no remake (ou na continuação) que começa a ser produzido este ano, com cortes no orçamento (tendo em vista os baixos preços do petróleo nos dias atuais).
O roteiro original se inicia logo após o tumultuado período da constituinte, entendido como uma clara vitória do governo, quando a oposição inicia seu contra-ataque. Esta investida, no entanto, não foi operada através de canais institucionais, pois, tendo em vista a fragorosa derrota dos partidos oposicionistas nas eleições legislativas de 2000, foi feita uma opção por estratégias insurrecionais alheias aos marcos da legalidade. Assim, percebendo-se sem espaço para fustigar o governo no Legislativo essa contestação migrou-se para outros âmbitos. A escolha, todavia, acabou por transformar o país num campo de batalha, análogo ao que se observa no presente momento. Foi o que se observou, em fevereiro de 2002, quando executivos da PDVSA, fortemente identificados com a oposição, rejeitaram nomes indicados pelo Executivo para ocuparem cargos na administração da empresa. A alegação dos descontentes foi falta de mérito por parte dos indicados, porém havia claramente uma postura de rechaço à política petroleira empreendida pelo novo governo.
No dia 9 de abril, a foi convocada uma paralisação de trabalhadores da PDVSA em respaldo à decisão dos executivos. A manifestação, contaria com declarações de apoio por parte da Fedecámaras, da Igreja Católica e de outras organizações oposicionistas. No dia seguinte, as lideranças da oposição decretaram uma greve geral por tempo indeterminado e convocaram uma marcha que partiria do Parque del Este, no leste de Caracas, e terminaria no edifício da PDVSA, na mesma região da cidade. No dia 11 de abril, a volumosa passeata da oposição teve início por volta das 10 horas da manhã, e percorreu o trajeto anunciado. Mas, ao meio- dia, ao chegar ao edifício da PDVSA, os organizadores da manifestação, aparentemente animados com as dimensões da marcha, procuraram convencer a multidão a dirigir-se ao palácio presidencial de Miraflores, com o propósito de ? como assinalou Carlos Ortega ? “tirar Chávez”(LÓPEZ MAYA, 2009, p. 204).
Diante desse movimento da oposição, milhares de cidadãos se encaminham para a frente da sede do governo com o objetivo de defendê-lo, ao chegarem lá, encontram outros tantos que ali faziam vigília desde o dia 9. Em meio a este incandescente cenário de guerra estava a Guarda Nacional, sob a impossível orientação de manter a ordem. No “momento em que os manifestantes chegaram ao centro da cidade, alguém disparou um primeiro tiro. Os meios de comunicação exibiriam sem cessar, nesse dia e nos seguintes, cenas daquilo que eles afirmaram ter sido a ação de franco-atiradores chavistas contra civis antichavistas na Ponte Laguno. Esse pretenso massacre de civis, que acabou por revelar-se uma manipulação de imagens realizada pelos canais privados de televisão, serviu de justificativa para o golpe de Estado.
Poucas horas depois, entre as seis e as dez horas da noite, a mídia veicularia os pronunciamentos de militares declarando desobediência à autoridade do presidente da República. Às quatro horas da manhã do dia 12, Chávez saiu com sua escolta de Miraflores para entregar-se no Forte Tiuna, onde foi preso” (LÓPEZ MAYA, 2009, p. 243). Em seguida, Pedro Carmona, presidente da Fedecámaras, instala-se na Presidência da República e é reconhecido por Estados Unidos e Espanha como legítimo mandatário da Venezuela.
Embora pareça resultado de uma conjuntura fortuita, posteriormente uma série de evidências teriam indicado que o golpe de 2002 foi amplamente planejado pelas forças de oposição, respaldadas por alguns atores internacionais. Isto demonstra que o respeito à institucionalidade liberal já não pode ser visto como uma prerrogativa das forças de oposição, francamente dispostas a contorná-las quando os canais legais estiverem indisponíveis a sua vontade.
