Anotações sobre a noção e o desenvolvimento do ‘Direito Natural’ na Suma de Teologia de Tomás de Aquino – Número 65 – 06/2012 – [189-197]

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Os que falam com entendimento devem apoiar-se em sua lei, e com força ainda maior. Pois todas as leis humanas se nutrem da lei divina, que é única. Ela prevalece o quanto lhe apraz e basta a tudo e ainda sobra. (Heráclito de Éfeso, frag. 91b)

Antes de tudo, quando se fala em ‘direito natural’, supõe-se um conhecimento da natureza acessível à razão universalmente reconhecida; isso é o que parece contradizer as disciplinas históricas e etnológicas que manifestam a multiplicidade dos conteúdos do direito e da justiça[1]. Porque, por exemplo, toda construção de regras de um grupo é um fato de cultura, não de natureza. Tem-se aqui, senão bom, mas um forte argumento contra o direito natural por parte das disciplinas históricas e etnológicas, a saber, a história e a antropologia, para citar ao menos duas das mais célebres. Não obstante isso, um dos grandes representantes da etnologia, o pensador francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em passagem de sua obra La Pensée sauvage [O Pensamento selvagem] de 1962 fala de “reintegrar a cultura na natureza, e finalmente a vida no conjunto de suas condições físico-químicas”. Lévi-Strauss, com efeito, põe à luz o alicerce orgânico de toda produção humana. Mas o que é o direito natural? Em princípio, Jacques Leclerc, em seu Leçons de droit naturel [Lições de direito natural], afirma que o direito natural consiste assim “num conjunto de princípios regendo as condições de toda sociedade, porque corresponde à natureza idêntica em todo homem”.

Apesar disso, pergunta-se: há um direito natural? Qual sua relação com a lei natural e a lei divina? Nesta perspectiva, portanto, seguir-se-ão as anotações sobre a noção e o desenvolvimento do ‘direito natural’ na tradição filosófica antiga e medieval, com o objetivo de analisar o estatuto da questão de acordo com o problema já inaugurado no teatro grego de Sófocles (496-405 aC.), com Antígona; na especulação sobre o Kósmos, com Heráclito de Éfeso (535-475 aC.); posteriormente com Platão (428-348 aC.) e, sobretudo, Aristóteles (384-322 aC.) e na Idade Média com seu mais alto representante, o teólogo e filósofo dominicano Tomás de Aquino (1224/25-1274) e que se prolonga notadamente no pensamento ibérico dos séculos XV e XVI, sobretudo no que se denomina Escola de Salamanca, em que ideias teológicas fundiam-se com a especulação filosófica, jurídica e econômica no sentido de responder aos problemas surgidos na época de então na Europa e no Novo Mundo. O direito natural, com efeito, malgrado suas constantes críticas e contra-argumentos, ainda hoje é bastante explorado como fonte de estudo e investigação, notadamente na cultura jurídica ibérica (Espanha e Portugal, grosso modo) e, sem dúvida, influenciou e influencia Ordenamentos Jurídicos ainda vivos. A atenção, aqui, portanto será na concepção jusnaturalista do século XIII, sobretudo no entendimento de Tomás de Aquino na Suma de Teologia, Questão 57.

Direito natural, lei natural e conceito de natureza

A teoria antiga do jus naturale, retomada pelos Padres da Igreja (período na história conhecido como Patrística pelo alto grau e valor de santidade e inteligência com que figuras eminentes trataram as questões teológicas e doutrinais da fé cristã em face da sabedoria filosófica, no sentido de constituir e justificar o pensamento cristão) e Santo Tomás de Aquino, tem como conceito chave aquele de direito natural.

A ideia de uma lei não escrita e imutável, mais alta que a lei humana porque ela teria uma origem divina é formulada já em Heráclito de Éfeso, em Antígona de Sófocles, como já enunciado anteriormente.

É com a elucidação, no entanto, do conceito de natureza que esta ideia de lei não escrita chega a um estatuto filosófico. Sobre este conceito vêm explicitarem-se as noções de norma e normalidade que Platão tira da ligação com a teoria das ideias: uma coisa é segundo a natureza desde que ela realize a conformidade ao seu arquétipo[2].

