Hoje, ou nós fazemos uma reforma política e mudamos a lógica da política, ou a política vai virar mais pervertida do que já foi em qualquer outro momento.
Lula, em entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, não faltaram iniciativas de mudanças nas instituições políticas no Brasil.[2] Em 1992 foi aprovada a antecipação, para 1993, de um plebiscito já previsto sobre qual sistema de governo adotar, mantendo-se o presidencialismo ou passando-se ao parlamentarismo, e mesmo com a possibilidade de se trocar o regime republicano por um monárquico. Mantido o presidencialismo, em 1994 o mandato presidencial foi reduzido cinco de para quatro anos e foram suspensos os efeitos da renúncia dos parlamentares que estivessem submetidos a um processo de cassação. Em 1997 a reeleição consecutiva para o Executivo foi permitida. Todas essas medidas de reforma política se deram por meio de emendas constitucionais. Além disso, foram promulgadas leis regulamentando as eleições, os partidos políticos, os plebiscitos e referendos, a caracterização da compra de voto etc.
Apesar de já haver diversas proposições sobre variados aspectos da reforma política tramitando na Câmara, foi formada uma Comissão Especial que elaborou o Projeto de Lei 2.679/2003 – que implicaria várias mudanças, como a introdução da lista fechada, a criação de federações mais estáveis de partidos para substituir as coligações, e o financiamento público exclusivo de campanha – que, depois, passou à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Como havia a intenção de esvaziar a pauta, o mesmo texto foi reapresentado como Projeto de Lei 1.210/2007 e todos os demais projetos sobre reforma política em tramitação, inclusive o próprio PL 2.679/2003, foram rejeitados em bloco. Apesar de a lista fechada não ter sido aprovada em 2007, o Executivo apresentou novo projeto de lei nesse sentido em 2009.
Se por um lado a reforma política não é, portanto, algo novo na agenda, por outro o tema retomou força depois de semanas consecutivas marcadas por manifestações populares nas ruas em mais de 100 cidades brasileiras em junho de 2013. A presidente Dilma Rousseff tentou aplacar a difusa insatisfação colocando em pauta a realização de ampla reforma política, ainda que seja questionável que esta tivesse posição de destaque nas reivindicações. A ideia original, divulgada em 24 de junho, após reunião com prefeitos e governadores de todas as unidades da Federação, era a de se realizar um plebiscito sobre a convocação de uma assembleia constituinte específica para tratar das mudanças institucionais referentes à representação política. A proposta de um “pacto pela reforma política”, em que solicitava que o Congresso convocasse o plebiscito, foi acompanhada de outras sugestões, como um “pacto pela responsabilidade fiscal” dos governos em todos os níveis, a aprovação de uma lei que qualificasse a corrupção como crime hediondo, um “pacto pela saúde” com a contratação de médicos estrangeiros para suprir carências em lugares com falta de mão de obra – o que já havia sido anunciado anteriormente e gerado forte reação corporativista da categoria –, um “pacto pelo transporte público” e outro pela saúde pública, pelo qual 100% dos royalties do petróleo fossem direcionados à educação. Aqui será tratada especificamente a discussão sobre a reforma política.
A proposta da presidente tinha antes o intuito de oferecer alguma resposta aos manifestantes do que o de canalizar a reforma política para alguma direção específica. Trata-se de problema antigo: todos os atores querem se apresentar como defensores da mudança, mas em vez de politizarem alguma transformação mais específica, claramente relacionando problemas, causas e soluções, apelam para uma ideia difusa de “reforma política”, que pode significar qualquer coisa. Quando presidente, Lula também dizia que pretendia realizar a “tão sonhada reforma política” e Fernando Henrique Cardoso a apontava como uma das prioridades de seu governo desde a campanha eleitoral de 1994, tendo repetido isso durando o segundo mandato. Ocorre que cada um “sonha” com uma reforma política diferente e a incerteza sobre os efeitos das mudanças leva grande contingente da classe política a preferir manter as regras como estão, visto que foram capazes de vencer eleitoralmente em disputa delimitada por elas.
