Dois temas em “O Retrato de Dorian Gray”: moldura e aventura – Número 35 – 10/2011 – [128-136]

D

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– O prazer é a única coisa digna de uma teoria (…)

Lorde Henry (“O Retrato de Dorian Gray”)

Qual feitiço fez com que o retrato de Dorian Gray ganhasse vida (ou sequestrasse a vida de seu modelo)? Menos que tentar uma resposta plausível para essa pergunta, procurarei estabelecer uma leitura do livro que lide com esse enigma que não se esclarece e que anima a narrativa estabelecida por Oscar Wilde n’O Retrato de Dorian Gray. As aproximações a seguir poderão, neste sentido, servir a um estudo que busque comparar questões relativas à noção de “crise” no contexto da Alemanha e da Inglaterra da virada do século XIX para o XX, bem como as respostas relativas à reflexão estética e literária a esse contexto de abalo do espírito e da reflexão intelectual. A chave reflexiva a partir da qual operarei diz respeito a um exercício de definição de contrastes e analogias entre uma obra literária e alguns ensaios cujo conteúdo é estético, mas as consequências são sociológicas, filosóficas ou psicológicas, se desejarmos.

A “crise” a que me refiro pode ser caracterizada a partir de uma digressão que leve em conta as metamorfoses do “espírito do capitalismo” presentes em Weber (2004). Tal crise é tributária de uma certa des-espiritualização do capitalismo a partir de sua constituição como um cosmos que encapsula as experiências particulares do sujeito em “uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver” (Weber, 2004: 48). Ainda que não seja viável reduzir experiências muito díspares e marcadas por nuances específicas por essa categoria de “crise” e por essa caracterização weberiana, ela fornece aspectos plausíveis que podem ser mobilizados para um diálogo que coloque em perspectiva as reflexões de caráter estético que procurarei estabelecer neste ensaio. Uma das consequências dessa automatização do capitalismo como cosmos é um esvaziamento ético das experiências da vida nas grandes cidades européias da virada do século XIX para o XX. As reflexões estéticas de que trataremos se colocam, em alguma medida, como respostas a esse esvaziamento do espírito.

O trajeto argumentativo que preparei diz respeito a algumas considerações sobre temas presentes no livro de Oscar Wilde e suas articulações com duas categorias com as quais Georg Simmel lida: moldura (1998) e aventura (1988).

i.

Três momentos da relação tensa – e mesmo angustiante – entre o retrato e seu modelo costuram o modo pelo qual o livro se desenvolve. A expressão perfeita da obra de arte marca o primeiro momento, na medida em que o quadro captura e traduz com perfeição a beleza de Dorian Gray (ela mesma um desafio ao artista, como veremos mais adiante). O retrato mais belo e perfeito que o modelo, no segundo momento, o captura e tiraniza porque se torna mais que um espelho da vida, passa a ser uma expressão mais perfeita da vida do que a vida mesma, esta última degradada e posta em perspectiva por uma realidade esvaziada de sentido. O modelo enclausura o retrato, no terceiro momento, em revide à prisão de seu espírito. O quarto em que Dorian Gray enclausura seu retrato é uma tentativa conter, através da moldura, seus potenciais perniciosos. A moldura, condição para a autonomia da obra de arte como domínio estético (Simmel, 1998), se torna sua negação, sua ruína; o refúgio para a vida do espírito presente na obra de arte é também sua danação, seu apodrecimento. Wilde parece querer apontar os limites da experiência estética como forma de preenchimento da experiência de mundo de seus contemporâneos. O revide não opera, portanto, como antídoto, ou contra-feitiço, ao mal causado pelo quadro: vida e obra se degradam mutuamente. Resta uma obra de arte vetada da apreciação estética e a vida de Dorian Gray esvaziada de significado, ou sem conteúdo moral.

O pecado do quadro foi ultrapassar a moldura e colonizar o mundo externo. A vida de Dorian Gray converte-se em uma aventura sem ventura, ou sem virtude. Uma espécie de anti-aventura, se pensamos em termos simmelianos, não por sua oposição ao fluxo ordinário da vida, mas pela exacerbação de suas características.

É útil examinar de modo mais detido o modo pelo qual Wilde desenvolve seu enredo.