Não obstante, após ser restituído ao posto de presidente pelos militares, Chávez inicia um esforço de ampliação do diálogo que visa restaurar a normalidade. Procedeu-se uma reforma no gabinete com o propósito de tornar, sobretudo as pastas ligadas à economia, mais receptivas às elites tradicionais. Na PDVSA, os executivos rebeldes foram mantidos nos cargos e aqueles que haviam sido nomeados pelo governo e recusados pela diretoria da empresa foram trocados. Ademais, foram feitos convites a entidades internacionais para que visitassem o país como, por exemplo, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Centro Carter. O objetivo geral era ressaltar o compromisso com a Constituição e com a democracia. O governo buscava diferenciar-se da oposição que, ao contrário, continuava em uma escalada de beligerância e desrespeito às instituições. Os meses que se seguem, portanto, são de intensa manifestação nas ruas, com alguns episódios de violência física indicando que a estratégia insurrecional dos oposicionistas, a despeito dos esforços do governo, mantinha-se à margem dos mecanismos institucionais.
Neste tocante, é essencial mencionar que, mesmo tendo sido varrida dos cargos eletivos, o aparato burocrático do Estado seguia ocupado por indivíduos oriundos das classes médias e altas, fortemente vinculados à IV República –o regime anterior à ascensão eleitoral de Hugo Chávez. O que explica a decisão do Tribunal Supremo de Justiça de absolver, em agosto de 2002, os militares acusados de envolvimento na tentativa de golpe ocorrida meses antes. A perspectiva de ainda contarem com algum poder político a sua disposição, fortaleceu o espírito daqueles que lutavam por reconquistá-lo em sua totalidade. Assim sendo, em 22 de outubro, um grupo de militares, entre eles alguns dos absolvidos, tomaram a Praça França de Altamira, localizada na parte nobre de Caracas, declarando-a “território libertado” e anunciando que ali permaneceriam até que Chávez deixasse a Presidência, conclamando as Forças Armadas e a população a juntarem-se a eles. Na medida em que foram permanecendo na praça, esta se tornou palco de inúmeros confrontos entre apoiadores e detratores do governo, os quais resultaram, inclusive, na morte de três pessoas (LÓPEZ MAYA, 2006).
Pouco mais de um mês depois da ocupação em Altamira, em 2 de dezembro de 2002, tem início a greve petroleira. Esta se demonstrou distinta das três greves gerais anteriormente convocadas pela oposição neste mesmo ano, uma vez que se estendeu não apenas ao âmbito do comércio e serviços, mas, também, a boa parte da indústria e diversos setores ligados à exploração e venda de petróleo. Com isso, a economia do país teve sua principal (e quase única) atividade produtiva interrompida por mais de dois meses.
A população, em claro rechaço à medida, iniciou uma série de protestos. Escolas, supermercados e lojas se mantiveram fechados. Os bancos trabalharam em meio período. Começam os racionamentos e a escassez de combustível. As cidades, sobretudo a capital, se dividiam espacialmente entre escuálidos (termo usado pelo presidente para se referir à oposição) e chavistas (LÓPEZ MAYA, 2006). No final de dezembro, o governo havia logrado a recuperação de um tanque e retomado a produção e o refino de petróleo, conforme amplamente noticiado nos canais estatais. Em poucos dias, vários outros também voltaram às suas atividades. O controle da PDVSA já não estava mais nas mãos da oposição. Em 23 de janeiro de 2003, perante indícios de que os primeiros estavam perdendo força e apoio, Chávez convoca uma grande marcha. Aos poucos os comerciantes vão descumprindo as recomendações dos sindicatos e federações, ligados aos setores oposicionistas, e começaram a reabrir seus estabelecimentos. No dia 3 de fevereiro, a greve termina sem uma clara determinação por parte dos líderes que a haviam convocado.
A oposição, no entanto, começa a se reorganizar em torno de uma nova estratégia para retirar Chávez do poder, agora estabelecida dentro dos marcos da legalidade. Aproveitando-se dos dispositivos institucionais introduzidos pelos bolivarianos, como parte da concepção de democracia participativa por eles advogada, é iniciada uma coleta de assinaturas para instaurar um referendo revogatório. No que concerne às forças governistas, diferentemente do golpe do ano anterior, o fim da paralisação foi considerado uma vitória política inequívoca, principalmente porque aumentou a coesão entre os simpatizantes do presidente. O sucesso político, contudo, dividiu espaço com um grave retrocesso econômico.