Menos de 24 horas após o anúncio, quando recebeu críticas de vários juristas e ficou claro que mesmo entre aliados próximos não havia consenso, a mandatária recuou de sua proposta de Constituinte, mas manteve a intenção de que se convocasse um plebiscito, enviando em 2 de julho mensagem com cinco temas específicos para que a população se posicionasse a respeito. Entre elas estava a possibilidade de substituição do sistema eleitoral, sendo mencionados como opções “voto proporcional, distrital, distrital misto, distritão, lista aberta ou lista fechada”, o que evidencia a grande confusão acerca do funcionamento dessas instituições, visto que todos os sistemas de lista são proporcionais e que, como toda eleição se realiza em distritos (ou circunscrições eleitorais), o termo “sistema distrital” para se referir a majoritário é tecnicamente equivocado.
Um ponto talvez mais importante do que o do sistema eleitoral é o da eventual mudança do financiamento de campanha para exclusivamente público (com a possibilidade ainda de permitir o financiamento privado mas apenas de pessoas físicas, excluindo-se a doação de empresas, bem como a estipulação de um teto de arrecadação ou de doação individual). A princípio, entre as opções estaria o “financiamento privado”, o que, dado que atualmente o financiamento é misto, pode significar a existência também da alternativa de retirar o fundo partidário e o horário eleitoral gratuito; provavelmente isso não foi cogitado, sendo apenas conseqüência de má elaboração da proposta.
Além desses pontos, também haveria uma consulta sobre o fim das coligações partidárias nas eleições proporcionais (questão importante, já que, como existem hoje, possibilitam que votos dados a um partido migrem para outro), outra sobre o fim da suplência de senador (o que deixaria a fundamental dúvida se, em caso de vacância, seria convocada nova eleição ou se a vaga passaria para o candidato mais votado entre os derrotados, o que seria problemático para a democracia, visto que contrariaria a vontade da maioria) e uma sobre o fim do voto secreto no Congresso (uma semana após negar em votação sigilosa a cassação de um deputado já condenado a 13 anos de prisão, Natan Donadon, a própria Câmara votou por unanimidade em 3 de julho pela obrigatoriedade do voto aberto no Congresso, cabendo ao Senado referendar a emenda constitucional PEC 349 ou não). Essas parecem ser as mudanças menos polêmicas, tendo adesões em partidos de todos os matizes; agremiações partidárias menores, no entanto, costumam defender a substituição das coligações por “federações de partidos” de caráter mais duradouro, para não perderem esse mecanismo que as ajuda a superar o quociente eleitoral, que funciona como cláusula de barreira.
Uma questão relacionada a essas e ainda ignorada é a da permanência das cadeiras legislativas com os partidos que elegeram os candidatos mesmo que estes viessem a mudar de legenda; como no sistema de lista aberta a distribuição de cadeiras é realizada proporcionalmente conforme as votações totais de cada partido ou coligação naquele distrito (são agregados os votos dos partidos ou coligações, somando-se os votos de legenda e as votações de todos os candidatos individuais a ele filiados), sendo elas ocupadas pelos candidatos mais votados dentro da sigla ou coligação, não faz sentido que eles troquem de agremiação e mantenham o mandato como se este tivesse sido conquistado com seus votos pessoais (é justamente por isso que alguns candidatos pouco votados se elegem aproveitando sobras de votos do seu partido recebidos por seus colegas de sigla, enquanto outros, em partidos pequenos, têm votações expressivas porém abaixo do necessário para se elegerem).
Além da divergência sobre quais regras adotar, a própria consulta popular não é ponto pacífico nem mesmo quanto ao momento de sua realização: enquanto alguns, entre os quais a presidente Dilma Rousseff e seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), defendem um plebiscito para delimitar os marcos essenciais da reforma política, outros advogam para que, terminados os trabalhos legislativos, haja um referendo para aprovar ou não o desenho institucional que tiver sido formulado. Já em 27 de junho o senador Ciro Nogueira, presidente do Partido Progressista (PP), entregou a Dilma um documento com a posição do partido em defesa da realização do referendo e contra o plebiscito, com o argumento de que o tema era demasiadamente complexo e repleto de opções para que a população se manifestasse sobre ele nas urnas sem uma proposta pré-definida. A presidente já afirmou ser contrária, pois seria grande a possibilidade de o projeto ser rejeitado pelo eleitorado, de modo que não seria atendido o anseio de mudança. O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), declarou em 9 de julho que não havia a possibilidade de se chegar a uma reforma política cujas mudanças já valessem para as eleições de 2014, por falta de tempo hábil. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciou que seria necessário um prazo de 70 dias para organizar a consulta à população.