O primeiro capítulo apresenta dois personagens fundamentais, ou melhor, três: o autor do retrato, Basil Hallward, lorde Henry Wotton, amigo do pintor e uma espécie de cronista de seu tempo que marca o livro com suas observações cáusticas sobre seus contemporâneos e seus estilos de vida, e, por último, o próprio retrato. Na cena que abre o livro, Lorde Henry visita o amigo em seu ateliê e vê o quadro que estava sendo pintado. Lorde Henry diz que é seu melhor trabalho e recomenda que ele exponha o quadro. No que Basil recusa: “Sei que vai rir de mim, mas não posso expô-lo, pois coloquei nele muito de mim mesmo” (Wilde. 2010: 15). Depois de algumas réplicas e tréplicas a essa recusa, Basil assevera: “Harry, todo retrato pintado com sentimento é o retrato do artista, e não do modelo. (…) E o motivo por que não exibirei o quadro é ter exposto, nele, o segredo da minha própria alma” (Ibid.: 18).

Essa afirmativa merece algumas considerações de partida. Ela define, em primeiro lugar, uma disposição do fazer artístico que implica uma relação íntima, carnal, entre a obra e a vida do artista. No lugar de retratar e exibir o objeto, ela revela o próprio artista. No prefácio que escreve para o livro, Wilde define que “Revelar a arte, esconder o artista é a meta da arte” (Ibid.: 9). O retrato, ao contrário, expõe muito do artista. Essa, talvez, seja a fonte de seu feitiço maligno. “Revelar a arte” consiste no exercício que caracteriza a versão de Wilde para a arte pela arte. É curioso notar, entretanto, que o retrato expõe o artista justamente por alcançar uma exigência definida por Wilde ao fazer artístico: “A vida moral do homem faz parte de tema do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito” (Ibid.: 9). O quadro pintado por Basil é descrito como uma obra que capturou perfeitamente a beleza de Dorian Gray. O retrato como em uma volta completa dessa expressão da perfeição termina não por operar a revelação da arte, mas do artista. Wilde diz ainda, em seu prefácio: “É o espectador, e não a vida, que a arte, na verdade, espelha” (Ibid.: 10). Nesse jogo de espelhos, Basil termina exposto. Ele trai sua própria arte. Por que isso ocorre?Arriscarei uma interpretação.

Ela se fundamenta na observação da cena em que Basil descreve o momento em que conheceu Dorian Gray: “Quando nossos olhos se encontraram, senti-me empalidecer. Fui tomado por uma sensação curiosa, de terror.” (Wilde, 2010: 19). Essa descrição, além da óbvia expressão da paixão que Dorian desperta em Basil, parece ser provocada pela beleza sobrenatural do modelo. Uma beleza que o torna um objeto impossível no mundo que é a expressão da degradação e da decadência, num mundo que só pode ser restaurado e salvo pelo sublime. Se a tarefa da arte é, pelo seu esforço de perfeição, operar como uma fonte de significado e de beleza para o mundo, ou seja, estabelecer uma certa atividade restauradora, purificadora e estabilizadora do mundo, esse objeto perfeito e impossível contraria o artista, o desafia, e coloca sua arte em xeque. Lorde Henry expressa essa tarefa curativa que tem a experiência estética como mediador: “(…) eis um dos grandes segredos da vida… curar a alma por intermédio dos sentidos, e os sentidos por intermédio da alma” (Ibid.: 37). Basil afirma ao conhecer Dorian que: “Sabia que deparara, frente a frente, com alguém cuja personalidade, por si só, tão fascinante, me absorveria, caso eu o permitisse, toda a natureza, toda a alma, minha própria arte, e eu não desejava influências externas em minha vida”. (Ibid.: 19). Esse objeto perfeito que anula a tarefa da arte do uso perfeito de um meio imperfeito, a beleza de Dorian Gray, impõe ao artista uma “crise terrível” (Ibid.: 19). Esse parece ser o motivo que o leva a pintar o quadro: a tentativa de evitar essa crise. O resultado é que a expressão perfeita de uma coisa perfeita não produz um antídoto para essa crise, mas um feitiço: a exposição do artista e uma certa desordem nos termos de estabilização das relações entre obra e vida, entre expressão e objeto. A arte pela arte, em busca de uma forma perfeita, perde seu significado diante de um objeto perfeito. Wilde estabelece aqui as fontes dos efeitos malignos do retrato. O que chamo aqui de feitiço. O modo pelo qual esse feitiço se expressa consiste no fato de que esse retrato subverte os limites impostos pela moldura, não estabelece um domínio próprio para a experiência estética (Simmel, 1998). O retrato influencia a vida, ou mesmo a coloniza: ele evita que Dorian envelheça. A beleza que ele deveria cristalizar, por seu artifício da criação artística perfeita, termina, pelo feitiço, sendo imortalizada na vida e não obra. O retrato envelhece, mas Dorian não.