Mas as dificuldades de um mundo das ideias, separado radicalmente do sensível, conduzem Aristóteles à uma crítica e a uma elaboração de uma nova filosofia da substância onde o conceito natureza tem papel fundamental. A natureza inteligível, ou essência é imanente ao indivíduo que ela informa na sua estrutura e no seu agir. A normalidade é normatividade; ela consiste em responder às exigências da natureza tendendo retamente para os fins que ela implica. Nessa ontologia dinâmica que comanda um modelo biológico, toda natureza está submissa ao movimento, que ela deve operar segundo seu próprio fim, que é também sua perfeição.

Contexto e panorama da Suma de Teologia, importância do seu método

O período compreendido entre o início do século XI e fins do século XIII pode ser denominado Idade Média Central[3]. Neste período há de certa forma um surto demográfico, com acentuado incremento populacional, refletindo-se, sobretudo, nas cidades que se encontravam em franco desenvolvimento. Contava com sistema econômico tripartite, se assim se pode dizer, incluindo forte crescimento agrícola, artesanal e comercial. A sociedade composta em ordens: os oratores, os bellatores e os laboratores. Em outras palavras: os que rezavam, os que guerreavam e os que trabalhavam. A Igreja tem papel primordial nessa época, com a transmissão e manutenção do conhecimento. É importante notar a religiosidade destes séculos, pois possui em seu bojo uma espécie de inquietude na vida da população. Pode parecer paradoxal afirmar isso. Correntes ortodoxas da fé, correntes heréticas, decadência moral, movimentos de reforma, renovação e reestruturação da Igreja. Mais exatamente, nos séculos XII e XIII, há um esforço de volta ao evangelho com as ordens mendicantes, Dominicanos e Franciscanos: “Os séculos XII e XIII foram teatro, além do renascimento cultural, de um renascimento religioso profundo. De modo geral, havia um desejo de que se retomasse a simplicidade e despojamento da Igreja primitiva simbolizada pela comunidade de Jerusalém (Atos 2, 42-47). A este desejo se uniu no século XIII a idéia de pregação itinerante. Temos, assim, o que era chamado de ‘vida apostólica’”.[4] Vale ressaltar que é na vida religiosa dominicana que Tomás de Aquino (1224/25–1274) encontrará a base para seu pensamento filosófico-teológico, pois aí encontrará incentivo e será guiado para percorrer os caminhos em busca da verdade, contando com seus mestres, apoiados nos “pagãos” (filósofos) e nos “santos” (Padres da Igreja). Do ponto de vista filosófico, predomina a escolástica (busca do saber pela leitura e interpretação de textos considerados “autoridades”) em que se procura a harmonização de fé e razão. Essas duas forças, para Tomás de Aquino foram o centro de sua vida de santo e doutor. A harmonização entre fé e razão recorda o conceito de virtude elaborado por Tomás, com base em Aristóteles e nas Escrituras. Tal como diz o grande conhecedor da Idade Média e de Santo Tomás, M.-D. Chenu: “A vida virtuosa é o império da razão” e acrescenta, “a virtude é racional: com efeito, como obra da razão é que uma ação do homem se faz, propriamente uma ação humana.” [5] Uma nova instituição será o lugar no qual se dá o esforço deste novo pensamento: a educação se desprende das abadias e se organiza nas universidades.

O século XII é o marco do deslocamento do ensino das abadias às catedrais. Constituíam-se em corporações (comunidades de trabalho e sindicatos) os profissionais do estudo e os aprendizes; “a universidade dos mestres e estudantes” (universistas magistrorum et scholarium). Por fim, o conhecimento desenvolvido a partir de uma visão naturalista do mundo e não apenas da palavra divina. Figura emblemática foi o mestre de Tomás de Aquino, Alberto Magno, que desenvolveu pesquisas em vastíssimo campo de conhecimento, sobretudo em pesquisa e estudo sobre os animais, mantendo, no entanto sua orientação como teólogo.

Fato marcante nos séculos XII e XIII, sem dúvida foi a recepção de Aristóteles no Ocidente, que se deu, sobretudo via árabes e judeus.