O PT já havia iniciado em 12 de abril de 2013 uma “Campanha Nacional pela Reforma Política” para colher o 1,5 milhão de assinaturas necessário para apresentar projeto de lei de iniciativa popular de reforma política (incluindo a convocação da assembleia constituinte exclusiva, além da adoção do financiamento público exclusivo e da lista fechada com paridade de gênero), ou seja, antes dos protestos e da reação da presidente. Quatro meses depois, em movimento paralelo, o PT acordou com os demais partidos governistas de esquerda dar início a processo de decreto legislativo na Câmara para a convocação de plebiscito para consultar o eleitorado sobre temas da reforma política. PT, Partido Comunista do Brasil (PC do B), Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Socialista Brasileiro (PSB)[3] participaram de ato na Câmara, em 28 de agosto, em que protocolaram juntos pedido de realização de um plebiscito nacional. As quatro agremiações insistiram na proposta, ainda que mesmo a eventual adesão de todos os seus deputados não some as 171 assinaturas necessárias para que o projeto comece a tramitar na Câmara, e apesar da posição contrária de vários outros partidos e da convicção de que dificilmente alguma mudança valeria já para as eleições de 2014. Se aprovada, a população seria consultada sobre financiamento de campanhas, sobre a possibilidade de apoio via internet para projetos de iniciativa popular e sobre a coincidência entre as eleições municipais e federais.
O PT, no entanto, tem problemas em sua própria bancada para ser capaz de agir em bloco sobre a reforma política. O deputado Henrique Fontana foi o relator da Comissão Especial de reforma política na Câmara e era o indicado do partido para participar do novo grupo de trabalho formado em 10 de julho de 2013 para tratar do tema (devendo apresentar projeto para votação em até 90 dias). O presidente da casa, deputado Henrique Alves, do PMDB, no entanto, articulou seis dias depois diretamente com outro petista, Cândido Vaccarezza, que este fosse o coordenador do comitê, contrariando a decisão da própria bancada do PT. Várias reuniões foram realizadas para contornar o impasse, que reflete ainda divisões internas do próprio PT, pois Vaccarezza faz parte do campo Construindo um Novo Brasil (CNB), enquanto Fontana pertence à Mensagem ao Partido.
Apesar de originalmente a previsão ser a de cada partido só ter um representante, Alves manteve a nomeação de Vaccareza na presidência e relatoria e abriu nova vaga para que o PT indicasse seu representante. Fontana afirmou que não participaria nessas condições e que Vaccarezza deveria declinar da indicação. Como ambos permaneceram irredutíveis, o PT, então, indicou Ricardo Berzoini para compor o colegiado. Vaccarezza defende uma minirreforma política mais moderada, muito diferente do projeto petista e mais próxima do que quer o PMDB, mantendo, por exemplo, o financiamento privado de campanha, que se limitaria a sofrer ajustes, como o estabelecimento de um teto. Além dele e de Berzoini, fazem parte do grupo de trabalho outros 14 membros de 13 partidos: Rodrigo Maia (DEM), Júlio Delgado (PSB), Miro Teixeira (PDT), Manuela D’Ávila (PCdoB), Esperidião Amin (PP), Marcelo Castro (PMDB), Marcus Pestana (PSDB), Guilherme Campos (PSD), Luciano Castro (PR), Antonio Brito (PTB), Leonardo Gadelha (PSC) e Sandro Alex (PPS), além Luiza Erundina (PSB), como representante da bancada feminina, e Alfredo Sirkis (PV), os quais Alves depois decidiu incorporar ao grupo.
