A Notícia Triste – Número 105 – 06/2013 – [112-118]

A

 Este Breviário em PDF

Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto

A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas

Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas

Debaixo das bombas, das bandeiras
Debaixo das botas
Debaixo das rosas, dos jardins
Debaixo da lama
Debaixo da cama

Caetano Veloso, Enquanto Seu Lobo Não Vem, 1968

 Às exatas 12h e 13m do dia 15 de junho de2013, aâncora responsável de um canal fechado, comentando os acontecimentos ao vivo em Brasília, disse: “é uma notícia triste essa manifestação logo no dia de hoje”. O dia era a estreia da Copa das Confederações no estádio Mané Garrincha, na capital federal, entre Brasil e Japão. Basicamente, as centenas de pessoas descontentes no local carregavam cartazes contra, isso mesmo, contra a Copa. O país do futebol parecia não querer futebol na sua terra. Mas essa é a mais simples das explicações. Na verdade, os manifestantes, àquela altura auto-intitulados novos caras pintadas, estavam contra a aplicação de bilhões em eventos esportivos e pela destinação dos recursos em saúde e educação, de acordo com o mesmo noticiário.

Na semana anterior, as duas maiores cidades do país observaram protestos contra o aumento das passagens de ônibus e foram duramente contidos pela força policial do Rio de Janeiro e São Paulo. No primeiro momento, não havia quem respondesse pelos atos, a responsabilidade era da internet, essa nova entidade metafísica que produz manifestações, quase como o que dissera anteriormente o primeiro ministro turco, sobre seu país. Parece ingenuidade acreditar que um instrumento é capaz de produzir manifestações, do mesmo modo que os ludistas quebravam máquinas no século XIX contra a exploração do trabalho. Mas não se pode negar que a era da informática possui uma potência incrivelmente superior, como disse um pesquisador do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife e professor da UFPE, a internet é como uma faca, podemos usá-la para desossar frango, fazer sushi ou assassinar alguém.

De fato, a preocupação em identificar as causas e, até certo ponto, levar a sério o que estava acontecendo dependeu da repercussão que as manifestações no sudeste provocaram. Ficou logo evidente que a repressão policial inflamara as mais profundas paixões. Protestos fortuitos com bandeiras pontuais, como muitos manifestantes reconhecem, têm ocorrido, com maior ou menor sucesso, há, pelo menos, uma dúzia de meses. A insistência dos organizadores recebeu de lambuja o combustível que faltava: gás e inabilidade política.

Quando os mais eminentes intérpretes, então contemporâneos, da Revolução Francesa diziam que a responsabilidade era do processo de esclarecimento torto que aquele país vivia, e não da asfixia do povo, argumentavam a favor de que conquistas geram mais demandas, num processo virtualmente infinito de modernização em direção a mais direitos. Agora é preciso lembrar que os instrumentos se requintaram, mas, ainda assim, são instrumentos. Não é apenas a mídia conservadora e o primeiro ministro turco que atribuem às facas os motivos pelos assassinatos – lembremos das apreensões dos culpados frascos de vinagre –, a ausência de liderança nas terras do atlântico-sul refina a análise tosca de que as manifestações não têm legitimidade. A prova não é apenas dada pelas declarações de autoridades como o governador de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas também pelo rastreamento das comunicações entre os manifestantes e um brutal serviço semi-organizado de desinformação. Todos dividem os mesmos instrumentos e a coisa se potencializa.

Do  processo de conquistas de direitos durante o século XVIII francês pode-se extrair um paralelo com o Brasil atual. A contundente análise de Alexis de Tocqueville, já em meados do século XIX, aponta para um caráter desnecessário da revolução a fim de cumprir as demandas postas. É justamente a crescente aquisição de propriedade e status, descolada de um sistema sócio-político, que impulsionou o processo revolucionário. Do lado de cá do atlântico, quase três séculos e meio depois, o acesso ao consumo juntamente com uma atabalhoada estratégia de igualitarismo cívico produziu demandas sociais e políticas até então inexistente. Ora, se tese de que a “revolução” se aproxima na medida inversa das condições de vida é válida, certamente não por aqui. Na verdade, surpreende que até agora não se tenha falado a palavra, talvez esteja fora de moda, talvez seja perigosa, ou talvez a máscara de Guy Fawkes não expresse mais atentados a instituições com objetivos revolucionários. Aliás, o século inglês da Conspiração da Pólvora parece hoje auxiliar a ampla dificuldade de entendimento da conjuntura.