Para complementar essa interpretação e encaminhar melhor o argumento, avanço para o segundo capítulo do livro, mais especificamente para a cena em que Lorde Henry conhece Dorian Gray. O aristocrata sarcástico se impressiona igualmente com a beleza de Dorian e dá um nome para tal beleza: juventude: “(…) você possui uma juventude maravilhosa, e a juventude é a única coisa que vale a pena possuir” (Ibid.: 38). No diálogo que trava com Dorian a esse respeito, Lorde Henry (ou seria o próprio Wilde?) expõe as linhas gerais de um modo de vida que marca seu tempo e que tem como aspecto fundamental a experiência, ou melhor, a experiência estética: “O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não o invisível…” (Ibid.: 38). Essa forma de experimentar o mundo tem a fruição e o prazer como elemento central e pode ser verificada quando avançamos no raciocínio de Lorde Henry: “Um novo hedonismo, eis o que deseja nosso século, e quem sabe você será seu símbolo visível” (Ibid.: 38). Essa fruição hedonista de novas sensações tem que estar associada à juventude, por isso ela é o outro nome da beleza. Lorde Henry prossegue: “Juventude! Juventude! Não existe nada no mundo, nada!, senão a juventude!” (Ibid.: 39). Uma vez que essa ética da fruição associa juventude e experiência, é possível dizer que está fortemente vinculada a uma noção específica de aventura. Assim como descrita por Simmel (1988) a aventura consiste numa forma de experiência que se destaca do fluxo normal da vida, sem representar o cancelamento desse fluxo. A aventura do “Retrato”, por sua vez, possui consequências distintas. Em Simmel aventura e vida ordinária se contrapõem, mas não se anulam, no “Retrato” há uma colonização de um domínio pelo outro. Em seu ensaio sobre a aventura, Simmel expõe uma via de estetização da vida que não se expressa por uma fruição desestabilizadora, mas por uma forma de experiência que dá (e recebe) significado ao (do) fluxo ordinário da vida. A aventura tanto em Simmel quanto no “Retrato”, porém, representa uma forma de experiência que busca ultrapassar o esvaziamento de significado da vida no final do século XIX. No caso do retrato, essa busca possui traços de “um impulso aquisitivo” característico da auri sacra famis descrita por Weber (2004: 49). O resultado perverso desse impulso aquisitivo da fruição juvenil é um novo esvaziamento de sentido, quase um cancelamento da vida.

Depois de sua conversa com Lorde Henry, Dorian Gray se desespera com seu retrato: nele ficaria imortalizada a juventude e o modelo envelheceria. Por expor o horizonte do envelhecimento o retrato representava um cancelamento da aventura juvenil, seu aborto. Dorian lamenta: “Como é triste! Eu vou ficar velho, horrível, pavoroso. E este quadro permanecerá jovem, para sempre.” E clama: “Ah, se fosse o contrário! Se fosse eu a permanecer jovem para sempre, se fosse o quadro a envelhecer! Eu daria… eu daria tudo por isso!” (Wilde, 2010: 43). Como na lenda do Dr. Fausto, o desejo de Dorian seria atendido, realizados os jogos de espelho que descrevi acima: “É isso mesmo, não há nada neste mundo que eu não daria em troca! Daria até mesmo minh’alma!” (Ibid.: 43). O retrato havia rompido os limites da moldura tanto no que diz respeito ao seu criador quanto a seu objeto, como diz Dorian: “Ela é parte de mim, eu sinto que é.” (Ibid.: 45).