Sistema eleitoral: a luta da direita para abolir a representação proporcional
O PT historicamente defende a manutenção do sistema proporcional. A proposta de Henrique Fontana era a de uma lista flexível (que ele chamou de sistema proporcional misto), em que o eleitor votaria em um partido e, se quisesse, daria um segundo voto para um dos candidatos do partido; os dois votos seriam somados e, depois de calculada proporcionalmente a bancada de cada agremiação, metade dessas vagas seria preenchida pela lista pré-ordenada (como na lista fechada) e metade pelos votos pessoais dados pelos eleitores (como na lista aberta). O que o PT apresenta em seu projeto de lei de iniciativa popular, no entanto, é a substituição da lista aberta pela fechada. Esta foi rejeitada em 6 de julho de 2011 pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, depois de aprovada pela Comissão de Reforma Política.
O fim do voto personalizado favorece partidos com marca mais forte e menos voltados para políticas personalistas. A lista fechada também é defendida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela própria Central Única dos Trabalhadores (CUT). A CUT e o PT sugerem ainda a alternância entre homens e mulheres na lista pré-ordenada, uma pauta recorrente entre as feministas, pois acaba com a sub-representação feminina. O PC do B ainda não definiu posição sobre lista fechada ou lista flexível, mas tende a querer reduzir o caráter pessoal do voto. Ainda que firme na questão de apoiar a convocação do plebiscito, o PSB não tem consenso sobre qual sistema eleitoral apoiar.
Um problema recorrentemente apontado por especialistas na lista fechada é o risco de excessiva oligarquização dos partidos, com um pequeno número de líderes concentrando o poder de decidir quem se candidata com chances de se eleger, levando a um distanciamento dessas organizações em relação à população. Para que a eventual adoção da lista fechada não significasse um retrocesso democrático em relação à lista aberta hoje utilizada seria necessário que se aprovasse também regulamentação para o funcionamento interno dos partidos, interferindo em sua atualmente ampla liberdade de organização interna: seria preciso que todos fossem obrigados a organizar uma seleção democrática com todos os filiados para selecionar os nomes da lista pré-ordenada. Na maioria dos partidos, hoje, o recrutamento dos candidatos é extremamente verticalizado.
O artigo 45 da Constituição determina que os deputados federais sejam eleitos pelo sistema proporcional. Por isso, todas as propostas que instituam um caráter majoritário para a eleição para a Câmara requerem tramitação como Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que precisa ser votada em dois turnos nas duas casas legislativas com no mínimo 60% da votação em ambas. Em linhas gerais, é a direita, governista ou de oposição, que tem defendido propostas mais drásticas, que envolvam o aumento da desproporcionalidade, o que afeta o princípio democrático da pluralidade amparado na Carta de 1988.
Além do fim da reeleição – que foi instituída pelo próprio partido quando o presidente era Fernando Henrique Cardoso – o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) vem defendendo variações de sistema eleitoral em que o caráter majoritário esteja presente. Ainda assim, em 2007 chegou a apoiar o sistema proporcional de lista fechada proposto pelo PT e endossado pela Comissão Especial. Depois, no entanto, adotou como posição oficial do partido a defesa do sistema uninominal (que é vulgarmente chamado de “distrital” na mídia), sustentada pelo próprio Fernando Henrique e pelo ex-governador paulista José Serra, além do senador Aloysio Nunes e do ex-deputado Arnaldo Madeira, que chegou a fundar uma ONG para promover essa mudança. A partir de 2011, no entanto, a bancada do PSDB na Câmara passou a defender o sistema misto, sendo esta a posição atual do presidente do partido, o senador mineiro Aécio Neves.