Ao inverso do que foi a Revolução Francesa – repleta de teorias, do marxismo à criação do conceito político de reação – a Revolução Inglesa de 150 anos antes foi, por muito tempo, entendida como um acontecimento sem motivos, sem raízes ideológicas e sem forças econômicas envolvidas; apenas uma disputa de interesses que, por vontade da fortuna, desembocou em uma guerra civil e acabou por separar a cabeça do corpo de Carlos I. Se, por um lado, tem-se visto, Jabores à parte, que só 20 centavos não justificam tamanhos humores (a ausência de motivos), por outro, o engrandecimento das demandas está diretamente vinculado à consciência de cidadania. Mais acostumados no trato com “elementos” do que com cidadãos, a resposta policial vem em termos desproporcionais.

Em Niterói, no dia anterior à tão difamada estréia da Copa, a polícia proibiu os manifestantes de usarem capuzes e máscaras para esconder os rostos. Se o coronel que tomou tal medida estivesse no carnaval, não teria tido muito sucesso. Esconder a face sempre parece ter por trás um motivo incriminador. Daí a polícia dizer que não pode é como dizer que os atos estão suspensos por si mesmos. Segundo o coronel, ninguém mais tem o direito de não produzir prova contra si mesmo. “Mostrem a cara para que vocês se incriminem”.

Depois de uma semana de protestos, timidamente, instituições dos movimentos sociais e alguns partidos políticos entraram no jogo. Oportunistas ou ideológicos, fato é que a imprensa não reconheceu legitimidade ou mesmo lideranças. Os governos estaduais e municipais se precipitaram em afirmar que estariam dispostos a negociar. Com quem? – perguntam os jornais. No dia 17 de junho, as manifestações encontraram seu primeiro ponto de inflexão. A anterior acusação de que “apenas” 20 centavos não valeriam estragar a festa futebolística caiu por terra na medida em que as bandeiras se ampliaram. Na pauta entraram a PEC37, asaúde, a educação e a democratização dos meios de comunicações, a jornada de 30 horas para profissionais de enfermagem etc. Se, para imprensa, o dia já era triste por atrapalhar somente a abertura do evento, imagina na Copa!

A segunda inflexão se deu por uma conjunção de fatores. Três dias depois da ampliação da pauta, diversas cidades – com destaque para São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Natal – começaram a exibir forte resistência à integração partidária aos protestos. Por enquanto, ainda é bastante difícil mensurar se o que ocorreu foi um elemento efetivamente novo ou se, como a pequena parcela da imprensa minimamente responsável preferiu informar, foi apenas o estopim para se resistir aos partidos, porque estes, agora, tentavam cooptar ou dividir os louros. Seria possível saber da resistência partidária se os partidos ficassem nos gabinetes? A resposta depende do jornal que se lê. Mas o fato é que essas instituições se incorporaram à coisa. Em Niterói, ainda sob a proibição das máscaras, no dia 25 de junho, gritou-se em rima pobre do alto e bom carro de som com alguns milhares no chão que a passeata estava do lado do PT e do governo federal. Independentemente da situação política da cidade – governo do PT que apóia Cabral e é contra o PT que é contra o Cabral, mas todas do governo federal, com exceções de alguns etc. – havia cartazes contra e a favor de quase tudo, com o devido destaque dado também pelo partido governista municipal ao transporte para os municípios vizinhos, concessão do estado do Rio. Há rumores, ainda não muito claros, de que em Porto Alegre a participação partidária, desde a semana anterior, tem estado presente nas mais diferentes cores. Mesmo quando instituições organizadas participam, poucos se aventam a explicações sobre as verdadeiras causas.

Houve quem culpasse a inflação, quase como a reprodução da gafe da Dilma quando disse que a conquista da inflação é dela e de Lula. Se o preço da passagem de ônibus não cabe no poema, ou o do tomate, o dia 17 confirmou que não é apenas o tão difamado índice o responsável para tanto. Parece também que, para a grande imprensa imortal e de bigode, a hostilidade para com os movimentos sociais foi oriunda de uma análise sociológica que unia partidos e organismos de classe, farinhas do mesmo saco que, como Feliciano, não os representariam. Neste ponto, surge um complicador. Mesmo que não seja possível anular a legitimidade das manifestações porque não se organizam a partir de instituições, a resolução, por outro lado, se torna, no mínimo, mais complexa. Além disso, esbarra-se no sempre presente receio na postulação de bandeiras e metas a serem cumpridas e defendidas de modo a priori da reflexão, como se os temas fossem tão importantes que os partidos e entidades de classe atrapalhassem o processo.