De acordo com cálculos da própria PDVSA, durante a greve o país deixou de exportar cerca de 328,75 milhões de barris de petróleo e gás, o que representa uma perda financeira estimada em US $ 8.340 bilhões. Somada à paralisação do comércio, e à saída de investimentos estrangeiros esta perda provocou uma queda do Produto Interno Bruto de 6,2%, no quarto trimestre de 2002, e de 24%, no primeiro trimestre de 2003 (26,7% em comparação com o ano anterior). Essa expressiva alteração no PIB provocou a deterioração dos indicadores sociais: o desemprego aumentou de 15,7% para 20,7%; a pobreza elevou-se em 30,1%, o que, em termos absolutos, implica uma elevação de 41,5% para 54% da população em geral; a pobreza extrema, por sua vez, passou de 16,6% para 25,1%. Quanto aos indicadores financeiros, cabe ainda ressaltar que a fuga de capitais provocou uma redução de 12,3% nas reservas internacionais, o que levou a alterações na taxa de câmbio, controles de preços sobre alimentos, medicamentos e outros artigos de consumo de massa por parte do Executivo (LANDER e NAVARRETE, 2007, p. 21).
Em agosto de 2003, 3.2 milhões de assinaturas foram apresentadas ao Conselho Nacional Eleitoral que, em fevereiro de 2004, declara suspeitas sobre sua autenticidade. Em resposta, os setores da oposição iniciam uma série de protestos, cuja violência resultou na morte de nove pessoas. Conforme a orientação das lideranças, os manifestantes deveriam ficar em frente as suas casas praticando, em dias determinados, atos de “resistência civil”. Assim, quando chegasse a polícia, haveria a possibilidade de se esconder em um lugar seguro. A operação foi denominada de guarimba que é o nome de um jogo infantil, usado para fazer referência ao lar ou qualquer outro lugar seguro onde os jogadores pudessem se proteger (LÓPEZ MAYA, 2009, p. 252). Em maio de 2004, após uma série de negativas por suposta falsificação de assinaturas, o CNE finalmente aprovou o pedido de referendo. A decisão foi prontamente reconhecida pelo Executivo. Em 15 de agosto ocorre o pleito.
O resultado do referendo representou mais uma vitória do governo, cuja continuidade foi respaldada por 58,25% dos venezuelanos, contra 41% favoráveis a sua destituição. A distribuição e a proporção destes votos, indica que a segmentação sócioeconômica que perpassa todos os países capitalistas, havia, na Venezuela, assumido a feição de um antagonismo entre chavismo e oposição. Como pode-se observar na tabela abaixo, retirada do texto Geografia Eleitoral em uma Venezuela polarizada, de Margarita López Maya e Edgardo Lander, no qual os dados eleitorais são analisados pelos autores como demonstração da clivagem política que passa a revestir a fronteira entre ricos e pobres na Venezuela.
Esta segmentação, entretanto, não seria observada apenas no referendo e nem se limitaria ao âmbito regional, tendo sido semelhante em todos os outros processos eleitorais transcorridos no país até os dias de hoje. Nesta medida, inclusive quando analisadas as distribuições de votos no interior de cada cidade, delineia-se a mesma relação entre camadas populares/apoio ao governo e camadas médias e altas/ apoio à oposição.
Remake ou Grand Finale ?
Evitando a misoginia, é importante mencionar o nome de María Corina Machado, outra líder oposicionista linda e bem nascida. Atualmente sem partido, porém eleita deputada pelo PJ em 2010, Corina tem atuado como coadjuvante ao lado de López, no papel de “oposição radical”, desde que, juntos, começaram a clamar por ” La Salida“, defendendo a mobilização da população em favor da deposição do atual presidente, Nicolás Maduro. Nesta trama, que pode servir a uma refilmagem ou uma continuação, coube a Capriles um papel diferente daquele por ele encenado em 2002, já que interpreta agora o personagem de líder da “oposição moderada”, exibindo um discurso de defesa da Constituição, promulgada em 1999, por Hugo Chávez, cujo principal legado é a possibilidade de que a população destitua o mandato de qualquer político eleito, dentro dos marcos da legalidade.