O deputado federal Mendes Thame, do PSDB paulista, por sua vez, defendia até aquele ano projeto de sua autoria, de 2006, de adoção de um sistema eleitoral que ele chamou de “distrital proporcional”. Na verdade, nada mais era do que a redistritalização do sistema proporcional de lista aberta atual, passando a haver um número maior de distritos com magnitude muito menor do que a atual, isto é, com menos deputados eleitos em cada circunscrição eleitoral. Magnitudes baixas tendem a aumentar a desproporcionalidade da distribuição das cadeiras parlamentares pelos partidos em relação às votações recebidas por eles, sobrerrepresentando alguns e sub-representando outros. Um dos argumentos utilizados pelo deputado era o da maior facilidade para realizar a mudança do que as outras propostas do PSDB: apesar de também instituir um caráter mais majoritário à eleição, esta seguiria, formalmente, sendo proporcional. Assim, seria possível realizar a troca de sistema eleitoral sem alterar a Constituição, na qual se estipula que no Brasil a eleição para a Câmara dos Deputados deva ser proporcional. Em 2007, discursando na Câmara, o deputado anunciou a criação da “Frente Parlamentar Pró-Voto Distrital Proporcional” e, então, chamou-o de “distritão”. É um equívoco, no entanto, entender tal sistema eleitoral – que seria a manutenção da lista aberta mas com distritos de magnitude menor do que a atual – com aquele que vem sendo chamado por esse nome e obtendo algumas adesões.
O sistema que, também vulgarmente, tem sido chamado de “distritão” é tecnicamente conhecido como voto único não transferível, nome virtualmente ignorado por políticos e jornalistas. Francisco Dornelles, atual presidente da Comissão de Reforma Política do Senado e presidente de honra do PP, foi autor em 2007 de projeto de emenda à Constituição defendendo a adoção desse sistema majoritário, em que os candidatos mais votados de cada estado, independentemente de seu partido, seriam eleitos. Diferentemente do sistema uninominal, também majoritário, este é um sistema eleitoral plurinominal, ou seja, com mais de um representante eleito por circunscrição. Os distritos se manteriam os mesmos de hoje, mas, em contraste com o funcionamento da lista aberta, os votos não seriam mais agregados por partido, elegendo-se os candidatos individuais mais votados independentemente do restante da votação da sigla. Trata-se de sistema eleitoral hiperpersonalista, que fragilizaria ainda mais os partidos políticos, o que seria claro revés para a consolidação da democracia brasileira. Em 2011, Dornelles afirmou que o sistema uninominal seria o seu preferido, mas que julgava o “distritão” mais facilmente operacionalizável por não precisar mudar os distritos, mantendo-se as unidades da Federação como as circunscrições eleitorais. Também em 2011, a bancada do PP na Câmara encampou a proposta de Dornelles. No PMDB, o vice-presidente Michel Temer, desde quando era presidente da Câmara em 2009, também defende o voto único não transferível, com grande apoio dentro do partido, e o senador Romero Jucá propôs esse sistema como substitutivo em seu relatório para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (mas esta o rejeitou em 6 de julho de 2011).
O atual presidente do Senado e seu antecessor, Renan Calheiros e José Sarney, ambos também do PMDB, destoam de Temer e Jucá e são favoráveis ao sistema misto. O PPS também apoia o sistema misto (ainda que seu representante no grupo de trabalho, o deputado Sandro Alex, defenda o sistema uninominal) e o fim da reeleição; além disso, advoga pela realização de segundo turno nas eleições para prefeito dos municípios acima de 50 mil eleitores – e não apenas acima de 200 mil, como atualmente – e pela permissão de candidaturas avulsas, sem partido. Se por um lado isso soa responder a parte dos manifestantes, avessa a todas as organizações partidárias, por outro não contribui em nada para melhorar a política brasileira, enfraquecendo as agremiações e fortalecendo a personalização.
As defesas da adoção de um sistema misto – ou “distrital misto” como gostam de chamar políticos e jornalistas – raramente explicam como seriam os seus detalhes. Sistemas mistos podem funcionar de modo muito diferente, pois combinam qualquer sistema proporcional (pode ser de lista aberta ou lista fechada, por exemplo) com qualquer majoritário. Na comissão especial de 2011 na Câmara, Alceu Moreira (PMDB) chegou a defender que metade dos deputados fosse eleita por lista fechada e financiamento público e metade pelo “distritão” e financiamento privado, pois o anteprojeto do então relator Ronaldo Caiado (que propunha a lista fechada) seria bom, “mas não serve ao PMDB”.