Nesses dois primeiros capítulos Wilde compõe os traços fundamentais de seu livro: a ruptura dos limites entre vida e obra que leva a uma aventura sem ventura. Sem entrar nos pormenores do enredo, é proveitoso acompanhar de modo panorâmico os passos narrativos que levam ao próximo ponto que considero estratégico na trama para armar o presente argumento. Esse momento é aquele em que Dorian decide enclausurar o quadro em um cômodo abandonado de sua casa. O que força essa medida, e que ocupa as próximas cem páginas do livro, é o desfecho do romance que Dorian vive com uma atriz chamada Sibyl Vane. A jovem cedera aos encantos de Dorian Gray e se apaixonara. Gray chega a noivar com a moça, mas rompe com ela de modo brusco. O rompimento faz com que Sibyl Vane, em profundo desgosto, se suicide. O prelúdio às transformações malignas que o quadro operará na vida de Dorian Gray consiste na crise moral que o peso da morte de Sibyl Vane provoca em sua consciência. Após deixar as culpas de lado e se isentar da morte de sua ex-noiva, o modelo observa as primeiras mudanças de fisionomia em seu retrato. O rosto do retrato fora tomado por um semblante maligno que começa a se distanciar da aparência angelical que Dorian Gray possuía. Mas era tarde para que ele se arrependesse. Já havia liberado sua alma de quaisquer amarras ou constrangimentos. Restava apenas afastar o quadro dos olhares de terceiros para que não tivessem consciência do feitiço que se operava através dele. Dorian decide enclausurar, portanto, o quadro em um quarto de sua casa. Antes de levá-lo à sua nova moldura, o quarto trancado a chave, Dorian descobre a pintura e percebe de modo mais claro qual a metamorfose que ali se manifestava.

O capítulo XI marca a mudança de status de Dorian Gray com o isolamento do quadro e a liberação de sua personalidade de quaisquer amarras morais. Há uma descrição de sua vida aventureira ao lançar mão de modo frenético das benesses da fruição de uma juventude eterna. Dorian Gray se entrega ao domínio da experiência, vivendo de modo intenso aquilo que Lorde Henry identificara como a graça e a glória da juventude: a possibilidade de experimentar. O rosto sempre jovem e de semblante puro que o quadro conferia a Dorian Gray como que anulavam, ao menos no âmbito da aparência (aquilo que para Lorde Henry realmente importava), os desgastes de uma vida sem constrangimentos.

Movendo-se no mundo visível, sem profundidade e regulação, a aventura de Dorian desempenha uma busca pelos prazeres e pelas experiências. Dedica-se ao conhecimento de religiões e credos de modo volúvel e incompatível com a própria experiência religiosa. Estuda os perfumes e os segredos de sua fabricação. Coleciona saberes sobre as mais variadas formas de música e instrumentos musicais. Entrega-se ao estudo das jóias. Coleciona bordados e tapeçarias. Acumula modelos, dos mais variados, de vestes eclesiásticas. Enfim, exerce todas as formas de colecionismo. O que fazer com uma vida eternamente jovem, afinal, senão dedicar-se à realização plena das possibilidades de experiência? Sem constrangimentos ou coerções, à margem da vida na comunidade, liberado de quaisquer amarras, não há critérios nem mecanismos para a filtragem das experiências. A potência aquisitiva não possui nenhum denominador, é elevada ao infinito. Em certa medida, essa liberação aquisitiva leva a um automatismo similar ao do capitalismo sem espírito descrito por Weber (2004).

ii.

Moldura e aventura constituem as chaves que movem o argumento que apresento nesse curto ensaio para uma leitura d’O Retrato de Dorian Gray. Em seu trabalho sobre a moldura, Simmel (1998) define que a arte constitui um todo fechado em si mesmo, movido por seus próprios motivos, sem depender de nada exterior. A moldura exclui a obra de arte de seu ambiente e, ao mesmo tempo, produz a distância necessária para que o expectador possa efetuar seu consumo estético. A moldura conduz, ainda, as atenções do processo de apreciação estética para o centro da obra. Ela está, portanto, de acordo com a força centrífuga que fecha a obra de arte sobre si mesma e torna a experiência estética sui generis em relação aos demais domínios da vida.

