Murê – Número 84 – 12/2012 – [322-323]

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Murê era uma corruptela de “Samurai” (“Samura”, “Murai”, “Murê”). Ele recebeu esse apelido quando levou um tombo e abriu o queixo. Depois de umas semanas com os fios pretos dos pontos que pareciam uma barbicha rala, nosso colega muído e de  olhos puxados havia sido alçado à condição de samurai da turma. Murê, no início, não gostou de ser chamado desse jeito, sobretudo, porque o apelido lembrava o dia do acidente, no qual ele abriu o berreiro e, como se já não bastasse o dolorido do tombo, ainda ficou com fama de chorão. Nosso samurai era um chorão! Abusado como dizem que todo nanico é, Murê tratava logo de desembainhar carradas de xingamentos a quem o chamasse de Samura, Murai, Murê.

Com o tempo, as habilidades samurais de Murê lembravam menos a choradeira e os pontos no queixo e – sarado o corte e ostentada a cicatriz – passaram a se identificar com outras habilidades de nosso mirrado herói. Murê era um verdadeiro samurai com a bola nos pés. Travava batalhas duríssimas em peladas de marmanjos e deixava todo mundo de queixo caído. Os marcadores mais truculentos eram os que mais sofriam. Faltava só o Murê passar entre as suas pernas com bola e tudo. O que faltava de pulmão a Samura – quase raquítico – sobrava de agilidade nas pernas e no raciocínio. A bola, que quase alcançava o seu joelho, colava no pé e ele dava nós nas vistas se embrenhando entre troncos e pernas frondozas de seus oponentes grandalhões. Quanto maior a ânsia e a violência dos zagueiros, mais poeira levantava e Murê sumia como por trás de uma cortina de fumaça. Quando davam conta, já era: zigue-zague no goleiro e entrava com bola e tudo, fazendo embaixadinhas sob a trave imaginária que ia até o parapeito da janela da casa da dona Concita.

A gente ficava só na torcida, arquibancados na escadaria da igreja, porque nessa época o Murê já jogava com os galalaus. Eu torcia pro time que ele jogava movido por um sentimento ambíguo. Por uma lado, ele nos representava e era divertido ver os mais velhos com meio palmo de língua pra fora depois de levarem uma surra do Murê. Por outro lado, aquele moleque que a gente estava zoando, meses atrás, por ser chorão, agora, tirava onda com a nossa cara. Mas o saldo de gols era positivo e era bom, depois, ouvir as histórias do Murê e tomar uns olés dele quando ele resolvia retornar aos mortais.

Aproveitando um desses momentos, eu resolvi tentar aprender com Murê (no tempo em que eu ainda tinha esperanças de que meu caso de canelas de pinho não fosse crônico) e perguntei qual era o segredo dele, o quê ele fazia para jogar tanta bola. A resposta foi digna de um verdadeiro samurai:

– Eu fico um tempão chutanto a bola na parede.

– Só isso – respondi.

– Só.

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André Rodrigues

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.