Embora atue como coadjuvante na insurreição oposicionista deste ano, María Corina Machado, foi protagonista da “versão original”, atuando como presidente e fundadora da ONG Súmate, principal envolvida no processo de petição e recolhimento das assinaturas para o referendo de 2004. A entidade que, além dos aportes da elite nacional, contava com o patrocínio do National Endowment for Democracy, instituição vinculada ao Departamento de Estado norte-americano, foi processada pelo governo venezuelano, com base no artigo 132[11] do Código Penal, após a participação na elaboração e na divulgação de uma pesquisa que indicava que Chávez perderia o referendo por uma diferença de 20% dos votos[12].
Após o fracasso da iniciativa insurrecional de 2002 – que assim como a atual contou com a participação dos estudantes e das classes médias e com a utilização das táticas de guarimba – López e Capriles foram presos e rapidamente libertados pelo presidente, evitando que seus belos rostos se transformassem em símbolos do martírio da oposição no país. Em seguida, juntos lideraram o processo de recolhimento das assinaturas necessárias à convocação de um referendo revogatório, no qual foram novamente derrotados pelo herói bolivariano. A capacidade de Nicolás Maduro de protagonizar esse plot twist, definirá se estamos diante de uma mera reedição dos eventos da década passada, ou se esta é uma continuação com um novo roteiro e final incerto.
Contudo, para evitar a derrota, é impreterível que o atual presidente siga os passos de seu antecessor, libertando López e evitando que a oposição se reúna em torno de um belo ícone martirizado. Ademais, caso seja capaz de vencer a presente investida insurreicional, é preciso estar preparado para a “etapa legalista”, derrotando a oposição “moderada” no provável referendo a ser convocado em 2016, após transcorrida a metade do mandato para o qual foi eleito – condição estabelecida pelo artigo 72 da Constituição da República Bolivariana da Venezuela[13] para a instauração de um recall.
O propósito de toda refilmagem é adaptar uma produção original a uma nova conjuntura, atualizando a trama e lançando mão de novos recursos, indisponíveis no momento da primeira produção, como é o caso das crises inflacionária e cambial que no momento afetam o país, causando problemas de desabastecimento. Além da corrosão do poder de compra, a inflação[14], causada em parte por um processo de desvalorização cambial, é a principal responsável pelo problema de desabastecimento na Venezuela, uma vez que muitas vezes os vendedores preferem não disponibilizar os produtos na expectativa de maiores lucros. Por outro lado, na medida em que a fuga de capitais e o refúgio no dólar são elementos recorrentes nas tragédias venezuelanas – assim como nas de outros países da região, como por exemplo a Argentina – em 2003, Hugo Chávez cria a Comissão de Administração de Divisas (CADIVI), com o propósito de evitar a depreciação da moeda e limitar a redução de reservas. No entanto, ao controlar o cambio, sobrevalorizando a moeda, o governo criou condições para que se instaurasse entre as classes médias e altas uma situação de constante e ávida busca por dólares, vendido atualmente no mercado paralelo por um valor 13 vezes mais alto do que o oficial.
Dessa forma, é possível observar, do lado da demanda, um efeito rebote que incita o acúmulo de dólar, mas também o de produtos, pois, o medo da escassez, constantemente alardeada pela mídia, leva boa parte dos cidadãos a estocarem tudo aquilo que seu poder aquisitivo lhes permite. Ainda mais importante para a compreensão da conjuntura, é a radicalização que o governo Maduro tem levado a cabo no plano econômico. Além do controle de preços, foi estabelecido uma série de medidas visando a restrição dos lucros da iniciativa privada no país –medidas que também afetam a oferta de produtos. Decretada em dezembro de 2013, a chamada Lei Orgânica de Preços Justos, limita os lucros de todos os atores inseridos na cadeia de comercialização em até 30%, estabelecendo faixas com taxas diferenciadas, conforme a atividade e o setor.
A despeito desta investida do governo, é possível dizer que, até o presente momento, a estrutura do roteiro original foi respeitada nessa refilmagem que exibe novamente a tentativa da oposição, que não se sente devidamente representada pelos canais institucionais, de engendrar uma ruptura, cuja legitimidade (plebiscitária) estaria na aclamação do demos reunido nas ruas. Este recurso, utilizado e institucionalizado pelo chavismo parece particularmente interessante em situações nas quais os mecanismos representativos tradicionais se encontram fragilizados ou inacessíveis.