(…) com Aristóteles, os tradutores de Toledo difundiram no Ocidente os resultados da abundante especulação árabe, e particularmente das obras de Avicena, de modo que os Cristãos encontram-se diante de um bloco filosófico no qual o peripatetismo histórico é como que envolvido [enveloppé] pela filosofia árabe.[6]

De Libera afirma que “a Idade Média ocidental só tomou conhecimento tardiamente da integralidade da obra de Aristóteles” e arremata, “a recepção de Aristóteles se faz em três etapas. Até os anos 1150-1160, a Idade Média só conhece uma ínfima parte de sua obra lógica (…). É apenas em fins do século XII e no início do XIII que o conjunto da obra de Aristóteles está em circulação”.[7]

Vale, outrossim, ressaltar o estilo e a importância do método da Suma que é caracterizado por uma estrutura lógica própria da organização de sumas da época em que foi escrita (século XIII). É, de acordo com De Libera, “o protótipo do questionamento do saber na unidade de trabalho do ‘artigo’ (articulus), que, em sua própria estrutura, retoma a forma da questão disputada”. Deste modo, a Suma de Teologia é dividida em três partes. A segunda parte, por ser muito extensa, é subdividida, por sua vez, em duas: a primeira parte da segunda parte e a segunda da segunda parte. Costumeiramente, estas quatro partes resultantes são indicadas pela sua numeração em latim: prima (Iª), prima secundae (Iª-IIªe), secunda secundae (IIª-IIªe) e tertia (IIIª). [8]

O direito natural propriamente dito na Questão 57 da Suma de Teologia

Tomás de Aquino, após tratar da prudência, tratará da justiça. Essa, por sua vez, se estenderá em quatro partes: (i) a própria justiça, (ii) suas partes, (iii) o dom que a aperfeiçoa, (iv) os preceitos que lhe concernem. Sobre a justiça há, portanto, quatro questões a estudar: (i) o direito, (ii) a justiça em si mesma, (iii) a injustiça e (iv) o julgamento. Quanto à questão (i) o direito ele a divide em quatro artigos, ou perguntas, a saber, (a.1) o direito é o objeto da justiça? (a.2) é conveniente dividir o direito em natural e positivo? (a.3) o direito das gentes se identifica com o direito natural? (a.4) devem-se distinguir como especiais o direito senhorial e o direito paterno? Limitar-se-á aqui aos artigos (a.2) e (a.3), pois concentram as questões mais relevantes sobre o direito natural, embora Tomás de Aquino sempre, como método de trabalho e estilo, articule os assuntos no sentido de não isolá-los, mas ao contrário, dar unidade à sua obra.

A Questão 57 é bem sucinta. Limita-se a designar e a definir o direito. Quanto ao essencial, reconhece-se nessa breve síntese a integração das doutrinas aristotélicas, ampliadas e adaptadas ao propósito teológico. As diferentes correntes tradicionais: patrísticas, filosóficas e jurídicas, emprestadas em especial do direito romano, ligam-se igualmente à síntese; o que não deixa de apresentar certo esforço artificial de conciliação das “autoridades”, particularmente no que concerne à noção e à classificação do “direito das gentes” (a.3).

Segundo C.J.P. Oliveira, o tratamento sumário dado aqui a questões importantes como a noção de direito natural, do direito positivo, explica-se, pelo menos em parte, pelo fato de que são abordadas de maneira equivalente no longo tratado das leis (veja-se I-II, q. 94 e s.). Aliás, essas noções e essas distinções, mencionadas de passagem nos lugares correspondentes em Aristóteles na Ética a Nicômaco (1. V), que constitui a fonte e a referência mais imediata, não terão uma importância maior ou mesmo incidência maior nas questões teóricas e práticas desenvolvidas posteriormente neste tratado[9].

Diante do exposto, segue-se  uma breve análise aos artigos 2 e 3 da Questão 57.No (a.2), o ponto de partida da distinção entre direito natural e direito positivo, assim como de suas aplicações nos artigos seguintes, encontra-se em Aristóteles. Este distingue no direito “político” que rege a polis (a cidade, a sociedade), supostamente constituída de cidadãos livres e iguais um direito natural e direito positivo, na medida em que as obrigações e tipos de prestações que eles determinam decorrem seja da natureza das coisas, das ações e das relações humanas, seja de uma disposição puramente convencional. Tal é o ponto de partida adotado por Sto. Tomás, que amplia as perspectivas aristotélicas em dois domínios importantes, senão fundamentais. Em primeiro lugar, ele estende a distinção entre direito natural e positivo à lei divina; além disso, ele vincula o direito natural ao homem, considerado em si mesmo e de maneira absoluta, e não só ao “cidadão”, sujeito do “direito político”. Em Sto. Tomás, há uma ampliação dessas perspectivas no sentido teológico e antropológico da compreensão do direito natural que pode ser considerado como uma inovação audaciosa e rica de consequências. Agora, portanto, sem exageros de citação, seguir-se-á o conteúdo dos artigos tal qual consta na obra de Tomás.