Mendes Thame (PSDB) rejeitou enfaticamente essa versão de sistema misto, afirmando que seu partido imaginava a combinação de lista fechada com voto uninominal, que “aproxima o eleitor” nas palavras dele, ou, para ser mais preciso, dá um caráter mais territorial na relação entre representante e representado. Esta combinação é a mais comum e foi a que constou no projeto de emenda à constituição elaborado pelo deputado Roberto Magalhães, do Democratas (DEM). O líder do DEM na Câmara, o deputado ruralista Ronaldo Caiado, que era relator sobre o tema em comissão especial, tem posição inusitada dentro da direita brasileira: segue defendendo a proposta que a comissão sob sua relatoria aprovou, a adoção da lista fechada. Rodrigo Maia, no entanto, diz que o partido está mesmo dividido entre o sistema misto e o voto único não transferível.
Há ainda outro complicador nos sistemas mistos: as propostas têm girado em torno de deixar parte das cadeiras para o proporcional e parte para o majoritário, tal como ocorre na Nova Zelândia ou no Japão, mas é possível, como na Alemanha e na Bolívia, fazer um cálculo mais complexo, em que o voto proporcional é usado para definir as bancadas mas o voto majoritário tem prioridade para preenchê-las.
A posição do Partido Social Democrático (PSD) é de defesa do sistema uninominal, que inclusive consta na plataforma do partido tal como formulada por seu presidente nacional, Gilberto Kassab, e pelo Ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Guilherme Afif. No PDT, ao menos três vozes proeminentes apoiam o sistema uninominal: o representante do partido no grupo de trabalho na Câmara, o deputado Miro Teixeira, e os senadores Cristovam Buarque e Pedro Taques. Como se pode ver, a defesa consensual do sistema proporcional, tendendo à adoção de listas fechadas ou flexíveis, basicamente se resume aos três partidos parlamentares mais à esquerda do espectro político: o PT e o PC do B, do governo, e o PSOL, na oposição. À exceção do PSB, em situação indefinida, todos os demais querem, salvo um ou outro quadro dissidente, abolir a representação proporcional.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) formularam proposta que não tem tido rejeição veemente. Trata-se de um sistema eleitoral proporcional “de dois turnos” (totalmente diferente do sistema de dois turnos de tipo majoritário, o ballotage, tal como usado na França). Pelo sistema proposto pela OAB, os eleitores votariam apenas no partido no primeiro turno, tal como ocorreria na lista fechada. A diferença é que, nesta, os partidos elaboram uma lista pré-ordenada de candidatos e aqueles localizados nas primeiras posições ocupam as cadeiras conquistadas proporcionalmente pela agremiação. No projeto da OAB, por sua vez, os eleitores voltariam às urnas para um “segundo turno”, quando os partidos apresentariam o dobro de candidaturas que o número de cadeiras que eles conquistaram (haveria, assim, redução no número de candidatos em relação a hoje, quando eles podem lançar 2 ou 2,5 vezes o número total de candidaturas no distrito, dependendo da magnitude), e a população votaria nesses nomes, preenchendo-se, assim, as vagas na Câmara.
Esse método tem sido tratado como enorme inovação, escapando à percepção dos analistas o fato de que tal sistema nada mais é do que uma variação da própria lista aberta adotada hoje. Caminharia no sentido de fortalecimento das identidades partidárias, o que é importante, sem prejudicar a proporcionalidade. Entretanto, ajuste semelhante poderia ser realizado em turno único, o que significaria dispêndio menor de recursos públicos: para se ter efeito equivalente, bastaria que se adaptassem as urnas eletrônicas para que o eleitor escolhesse antes um partido e, em seguida, optasse por um dos candidatos dessa agremiação no distrito. Uma vantagem na forma proposta pela OAB, no entanto, é o fato de que, na campanha do primeiro turno, os partidos precisariam fazer uma propaganda eleitoral mais voltada para a plataforma partidária e com caráter menos personalista.