De acordo com a cuidadosa pesquisa da historiadora Margarita López Maya, desde o início da década de 1990 a Venezuela observa um exponencial crescimento dos protestos populares, configurando o que a autora chama de política de las calles. Conforme os dados levantados, observa-se que, após o Caracazo[15], o protesto se configura como um dos aspectos mais característicos da vida cotidiana da capital do país, expandindo-se e transbordando para outras regiões também durante o governo Chávez[16].
Tal atributo, todavia, remete a uma questão ainda mais relevante para a compreensão da realidade venezuelana: a dificuldade de agregar os múltiplos interesses e identidades que configuram o tecido societário, de modo a permitir sua canalização para plano político/estatal. Sem isso, tornam-se sem sentido as instituições que deveriam acolher as disputas e embates entre os diferentes grupos sociais de modo a expressá-las através de dinâmicas político partidárias sediadas no parlamento, evitando sua deflagração sob a forma de violência social[17]. Essa dificuldade se agrava quando consideramos que as instituições democrático-liberais foram desenhadas com o propósito de representar os diferentes segmentos de uma coletividade plural e complexa, entrando em descompasso com o caráter polarizado e binário de uma sociedade cindida entre bolivarianos e oposicionistas.
A polarização, entretanto, não é obra do gênio político de Hugo Chávez, pois remete à estrutura econômica do país concentrada em uma única atividade, a exploração do petróleo. Deste modo, ainda que a desigualdade seja um atributo inerente ao modo de produção capitalista, na Venezuela ela gera um grave problema de integração social, na medida em que o afastamento (econômico, simbólico, cultural e etc) entre aqueles que se beneficiam diretamente dos recursos petrolíferos e os que só têm acesso a eles por meio de políticas públicas é deveras mais proeminente. Faltam vínculos de pertencimento e solidariedade entre as classes altas/médias e os pobres, o que confere tons viscerais aos embates entre chavistas e seus detratores.
A obra prima do comandante foi conseguir agregar este segundo grupo em torno de sua figura e, a partir da identificação das camadas populares com a simbologia bolivariana, representá-las na esfera político estatal, vencendo sucessivas eleições presidenciais[18]. Seus antagonistas, porém, ainda não foram capazes da mesma façanha em parte devido a falta de unidade entre as lideranças da oposição; em parte por que as classes médias e altas, embora numerosas, não correspondem à maioria da população, dificultando o acesso à Presidência e o recurso aos mecanismos plebiscitários de legitimação e revogação de mandatos.
Elemento central de toda trama ambientada em território venezuelano, a violência é o principal enredo tragédias nacionais. De acordo com o Observatório Venezuelano da Violência (OVV), embora tenha havido uma desaceleração no número de assassinatos, tendo em vista um conjunto de medidas levadas à cabo pelo governo Maduro, o país vive uma epidemia, sendo o terceiro mais violento do mundo, com uma taxa de 79 homicídios para cada 100 mil habitantes, sendo superado apenas por Honduras (83) e El Salvador (80). Segundo números oficiais, a taxa de homicídio na Venezuela era de 48 em 2011, teve um pico em 2012, ficando em 54 e, em seguida, caiu para 39 em 2013. De acordo com o governo, que lançou os planos Patria Segura e Gran Misión A Toda Vida Venezuela, o objetivo é atingir, em 2019, uma redução de 40%. Como ocorre com quase todas as informações disponíveis sobre o país, há uma altíssima discrepância entre as informações disponibilizadas pelo governo e aquelas oferecidas pela mídia e entidades da sociedade civil (universidades, organizações não governamentais, institutos de pesquisa, de modo geral formados pelos segmentos oposicionistas da população). No entanto, mesmo levando em conta as taxas oficiais os dados configuram uma epidemia de assassinatos[19]. Em termos comparativos, o problema dos venezuelanos é ainda mais grave do que, por exemplo, aquele vivenciado pelos moradores do Rio de Janeiro, cuja taxa de homicídios foi de 26,4 em 2013
Nesta medida, toda narrativa acerca das manifestações que sacudiram o país neste ano, deixando 20 mortos e mais de 260 feridos, deve levar em conta um cenário no qual a polarização política e a violência social se encontram num ciclo vicioso de retroalimentação. Em um país no qual o poder, assim como os recursos econômicos, se encontram historicamente centralizados na figura do presidente, a oposição quando formada pelas elites econômicas mais facilmente se frustra com o papel coadjuvante que lhe cabe, daí suas violentas e sucessivas investidas contra o governo, cuja divulgação é privilegiada pela simpatia da mídia interna e internacional. Se do lado bolivariano ainda é possível esperar por reviravoltas bem ou mal sucedidas, no que se refere ao papel da oposição, este filme provavelmente se manterá fiel ao roteiro que levou ao referendo de 2004.