Diz o artigo 2 da Suma de Teologia o seguinte:

Quanto ao segundo, assim se procede: parece que o direito não se divide convenientemente em natural e positivo. (i)[10] Com efeito, o que é natural é imutável e o mesmo para todos. Ora, tal não se dá nas coisas humanas; porque todas as regras do direito humano falham em certos casos, nem estão em vigor em toda parte. Logo, o direito natural não existe. (ii) Além disso, chama-se positivo o que procede da vontade humana. Ora, não é por proceder da vontade humana que algo vem a ser justo. Do contrário, a vontade humana não poderia ser injusta. Logo, sendo o justo o mesmo que o direito, parece que não há nenhum direito positivo. (iii) Ademais, o direito divino não é o direito natural, pois excede a natureza humana. Igualmente, não é o direito positivo, pois não se apóia na autoridade humana, mas na divina. Logo, é inconveniente dividir o direito em natural e positivo. Em sentido contrário, o Filósofo [Aristóteles] afirma: “no direito político, um é natural, outro legal”, isto é, posto por lei. Respondo: como já foi dito, o direito ou o justo, vem a ser uma obra ajustada a outrem, segundo certo modo de igualdade. Ora, isso pode realizar-se de duas maneiras: (a) em virtude da natureza mesma da coisa. Por exemplo, se alguém dá tanto para receber tanto, isso se chama direito natural; (b) por convenção ou comum acordo. Por exemplo, quando alguém se dá por satisfeito de receber tanto. O que se pode dar de dois modos: primeiro, por uma convenção particular, quando pessoas privadas firmam entre si um pacto; segundo, por uma convenção pública, quando todo o povo consente que algo seja tido como adequado ou proporcionado a outrem, ou assim o ordena o príncipe, que governa o povo e o representa. Isso se chama direito positivo. Quanto ao (i), portanto, deve-se dizer que o que é natural a um ser dotado de uma natureza mutável há de ser necessariamente o mesmo, sempre e em toda parte. Ora, a natureza humana é mutável. Por isso, o que é natural ao homem pode falhar algumas vezes. Por exemplo, por exigência da igualdade natural, um depósito deve ser restituído a quem o confiou. Assim, se deveria observar sempre, se a natureza humana fosse sempre reta. Porém, como por vezes acontece que a vontade humana seja depravada, há casos em que evitar que um homem de vontade pervertida venha a utilizá-lo mal; por exemplo, se um louco furioso ou um inimigo do Estado reclamasse as armas que depositou. Quanto ao (ii), deve-se dizer que a vontade humana, por uma convenção comum, pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham à justiça natural. Tal é o lugar do direito positivo. Daí, o que diz o Filósofo: “o justo legal é aquilo que, antes, não importava ser de um ou de outro modo; porém importa, sim, depois de estabelecido”. Mas, se algo, de si mesmo, se opõe ao direito natural não se pode tornar justo por disposição da vontade humana. Se, p. ex., se decretasse que é lícito roubar ou cometer adultério. Por isso, está escrito no livro de Isaías: “Ai daqueles que estabelecem leis iníquas”. Quanto ao (iii), deve-se dizer que se chama direito divino o que foi promulgado por Deus. Quer se trate de coisas naturalmente justas, mas cuja justiça escapa aos homens; quer se trate de coisas que se tornam justas por instituição divina. Daí a dupla distinção que se aplica ao direito divino como ao direito humano. Pois, há na lei divina, coisas prescritas, porque são boas, e proibidas, porque são más. Outras, ao contrário, são boas, porque prescritas, e más, porque proibidas[11].

