Difícil e delicada é a tarefa de delimitar as conseqüências políticas da arte. Se os determinismos produzem toda sorte de simplificações, que mais ofuscam do que expõem a complexidade das obras, interpretar a produção artística para além de qualquer condicionante histórico ou sociológico resta também insuficiente. A presença do tempo e da vida nos engenhos humanos impõe-se de modo inafastável, mesmo quando escapa à própria consciência do autor.
A relativa independência do prazer estético, que nem sempre demanda qualquer tipo de conhecimento do contexto ou do autor, não exclui as possíveis vantagens de certa perspectiva mais ampla da obra de arte, percebendo-a dentro de um mundo que também se faz presente em sua forma. Conjugar o olhar interno, preocupado com sua estrutura, ao olhar externo, que a insere no contexto, se faz imprescindível, já que compreender a obra de arte é perceber sua interação com o mundo, as formas pelo qual ela modifica e é modificada pela realidade que a cerca. A influência da época, por sua vez, não se faz presente apenas nos temas a serem tratados, mas também no modo pelo qual a obra de arte interpela o mundo que a cerca.
Tais considerações preliminares podem oferecer interessante instrumento para abordar certo senso comum recente sobre a obra de Chico Buarque, que identifica nos seus últimos dois discos, “Carioca” e “Chico”, um ocaso criativo. Atentar para a percepção de Chico sobre o Brasil ajudaria a melhor compreender aspectos da sua produção musical recente. O argumento não pretende reduzir as novas inflexões do compositor a meros reflexos da sociedade, já que a presença da época explicita alguns aspectos, mas de modo algum esgota os muitos motivos das transformações.
A obra de Chico, como a de todo compositor com tão amplo repertório, possui fases diversas, determináveis segundo distintos critérios. Pode-se, de certo modo, distinguir uma primeira fase até Chico Buarque º 4, de 1970, com um Chico ainda a fazer seus primeiros experimentos na composição, em que pesa a fantástica qualidade de algumas músicas, até hoje clássicos da MPB. Construção iniciaria uma nova fase, marcada por uma maior apuração formal nas letras e temática com profundas críticas à situação política repressiva da época [1]. As incursões teatrais, como em Gota D’água e na Ópera do Malandro, dão o tom de um momento com maior influência direta e reflexão explícita sobre as questões públicas, mesmo que a política não apareça de forma simplista, mas quase sempre se delineie a partir das minúcias do cotidiano. O processo de abertura corre simultâneo a um Chico mais introspectivo e lírico, em que pese confecção de hinos da esquerda como “Vai Passar”. As temáticas políticas permanecem presentes, como sempre estiveram desde seu primeiro disco, a trilha sonora da peça “Morte e vida Severina”, mas se expõem de modo mais sinuoso, não se define de modo tão claro o inimigo a ser combatido.
Paralelamente, a parceria com Edu Lobo se torna cada vez mais freqüente, com três discos: “Grande Circo Místico”, “Corsário do Rei” e “Dança da meia-lua”. Edu, com suas sofisticadas harmonias e melodias, será uma das fontes de complexificação do repertório do Chico músico, perdendo apenas para a central influência de Tom Jobim. O Chico mais lírico e introspectivo em suas temáticas[2] torna-se cada vez mais rebuscado nos seus recursos musicais, por meio de processo que tem em Jobim sua figura central. Trata-se de ampla trajetória, que, todavia, ganha maior intensidade após “Francisco”, lançado em 1987. Tal idéia de uma crescente “jobinização” da obra de autor, já corrente na literatura[3], se expõe de forma também explícita na obra e nas declarações de Chico. Tom se faz onipresente, das menções diretas ou indiretas ao “maestro soberano”, como na faixa título do disco Paratodos, aos inúmeros depoimentos em que Chico expõe a enorme centralidade de Jobim na sua concepção de música: “Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim.”[4].
A idéia de uma crescente relevância de Jobim não sugere, todavia, que a presença do maestro carioca surgiu apenas tardiamente na carreira de Chico. O próprio compositor aponta a bossa nova como o impulso maior do seus primeiros anos e menciona o enorme impacto da primeira audição de Tom Jobim[5]. Resta inegável, contudo, que ao longo dos anos a influência jobiniana progressivamente sobrepujou a maior presença Noel Rosa, mais perceptível nos primeiros anos de autor[6]. O compositor se move ao longo de dois marcos da formação da canção popular no Brasil, em trajetória que vai do seu primeiro grande artífice, Noel, até aquele que talvez seja, ao menos na percepção nacional e internacional, seu grande expoente Jobim.