Contudo, chama menos a atenção esse tipo de hostilidade do que o trato que a imprensa deu a ela. Os âncoras não mais estavam tristes, do alto de uma idoneidade moral imparcialmente desejável a priori, revelavam o descontentamento politicamente orientado para com as instituições tradicionais dos regimes ocidentais contemporâneos. As manchetes dos pasquins revelavam dois lados das mesmas “corretas” demandas: os pacíficos e legítimos manifestantes que tornavam a “festa da democracia” um lindo espetáculo (e que agora não mais entristeciam os editores por deslocarem o foco do futebol); e os vândalos, hunos e visigodos que só queriam badernas e a destruição da civilização.

A psicologia das multidões que envolve tal maniqueísmo interpretativo dos veículos de comunicação oficiosos parte da assertiva positivista de Gustav le Bon de que, reunidos sob uma massa disforme, os seres racionais perdem a capacidade de refletirem sobre seus atos e transformam-se todos em um único monstro disforme, irascível, violento e desorientado paquidérmico em lojas de jóias finas. Ourives dessas jóias, os homens, mulheres e crianças que vestiam branco e mostravam os rostos rapidamente se retiraram quando a selvageria começou, sempre, devido a um pequeno grupo. A partir deste ponto, a tristeza ganhou lado, e a beleza ficou do outro. Os jornais aprofundaram a dicotomia quando Dilma se pronunciou em cadeia nacional e a linha editorial mudou novamente. Os adjetivos foram suprimidos em favor de perguntas técnicas aos especialistas, como: “O senhor acredita que o desgaste do governo repercutirá nas eleições de 2014?” ou, “Qual é a relação da inflação com os protestos violentos?”.

Não mais se podia insistir, depois do dia 22 de junho, que as passagens eram o foco, se tornara necessário encontrar outro pano de fundo. A interpretação militante da imprensa de que existiam apenas dois modos de se manifestar (o correto e o errado) deu lugar à bifurcação nas demandas sociais. A PEC 37 e a corrupção, finalmente, se tornaram protagonistas, para reviver a felicidade dos comunicadores que poderiam permanecer de olhos fechados aos cartazes que traziam o conhecido símbolo de uma emissora com dois riscos vermelhos diagonais e à incineração pública dos carros de cobertura televisiva. Afinal de contas, eram estes os vândalos destruindo as sagradas jóias da comunicação. A notícia não noticiada foi capaz de pressionar aqueles que estavam tristes a ficar do lado daqueles que antes eram causa da tristeza. Mas deixam de lado os que colocam chifrinhos na logomarca.

A velha fórmula petista, anunciada originalmente por Lula no Fórum Social Mundial em 2001, de um pacto nacional, quase aos moldes rousseaunianos, foi revivida pela ex-ministra da Casa Civil. Os cinco pontos levados em cadeia nacional no dia 24 não apenas revelam a total ausência de agenda, mas também mostram que, quando sob pressão, o governo responde. Talvez isso produza não um arrefecimento dos protestos, mas sim, uma combustão, caso a máxima de que mais conquistas geram mais demandas estiver ativa atualmente no Brasil, o que poderia levar a alguma convergência sobre o objeto em questão e, talvez, produzir uma agenda pública. Na mais otimista das interpretações, seria consequência de tal processo a produção de uma agenda da oposição que, em conflito com a do governo, poderia levar a cidadania do Brasil a outros patamares. Mas não é necessário ser tão ingênuo a ponto de acreditar que a igualdade entre os discursos de governo e oposição possam, programaticamente, se diferenciar no curto prazo. Basta que a tristeza provoque algum civismo para levar a algum contentamento.

Os arqueólogos do futuro terão bastante dificuldade para compreender a velocidade das respostas produzidas pelos Poderes Executivo e Legislativo. Rapidamente, a PEC 37 foi rejeitada e foi aprovada a destinação dos royalties do petróleo para saúde e educação, bem como tarifa zero de PIS e COFINS para o setor de transportes e ainda um forte indicativo do fim de votações secretas nos casos de julgamento de mandatos. Ao que tudo indica, por mais que possa surpreender, o Legislativo não está completamente morto. Mesmo que a justeza do momento da resposta possa ser questionado, tornou-se insustentável qualquer rejeição à interlocução.

No mesmo jornal televisivo que abriu este texto, no dia 26 de junho, produziu-se mais uma inflexão. Ao invés de um grupo pequeno, agora, a manifestação mineira era composta, exclusivamente de baderneiros. Ao invés da uma notícia triste, o adjetivo se tornou mais qualificado: feia. A justificativa para a ausência de legitimidade era igualmente profunda: não estavam carregando cartazes. Nesse contexto, imiscuído de profunda complexidade, poucos, prudentemente, se arriscaram a um diagnóstico, ou exercício de futurologia.