Após se perguntar se o direito pode ser dividido em natural e positivo, Sto. Tomás, no artigo 3, se pergunta se o direito das gentes é o mesmo que direito natural. Há, contudo, nesse artigo, dois temas bastante controversos em face da posição de Sto. Tomás ao seguir os antigos, em especial, Aristóteles, na justificação natural da escravidão e uma outra, seria a ideia de um ius gentium, i. é, um direito das gentes.  O caráter natural da escravidão, segundo C.J.P. Oliveira é concebido na obra sob a perspectiva Aristotélica. A condição servil é considerada “natural” e legítima nesse sentido de que uma forma de dependência pode ser útil “para esse indivíduo” (= o escravo) que ganha ao ser (melhor) dirigido “por um mais sábio”, e para “este (= o senhor), é útil ser ajudado pelo primeiro”. Justificava-se assim uma condição inumana, mais ou menos cruel, recorrendo-se a um argumento teórico, fundado na partilha e subordinação das competências do trabalho.

Ressalta-se, antes de mostrar o conteúdo do a. 3, na íntegra, o “direito das gentes” que é entendido e explicado como um direito consuetudinário, que se supõe universal, compreendendo os usos e práticas comuns aos diferentes povos. A doutrina contida no a.3 liga-se essencialmente às seguintes distinções aristotélicas: (a) de um direito natural fundado seja sobre uma consideração absoluta, (b) seja sobre uma consideração relativa das coisas ou (c) das instituições; o que constitui uma dupla categoria: primária e secundária, do mesmo direito natural. Na segunda categoria, de um direito natural derivado da consideração das “consequências”, das vantagens ou inconvenientes de uma prática ou de uma instituição, entra a noção de “direito das gentes” (que se identifica desse modo com o direito natural secundário…). A preocupação de conciliar Aristóteles e os juristas romanos, que estendiam aos animais o direito natural (primário), concebido de maneira absoluta, vem trazer algumas complicações acessórias a uma doutrina de resto bastante complexa. A doutrina aristotélica do direito natural é aplicada com toda clareza à questão da propriedade privada.

Posto isso, veja-se, na íntegra, o que diz Sto. Tomás no a.3:

Quanto ao terceiro, assim se procede: parece que o direito das gentes é o mesmo que o direito natural. (i) Com efeito, todos os homens só estão de acordo sobre aquilo que lhes é natural. Ora, todos estão de acordo sobre o direito das gentes. Assim o diz o Jurisconsulto: “O direito das gentes é utilizado por todas as nações humanas”. Logo, o direito das gentes é o direito natural. (ii) Além disso, a escravidão é natural entre os homens; pois, alguns são naturalmente escravos, como prova o Filósofo [Aristóteles]. Ora, as escravidões pertencem ao direito das gentes, como diz Isidoro. Logo, o direito, das gentes é o direito natural. (iii) Ademais, o direito, já foi dito, dividi-se em natural e positivo. Ora, o direito das gentes não é positivo, pois jamais todas as nações se reuniram para estabelecer algo de comum acordo. Logo, o direito das gentes é o direito natural. Em sentido contrário, Isidoro[12] declara: “O direito ou é natural ou civil ou das gentes”. Assim, o direito das gentes é distinto do direito natural. Respondo: Como se disse, o direito ou o justo natural é o que, por natureza, é ajustado ou proporcional a outrem. Ora, isso se pode dar de duas maneiras: (a) primeiro segundo a consideração absoluta da coisa em si mesma. Assim o macho, por natureza, está adaptado à fêmea para dela gerar filhos; e o pai, ao filho, para que o nutra. (b) segundo, algo é naturalmente adaptado a outrem, não segundo a razão absoluta da coisa em si, mas tendo em conta as suas consequências: por exemplo, a propriedade privada. Com efeito, a considerar tal campo de maneira absoluta, nada tem que o faça pertencer a um indivíduo mais do que a outro. Porém, considerado sob o ângulo da oportunidade de cultivá-lo ou de seu uso pacífico, tem certa conveniência que seja de um e não de outro, como o Filósofo o põe em evidência. Ora, apreender as coisas de maneira absoluta não convém apenas ao homem, mas também aos animais. Eis por quê, o direito chamado natural, no primeiro sentido, nos é comum, a nós e aos animais. “Do direito natural assim entendido, afasta-se o direito das gentes”, no dizer do Jurisconsulto; “pois, aquele é comum a todos os animais, este, porém somente aos homens entre si”. Ora, considerar alguma coisa, confrontando-a com suas consequências, é próprio da razão natural, que dita esse proceder. Assim o declara o jurisconsulto Gaio: “Aquilo que a razão natural estabelece entre todos os homens, todas as nações o observam, e se chama o direito das gentes”. Quanto ao (i), portanto, deve-se dizer que assim se acha resolvida a primeira objeção. Quanto ao (ii), deve-se dizer que, considerando de maneira absoluta, não há razão natural para que este homem seja escravo, mais do que um outro, mas só por uma utilidade consequente, enquanto seja vantajoso a um ser governado por um mais sábio, e a este ser ajudado por aquele, como diz Aristóteles. Por isso, a escravidão, pertence ao direito das gentes, é natural no segundo sentido, não no primeiro. Quanto ao (iii), deve-se dizer que a razão natural dita o que pertence ao direito das gentes, levando em conta sua afinidade com a equidade. Por isso, esses pontos do direito das gentes não precisam de uma instituição especial, mas são estabelecidos pela própria razão natural, como se diz na autoridade citada.