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Mayra Goulart
Bibliografia
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Código Penal de Venezuela (2000). Gaceta Oficial No 36.920 de fecha 28 de marzo del año 2.000, en concordancia con lo dispuesto en el numeral 1 del artículo 187 de la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela.
LANDER, Edgardo; NAVARRETE, Pablo. The Economic Policy of the Latin American Left in Government. Amsterdam, Havens Center?Rosa Luxemburg Stiftung Transnational Institute, 2007.
LACLAU, Ernesto. On Populist Reason. London: Verso, 2005.
LÓPEZ MAYA, Margarita. Protesta y cultura em Venezuela – los marcos de acción colectiva en 1999. Caracas: FACES-UCV, 2002.
__________. Luta hegemônica na Venezuela. A crise do puntofijismo e a ascensão de Hugo Chávez. Caracas: Alfadil, 2005. Edição em português atualizada com acréscimo do cap. 16, sobre a conjuntura política até 2009.
__________.Venezuela 2001-2004: actores y estratégias en la lucha hegemônica. In CAETANO, Gerardo. Sujetos sociales y nuevas formas de protesta em la historia reciente de América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2006
LÓPEZ MAYA, Margarita, LANDER, Luis E. Geografía electoral en una Venezuela polarizada. http://biblioteca.clacso.edu.ar/subida/clacso/osal/20110307044338/2Maya_Lander.pdf.ori Acessado em janeiro 2010.
[1] Em uma alusão ao 27F, que marca outra grande convulsão social no país, o Caracazo.
[2] Após uma arrasadora carreira como modelo, na qual conquistou o título de Miss Venezuela e Miss Universo, Irene Lailin Sáez Conde fez sucesso na política, tendo sido eleita duas vezes para o cargo de prefeita de Chacao e uma vez para o posto de governadora de Nueva Esparta. Candidata às eleições presidenciais de 1998, pelo Comitê de Política Eleitoral Independente (COPEI), foi derrotada por Hugo Chávez.
[3] Embora Leopoldo López seja a celebridade do momento, Capriles tem uma carreira política mais longeva e bem sucedida. Antes de ser prefeito de Baruta, elegeu-se deputado pelo Copei, tendo sido o venezuelano mais jovem a ocupar o cargo de presidente da Câmara. Desde 2008, ocupa o cargo de governador do Estado de Miranda, tendo sido reeleito em 2012.
[4] No entanto, é interessante ressaltar que o ímpeto pasteurizador também afeta a Venezuela. Neste tocante, sobressai o fato de que a campanha de Henrique Capriles para as eleições presidenciais de 2012 teve como marqueteiro o antropólogo Renato Pereira, encarregado das duas vitoriosas campanhas de Eduardo Paes à prefeitura do município do Rio de Janeiro e de Sérgio Cabral ao governo do estado homônimo. Pereira seria o responsável pelo marketing de Aécio Neves no pleito de 2014, porém os dois romperam recentemente.
[5] Leopoldo é descendente de Concepción Amestoy Palacios, sobrinha de Simón Bolívar e de Cristóbal Mendoza, primeiro presidente da Venezuela (1811-1812)
[6] O mesmo que também por duas vezes elegeu Irene Sáez, o que demonstra, no mínimo, um acurado senso estético por parte de seus cidadãos.
[7] Em dezembro de 2006, descontente com o resultado das internas do PJ, López passa a integrar o partido Vontade Popular. Cerca de três anos depois, novamente insatisfeito com a falta de espaço a ele concedido e alegando obstáculos ao surgimento de novas lideranças, lança o movimento Vontade Popular. Capriles, por sua vez, segue como o principal nome do Primeiro Justiça.
[8] Ambos foram reeleitos em 2004.