O que parece realmente ter atordoado até mesmo as mentes mais agudas às análises de conjuntura foi a força com que o debate da reforma política emergiu. Afinal, é a reforma das reformas, a mãe de todas as outras, urgente – diz-se na imprensa. Daí em diante o problema muda totalmente de figura. Quando as regras do jogo estão sob disputa, na justa situação em que os times não se entendem, a chance de que qualquer reforma seja tão somente a prévia de outras, tornando os acontecimentos apenas partidas amistosas, é grande.

Há uma latente contrariedade entre duas posições. Uma que defende as eleições majoritárias para as casas legislativas, mais comumente conhecida como voto distrital. A outra pretende corrigir a “mentirinha” que são os partidos, denominado voto em lista. Não é necessário lembrar que o Brasil adota tanto o voto distrital, quanto a lista, mas não aos moldes amplamente divulgados, o que confunde ainda mais o debate público. As teorias econômicas chamam tal impasse de trade off: mais representatividade ou mais governabilidade? A pergunta, por si mesma, só pode ser respondida isoladamente por aqueles que negligenciam um mínimo de reflexão sociológica. O pretenso fim das distorções não passa de miopia, pois todo sistema político possui distorções, cabe a cada país escolher as suas.

Mesmo que estejam envolvidos interesses sinistros, como diziam os fundadores americanos, o fato é que as questões de fundo não estão sendo tocadas. Deve-se fortalecer partidos porque, normativa ou sociologicamente, é o caminho a ser adotado para organizar a diversidade de paixões e interesses envolvidos ou, pelo contrário, deve-se estimar os mandatos? A propósito, o debate sobre os mandatos está longe de ser amadurecido. Do recall do Barbosa à fidelidade partidária de outros, ainda não se chegou ao cerne, qual seja, a essência do tipo de representação que o país deseja. Importa menos a técnica do desenho institucional do que as vontades envolvidas.

Em suma, dois são os questionamentos que podem ser atribuídos ao encaminhamento da reforma. Primeiro, a reforma, qualquer que seja, é compatível com as condições sociológicas do país ou, como se faz por ai, a importação de instituições carrega consigo também a dos hábitos e costumes? Desdobrando a questão, pergunta-se se, para além da compatibilidade sociológica, normativamente é a opção democrática a ser tomada? Segunda, dado que as respostas à primeira foram válidas, quais as garantias de que as metas serão cumpridas? Por exemplo, será que realmente os parlamentares serão cobrados em seu cotidiano depois da adoção do sistema majoritário? Numa situação de claro questionamento da legitimidade das instituições, e incluem-se os partidos nisso, é, no mínimo, perigoso sustentar qualquer reforma sem abordar estes pontos.

Nesse sentido, a grande imprensa atrapalha mais do que ajuda, uma vez que adota o imperativo metafísico da reforma, como ficou claro na fala da âncora, às 18h 53m do dia 26 de junho no já citado canal fechado: “esperamos que o legislativo faça a reforma”. O jarro e o licor, como dizia Montesquieu, trocaram de papel. Agora, as demandas da sociedade estão em função das instituições, calibradas pela premência de uma reforma, qualquer reforma. Os remédios republicanos devem ser aplicados às doenças republicanas, como escreveu James Madison. Em nosso contexto, diz a imprensa, não importa qual é o remédio, desde que se receite algum, porque não se conhece a doença, se é que o paciente está enfermo. Um mundo de ponta cabeça, como no século seguinte ao das grandes revoluções se dizia. É nessa forma apressada de encaminhar as “coisas”, em sentido durkheimiano, que o desastre se instala.

Com o clareamento das bandeiras nas ruas, parece que é o momento de se dizer se e, caso afirmativo, qual deve ser a reforma: mais governo ou mais representatividade; mandato do partido, dos eleitores ou do mandatário? Às ruas, sim, cabem essas respostas. Quando o capitão sai para o almoço, os marinheiros tomam conta do navio. Das condições necessárias para se encaminhar qualquer reforma política, pelo menos, uma delas pode ser respondida pelos cartazes e alto-falantes: normativamente, qual é o sistema político que queremos para a nossa representação?

Enquanto seu lobo não vem, vamos passear nos Estados Unidos do Brasil, debaixo das bombas e das bandeiras!

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Luís Falcão

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.