Após o exposto, considerando-se, sobretudo as duas citações dos artigos 2-3 da Suma de Teologia na íntegra, não se quer assim mostrar erudição ou mesmo deixar o texto empolado e hermético ao leitor, ao contrário, enfatizar a importância da leitura e estudo dos artigos em sua integralidade. O estilo de Sto. Tomás, diga-se de passagem, é marcadamente denso e “analítico” e estruturalmente lógico. O que é um mérito. Em poucas palavras, então, pode-se inferir do exposto, para finalizar, o que sumamente se entende por direito natural, trocado em miúdos: (a) Toda regra emana de Deus. No topo do sistema legislativo se encontra a lei eterna, (b) não se conhece a natureza senão por nossos sentidos, tendo que haver um método experimental, (c) a lei natural participa da lei eterna na criatura racional. A lei eterna é o desenho divino. Esta tem dois defeitos: incognoscível e impenetrável. Assim, o direito natural, segundo Sto. Tomás, é o objeto da lei natural e o direito positivo deriva da parte arbitrária da legislação humana. O quadro finalmente é o seguinte: (i) Lei eterna; (ii) Lei divina antiga e nova; (iii) Lei natural; (vi) Lei humana; (v) Direito natural e (vi) Direito positivo. No mais, diria Heráclito de Éfeso em seu fragmento 100: “O povo deve lutar por sua lei como por suas muralhas”. Eis aí a força e importância da lei e do direito no coração mesmo das civilizações.

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Jefferson Valladares


[1] STIKER-Métral, Marie-Odile. Droit Naturel. In: Dictionnaire de la philosophie. Encyclopaedia Universalis Albin Michel: Paris, 2000. p. 1228.

[2] Ibid. p. 1230.

[3] Veja-se, por exemplo, VALADARES, J. C. . A Justiça Geral em Tomás de Aquino. Revista Lumen: São Paulo, 2010. (Utilizou-se boa parte dos aspectos históricos expostos, do anterior estudo aí apresentado).

[4] NASCIMENTO, Carlos Arthur. O que é filosofia medieval? São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 53-54.

[5] CHENU, Marie-Dominique. Santo Tomás de Aquino e a teologia. Rio de Janeiro: AGIR, 1967. p. 142.

[6] CHENU, Marie-Dominique. Introduction a l`étude de Saint Thomas d`Aquin. Deuxième édition. Paris: J. Vrin, 1954. p. 33.

[7] DE LIBERA, Alain. A filosofia medieval. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p. 11-30.

[8] NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Santo Tomás de Aquino, o Boi Mudo da Sicília. São Paulo:Educ,1992.p.62

[9] OLIVEIRA, C.J.P. Introdução às questões 57-122 da II–II. Suma Teológica de Tomás de Aquino. São Paulo: Loyola, 2005, v. VI, p. 43-46.

[10] A notação que se segue no corpo do texto do artigo, não se encontra originalmente na Suma de Teologia, mas escolha metodológica e lógica de nossa parte, p. ex. “(i), (a) etc.”.

[11] Suma de Teologia. IIª – IIªe, Q. 57, a.2.

[12] Isidoro de Sevilha (560-636), Bispo de Sevilha, na Espanha visigótica. (grifo nosso).

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.