PT e PSOL sozinhos na defesa do financiamento público exclusivo
O PT e o PSOL defendem o financiamento exclusivamente público, mas, no restante da esquerda, as adesões são menores do que se poderia prever. Miro Teixeira (PDT) quer apenas fazer ajustes no modelo atual, com a criação de um fundo público que conte inclusive com a doação de empresas. Júlio Delgado (PSB) não acha viável impedir que o financiamento exclusivamente público seja canalizado para a corrupção e, por isso, defende uma estrutura pública em que o TSE e os TREs paguem os gastos de campanha, promovendo licitações para as gráficas, palanques etc. Manuela D’Ávila (PC do B) tem posição equivalente à já manifestada consistentemente pelo PPS: combinar financiamento público com doações de pessoas físicas, mas não de empresas, estabelecendo um teto (que é de R$ 2 mil pela proposta do PPS). A proposta formulada por OAB, CNBB e Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral também exclui doações de empresas, mas mantém doações de pessoas físicas, estabelecendo um teto de R$ 700 (representa, portanto, algum avanço em relação à proposta do PPS sob o ponto de vista da redução da influência do capital sobre a política).
No DEM, o deputado Ronaldo Caiado e o senador Jayme Campos são a favor do financiamento exclusivamente público, mas Rodrigo Maia quer manter o sistema atual. O PMDB tem a intenção de fortalecer o poder das direções partidárias mas não está preocupado com a redução do poder econômico nas eleições: quer apenas proibir o financiamento direto para o candidato individual, mantendo inclusive as doações de empresas (posição equivalente à do representante do PSDB no grupo de trabalho, Marcus Pestana), apesar de seu membro no comitê de reforma política da Câmara, Marcelo Castro, dizer que o partido “tem posições divergentes” mas “defende majoritariamente o financiamento público”. O representante do PP no grupo de trabalho para reforma política na Câmara, Espiridião Amin, defendeu o financiamento exclusivamente público; Francisco Dornelles, no entanto, votou contra essa mudança em abril de 2011 na comissão especial de reforma política do Senado, da qual era relator.
Outras propostas e cálculos eleitorais
O PMDB vem promovendo a proposta da coincidência temporal das eleições municipais, estaduais e federais, em que deixaria de haver pleitos a cada biênio. A proposta de emenda constitucional PEC 71/2012 é de autoria do senador Romero Jucá e foi assumida entusiasticamente pelo presidente do partido no Rio de Janeiro, Jorge Picciani. Os argumentos são o de redução do gasto de dinheiro público e o de não contágio do processo eleitoral nas políticas públicas. A realização de eleições simultâneas para tantos cargos – presidente, governador, prefeito, senador, deputado federal, deputado estadual e vereador –, no entanto, tem como corolário a menor atenção do eleitorado e da mídia para os processos eleitorais para os cargos menos relevantes, notadamente os legislativos, o que é obviamente prejudicial para a qualidade do pleito. O ideal seria, justamente, o de se caminhar no sentido contrário, separando-se dos pleitos para o Executivo os legislativos.
A defesa de tal proposta pode se explicar por uma provável maior confiança nas estruturas clientelistas (“centros sociais”) mantidas por candidatos do PMDB do que na sua capacidade de disputar votos mais programáticos. O PSB também defende essa mudança, possivelmente para dar mais opções estratégicas para seu crescente contingente de quadros ocupando governos estaduais e prefeituras municipais.