[9] Chacao e Baruta são dois distritos caraquenhos de classe média e alta, sendo o primeiro o mais rico do país.
[10] Cabe mencionar que assim como na edição de 2014, na qual cenas de protestos realizados nos mais diversos lugares do planeta foram exibidas para denunciar a repressão aos manifestantes na Venezuela, em 2002, imagens de um confronto entre correligionários da oposição e do governo foram manipuladas de modo a causar a impressão de um massacre de civis por parte da Guarda Nacional.
[11] Artículo 132- Cualquiera que, dentro o fuera del territorio nacional, conspire para destruir la forma política republicana que se ha dado la Nación será castigado con presidio de ocho a dieciséis años. En la misma pena incurrirá el venezolano que solicitare la intervención extranjera en los asuntos de la política interior de Venezuela, o pidiere su concurso para trastornar la paz de la República o que ante sus funcionarios, o por publicaciones hechas en la prensa extranjera, incitare a la guerra civil en la República o difamare a su Presidente o ultrajare al Representante diplomático o a los funcionarios consulares de Venezuela, por razón de sus funciones, en el país donde se cometiere el hecho. (http://www.oas.org/juridico/spanish/mesicic3_ven_anexo6.pdf)
[12] http://en.wikipedia.org/wiki/Súmate
[13] Artículo 72. Todos los cargos y magistraturas de elección popular son revocables.Transcurrida la mitad del período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria, un número no menor del veinte por ciento de los electores o electoras inscritos en la correspondiente circunscripción podrá solicitar la convocatoria de un referendo para revocar su mandato. Cuando igual o mayor número de electores y electoras que eligieron al funcionario o funcionaria hubieren votado a favor de la revocatoria, siempre que haya concurrido al referendo un número de electores y electoras igual o superior al veinticinco por ciento de los electores y electoras inscritos, se considerará revocado su mandato y se procederá de inmediato a cubrir la falta absoluta conforme a lo dispuesto en esta Constitución y la ley. La revocatoria del mandato para los cuerpos colegiados se realizará de acuerdo con lo que establezca la ley. Durante el período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria no podrá hacerse más de una solicitud de revocación de su mandato (https://www.oas.org/juridico/mla/sp/ven/sp_ven-int-const.html).
[14] A inflação na Venezuela superou os 20 pontos percentuais nos últimos cinco anos: em 2011 alcançou 29%; em 2012, 20% e em 2013, 58%.
[15] Como ficou conhecida a série de eventos iniciados em 27 de fevereiro de 1989, quando em rechaço a um aumento nas tarifas do transporte coletivo, milhares de venezuelanos foram às ruas em violentas manifestações que incluíram saques incêndios e depredações e deixaram um saldo de mais de 300 mortos.
[16] LÓPEZ MAYA, Margarita, LANDER, Luis E. Venezuela: protesta popular y lucha hegemónica reciente. In: Luchas Contrahegemónicas y Cambios Políticos Recientes de América Latina. 2008
[17] É o caso da Assembleia Nacional da Venezuela, que longe de abarcar processos de entendimento entre representantes de diferentes grupos, torna-se o palco exclusivo de uma bancada governista disciplinada e insensível às diferenças – inclusive no que se refere às divergências internas ao chavismo.
[18] A figura de Chávez serve, portanto, para conferir uma roupagem simbólica e identitária à luta de classes ou, mais precisamente, à clivagem entre ricos e pobres, que passa a estar associada a uma suposta origem bolivariana atualizada em sua própria identidade. Esse é o principal sentido de suas performances discursivas que operam segundo uma razão populista (LACLAU, 2005). É por meio delas que a separação entre estes dois grupos, herdada dos governos anteriores, transforma-se em um antagonismo. É através desta simbologia que uma parcela da população historicamente excluída passa a se identificar como espoliada e oprimida pelas elites, formando um sujeito coletivo mobilizado para reverter essa opressão. Essa é a novidade que o chavismo aporta à história venezuelana. O resto – hiperpresidencialismo, clientelismo, personalismo – é continuidade. O populismo não introduz um afastamento entre a democracia venezuelana e a tradição do liberalismo político, resta saber se ele o agrava.
[19] Para a Organização Mundial da Saúde, uma taxa de 10 assassinatos por 100 mil habitantes já permite o uso do termo.