O Chico contemporâneo, dos dois últimos discos, é aquele que leva a forma-canção a seus extremos, explorando ao máximo suas possibilidades rítmicas melódicas e harmônicas[7]. As letras, por sua vez, aparecem cada vez mais complexas, sem a linearidade de outrora[8], quando ainda podíamos identificar grandes narrativas no cancioneiro buarquiano. Chico avança ainda mais na forma canção, nessa foma musical definida, como afirma Tatit[9], não pela sobreposição entre elementos autônomos, música e letra, mas justamente pela fina interação e quase indiscernibilidade entre ambas, em simbiose na qual não somente a música condiciona a letra, mas também a letra sugere caminhos melódicos, harmônicos e rítmicos.
Fernando Barros e Silva expõe, seguindo a trilha de Nestrovski e Wisnik, como o autor sugere um diagnóstico sobre a canção nas suas recentes composições, onde ele leva ao extremo a forma canção popular brasileira, inaugurada por Noel e desenvolvida por Jobim. Em “Subúrbio”, por exemplo, “a aceleração harmônica e os intervalos melódicos pequeníssimos preenchem todos os espaços possíveis da canção, obtendo o efeito de um deslizamento incessante, de um cromatismo levado aos seus limites, que faz com que tudo se mova ao mesmo tempo”[10]. Barros e Silva cita, então, Nestrovski, concluindo: “Não podemos mais imaginar o que ele possa fazer, em termos harmônicos e melódicos, para além deste ponto a que ‘Subúrbio’ chegou”[11].
As razões para tal inflexão podem ser procuradas em distintos lugares, não somente a partir da interação com Jobim e Lobo [12]. O papel crescente da literatura, forma mais introvertida, em oposição à extroversão característica do teatro, que outrora demandava a atenção artística de Chico, pode ser uma resposta parcial, em interpretação sugerida pelo próprio autor/compositor:
Muito de meu trabalho dos anos 70 estava ligado ao teatro. Muitas das minhas canções amorosas também por conta do teatro eram sempre dramáticas. “Olhos nos Olhos”(1976), por exemplo, é uma canção muito teatral. As músicas mais recentes como, por exemplo, “Valsa Brasileira”(1989) e Futuros Amantes(1993) são mais líricas e mais poéticas. [13].
A árdua tarefa de escrever quatro romances dificilmente passaria sem rastros. As conseqüências não se reduzem, todavia, à possível utilização de recursos literários nas canções, ponto, aliás, secundário, haja vista a especificidade da composição de letras [14]. A principal influência da literatura decorre da distinta relação com o mundo por ela imposta, dos imperativos de isolamento que a redação de um livro demanda, bem distintos da rotina característica do músico. Mais uma vez ressalto que não é caso de reduzir as mudanças de Chico à sua experiência literária ou à qualquer outras causa pretensamente definitiva, mas de compreender como dentre outros aspectos, certas transformações influenciaram sua nova produção.
Há, entretanto, outro vetor de mudança, que é no mais das vezes ignorado quando da análise das últimas produções de Chico. Trata-se da sua percepção sobre o mundo contemporâneo, da interpretação do Brasil sempre presente, de modo explícito ou subtendido, na sua obra. Fernando Barros e Silva identifica em Chico certa descrença ante o futuro do país, característica que remonta aos anos 1960, quando o trauma de 1964 a ele impedia qualquer perspectiva mais otimista ante os novos vento do nacional-popular. Depois de uma década de 1970 marcada por embates com a ditadura, o desencanto retornaria com a abertura e a redemocratização, quando através de canções como “Bye Bye Brasil”, “Almanaque” e “Bancarrota Blues” ele tematizaria os efeitos perversos do recente crescimento econômico e da maior inserção do Brasil no mundo.
Barros e Silva também examina, em artigo posterior[15], como a polêmica entrevista de Chico sobre o Fim da Canção[16] se vincula a certa idéia de país e se faz presente na sua produção mais recente. Na entrevista, Chico destaca a progressiva perda de importância e popularidade da canção, muitas vezes sobrepujada por fenômenos como o Rap, e levanta a hipótese de um eventual ocaso da sua forma, que ficaria restrita ao século XX assim como outros modos de expressão musical acabaram limitados à suas respectivas épocas. Barros e Silva identifica nessa percepção “a idéia de que desapareceu do nosso campo de visão a perspectiva de sermos ainda um país decente.” [17]. O fim da canção também seria o fim de um determinado modelo de país, no qual a canção popular ocupava lugar de grande destaque [18].
Barros e Silva exagera ao atribuir tal profunda descrença a Chico. Se a postura de constante crítica à realidade que o cerca lhe pode ser atribuída, daí não decorre, ao menos não necessariamente, qualquer tipo de pessimismo ou desconsolo ante o futuro do país. Sua própria participação política, como o recente apoio à Dilma Roussef no segundo turno da eleição presidencial de 2010, demonstra que, ao menos em momentos cruciais, ele ainda identifica caminhos qualitativamente diversos para o futuro do país. Discrição não importa niilismo ou abstenção quanto aos rumos do mundo. Chico se expressa- como artista que nem sempre recorre ao óbvio ou ao explícito para pensar o mundo que o cerca, mas apela, para utilizar reflexão de Wisnik sobre outro tema, à “técnica de contraponto, à maneira musical, em que as linhas da ficção e da história se tocam sub-repticiamente, produzindo efeitos de correlação sugestiva, não necessariamente analógicas nem necessariamente equiparáveis em importância” [19]. A política não se expressa nas canções apenas pela temática das letras, mas pode externar-se, como o próprio Barros e Silva bem demonstra nas composições do autor, através de simples conjunções entre enunciados e melodias, que isolados nada sugerem [20].