Como observado na primeira seção, a coincidência entre eleições municipais, estaduais e federais está, também, entre os pontos que constam na proposta de plebiscito lançada por PT, PDT, PC do B e PSB, juntamente com o financiamento de campanha e a possibilidade de apoio via internet para projetos de iniciativa popular. A realização de todas as eleições em um único momento destoa do restante do plebiscito, de caráter marcadamente progressista, talvez como concessão para obter as assinaturas necessárias. A possibilidade de financiamento exclusivamente público, ou ao menos a de proibir o financiamento de empresas, é o ponto mais decisivo da reforma política e os setores menos comprometidos com o capital ganham com sua politização. O outro tópico, sobre leis de iniciativa popular que contem com a internet em seu processo de recolhimento de assinaturas, faz parte de uma agenda geral de ampliação da participação popular. Além disso, foi inteligente que o PT e o PC do B não incluíssem a pergunta sobre sistema eleitoral – que a presidente Dilma havia originalmente mencionado –, pois é uma questão demasiadamente técnica e era grande o risco de aprovação de redução da proporcionalidade e instituição de caráter majoritário nas eleições para a Câmara.[4]
Voltando às questões que fazem parte das propostas de reforma política no Brasil hoje, um ponto claramente casuístico é o da defesa do fim da reeleição. É apoiado tanto pelos partidos de oposição – PSDB, DEM, PPS –, como pelo PSB, que tem no governador pernambucano Eduardo Campos possível concorrente à Presidência, e pelo PMDB (mas apenas para depois de 2014). O PT, obviamente, é contra, até porque Dilma Rousseff é sabidamente candidata à reeleição. PMDB, PSB e PSDB pretendem, paralelamente ao fim da reeleição, aumentar os mandatos para cinco anos.
O PSOL tem enfatizado mecanismos de ampliação da participação democrática da população, tal como regras mais fáceis para que sejam apresentados projetos de lei de iniciativa popular e a instituição do mecanismo de revogação dos mandatos eletivos (recall). Uma medida mais radical – que vem tendo pouca repercussão – foi sugerida pelo líder do PDT na Câmara, deputado André Figueiredo, e aparece entre as 13 propostas de reforma política da CUT: extinguir o Senado e instituir um parlamento unicameral no Brasil. Os cutistas reivindicam ainda proporcionalidade na Câmara, visto que, apesar de se adotar um sistema de lista aberta, o piso de oito deputados por estado e o teto de 70 levam São Paulo a ser sub-representado e várias unidades da Federação menores a terem um peso maior do que deveriam nos rumos da política parlamentar. A CUT divulgou em 2 de julho de 2013 um conjunto de propostas de reforma política, que teriam impacto bem mais efetivo do que as propostas dos partidos, mesmo considerando-se a agenda do PT antes de Vaccarezza agir para ajudar o PMDB a frear suas intenções.
No Senado, Romero Jucá (PMDB) é relator de uma proposta de minirreforma eleitoral (PLS 441/2012) aprovada em 16 de setembro com a intenção de ser aprovada pela Câmara dos Deputados o mais rapidamente possível, para realizar as mudanças na Lei Eleitoral (Lei 9.504/1997) e na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995) a tempo de valerem para a eleição de 2014. Para isso, seria necessária sua aprovação pelos deputados até 4 de outubro; o projeto, no entanto, só terminou de ser votado na Câmara em 22 de outubro e, como sofreu alterações, voltará ao Senado para apreciação.
Diferentemente das discussões que estão em vigor na Câmara, podendo levar a mudanças profundas no sistema político, pondo em pauta alterações drásticas no financiamento de campanha e no sistema eleitoral (Vaccarezza prontamente anunciou que o que for decidido não valerá para 2014), a proposta de minirreforma política do Senado trata de questões menos decisivas, como a regulamentação das campanhas e a transparência das doações, não assustando, portanto, os parlamentares, temerosos da imprevisibilidade das mudanças nas regras. Na proposta da OAB, do CNBB e do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, por sua vez, constam a liberação para propaganda não paga desde antes do período oficial de campanha, a assinatura de leis de iniciativa popular pela internet, entre outras medidas.
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Guilherme Simões Reis
[1] Este artigo é uma versão ampliada e mais detalhada de texto originalmente publicado no Boletim OPSA Especial: As jornadas de junho, n. 2, de abril/junho de 2013.
[2] A principal referência utilizada sobre o histórico das reformas políticas no Brasil foi: RABAT, Márcio Nuno (2009). “Reforma política: histórico, estágio atual e o lugar da recente proposta do Executivo.” Brasília: Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, abril.
[3] À época, o PSB ainda não havia saído do governo, o que ocorreria em setembro em função das aspirações presidenciais de Eduardo Campos.
[4] Não são mencionados, aqui, o PSB e o PDT dada a indefinição do primeiro sobre o tema e o inusitado apoio de pedetistas ao sistema uninominal.