O último Chico expõe mais as incertezas do presente que a desesperança ante o futuro. Antes precavido que pessimista, ele fica à espreita de um mundo com caminhos cada vez mais imprecisos. O horizonte turvo não implica, todavia, desastres vindouros, mas apenas sugere poucas certezas sobre o amanha. O autor das melodias mais acidentadas, letras pouco explícitas e harmonias menos recorrentes talvez esteja simplesmente a expressar, através dos caminhos sinuosos da música, tal percepção.
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Jorge Chaloub
[1] Idéia presente em WISNIK, José Miguel, e WISNIK, Guilherme, O artista e o tempo, In: Songbook Chico Buarque volume 2., pág. 18. O artigo também foi publicado em WISNIK, José Miguel, Sem receita – ensaios e canções
[2] WISNIK, José Miguel e WISNIK, Guilherme, destacam a centralidade que o tema do tempo assume em sua obra.
[3] BARROS E SILVA, Fernando, Chico Buarque, pág. 100, Idem, “O fim da canção( em torno do último Chico, em http://ims.uol.com.br/o_fim_da_can%C3%A7%C3%A3o_(em_torno_do_ultimo_chico)/D222, , e Nestrovski, Arthur, e WISNIK, José Miguel, O Fim da Canção ( aula-show)
[4] Texto disponível em www.chicobuarque.com.br
[5] DVD Chico Buarque, volume 4. – Anos Dourados. Direção Roberto Oliveira
[6] O próprio Chico afirma e entrevista ao Pasquim (1970): “ As músicas que eu fiz primeiro tinham muita coisa do Noel. Eu ouvi muito Noel, é verdade, não vou negar. Mas aprendi a tocar violão com a Bossa Nova.” – Disponível em www.chicobuarque.com.br
[7] Tal idéia segue os comentários de Arthur Nestrovski no artigo “Um pouco de todos”, 22/07/2011, Estado de São Paulo. O texto está disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,um-pouco-de-todos,748644,0.htm
[8] Idéia presente em WISNIK, José Miguel, e WISNIK, Guilherme, O artista e o tempo, In: Songbook Chico Buarque volume 2., pág. 18. O artigo também foi publicado em WISNIK, José Miguel, Sem receita – ensaios e canções
[9] TATIT, Luiz, O século da canção.
[10] BARROS E SILVA, Fernando, O fim da canção ( em torno do último Chico), In: Serrote, vol. 3.
[11] Ibidem.
[12] Ainda há quem sugira outras aproximações, como Caetano Veloso, que defende que após Chico ter influenciado Guinga, agora é a vez de uma reversão, na qual Guinga influencia Chico. Tal idéia está na coluna “Coisas Importantes”, O Globo, 19/06/2011.
[13] Entrevista do cantor à Folha de São Paulo, concedida em 18/06/1994. A entrevista está presente em www.chicobuarque.com.br . O trecho citado foi sugerido pela BARROS E SILVA, Fernando, Chico Buarque, pág. 99.
[14] Fato destacado por Chico em diversas ocasiões, como no seu depoimento no documentário “Palavra Encantada.”, dirigido por Helena Solberg.
[15] BARROS E SILVA, Fernando, O fim da canção ( em torno do último Chico), In: Serrote, vol. 3.
[16] Entrevista concedida à Folha de São Paulo, em 07/2004 e disponível em www.chicobuarque.com.br
[17] BARROS E SILVA, Fernando, O fim da canção ( em torno do último Chico), In: Serrote, vol. 3., In: http://ims.uol.com.br/o_fim_da_can%C3%A7%C3%A3o_(em_torno_do_ultimo_chico)/D222,
[18] Nestrovski, Arthur, e WISNIK, José Miguel, O Fim da Canção ( aula-show)
[19] WISNIK, José Miguel, Machado Maxixe, In: Sem Receita: ensaios e canções, pág. 68.
[20] As considerações de Wisnik em seu ensaio “Algumas questões sobre arte e política no Brasil”, também publicado no livro Sem Receita: ensaios e canções, são exemplares nesse sentido. Em especial as páginas nas quais ele remete à semelhança entre as melodias “Com que roupa”, de Noel Rosa, e do Hino Nacional, brincando obre eventuais conseqüências políticas de uma troca entre as letras e melodias das músicas.