Por essa característica, ele argumenta que são dadas as maiores molduras aos menores quadros. O retrato de Dorian Gray, uma vez que representa uma espécie de colonização da vida pela obra de arte, demanda uma inversão dessa lógica: a obra tem que ser vetada do consumo estético de qualquer expectador e seus potenciais maléficos têm que ser contidos por um reforço da moldura. O quarto da clausura torna-se a própria moldura. É curioso notar que Dorian Gray encarrega um emoldurador de levar o quadro ao quarto no qual seria enclausurado. Mesmo que esse tipo de transporte fosse típico desse tipo de profissional, naquela época, (e não tenho elementos para dizer se isso é verdadeiro), vale notar que o encarceramento do quadro desempenha um esforço de imposição de moldura à obra de arte. O quarto opera como uma espécie de moldura-antídoto que não chega a ser uma anti-moldura, considerando os termos simmelianos, porque está em jogo um trabalho de isolamento da obra de arte e de separação do mundo externo. Essa contenção, essa imposição de limite, garante, no entanto, que Dorian Gray usufrua dos efeitos dessa experiência estética transmutada em feitiço. O quarto-moldura funciona de modo distinto da moldura descrita por Simmel: ele busca isolar o quadro do expectador e não do ambiente.

Simmel coloca, ainda nesse ensaio, uma observação interessante sobre as relações entre a vida e a obra de arte. A seu ver, alguns móveis modernos pareceriam obras de arte. Esses móveis, por isso, produziriam certo constrangimento ao indivíduo por seu status de arte suprimir seu papel de coisa subordinada. Há, portanto, uma relação de forças entre o domínio da vida e da obra de arte. A moldura operaria como uma regulagem dessas tensões. Dorian Gray parece querer reduzir o quadro ao lugar de coisa subordinada ao encarcerá-lo naquele quarto cheio de móveis e objetos familiares, ainda que não pudesse (e não quisesse) se libertar dos efeitos que o retrato produzia em sua vida, daquele envenenamento. A memória latente naqueles objetos teria um potencial neutralizador, ao menos no nível moral, dos efeitos extraordinários daquele retrato.

Simmel (1988) descreve a aventura como a possibilidade de uma experiência que se descola do fluxo normal da vida. A vida de Dorian Gray, depois do feitiço operado por seu retrato, consiste em um afastamento radical em relação à ordem ordinária da vida. Simmel identifica a aventura com a juventude. Para ele, a juventude seria uma “forma do experimentar” (1988: 33). A juventude teria um acento no “processo vital, seu ritmo e antinomias” (Ibid. 34). Para a velhice o importante são os conteúdos e experimentar consiste em mero acidente, uma forma acidental. A velhice, portanto, seria objetiva. Ela consolida e objetiva aspectos vividos de forma particular na experiência. Essas noções de objetividade e fluxo normal da vida dialogam com a discussão sobre estilo em uma obra de arte. O estilo é uma objetivação de experiências particulares que se consolidam em modos compartilhados.

A relação entre aventura e fluxo normal da vida se aproxima das relações que ele descreve em outro ensaio quando trata das articulações entre cultura subjetiva e cultura objetiva. (Simmel, 1971). Um desarranjo nas condições que regulam essas tensões representa, para Simmel, algo que esvazia de sentido a vida moderna. Esse desarranjo está manifesto na espécie de aventura vivida por Dorian Gray que chamei de aventura sem ventura.

Dorian cancela o fator que articula a aventura com a vida ordinária: a passagem do tempo. A passagem do tempo produz o balanço entre a aventura e a rotina. A aventura possui significado porque está ancorada na rotina, ainda que estabeleça com ela uma relação de tensão e oposição. Ao ser aberto o horizonte de uma juventude que não se degrada, o fio que interliga esses dois domínios se rompe e a aventura passa a ser um processo de aquisição de experiências ad infinitum.

O resultado desse processo de liberação da aventura de sua ancoragem na vida rotineira estabelece um esvaziamento da vida moral do sujeito. Aquela tensão entre os dois domínios que produzia os constrangimentos e as coerções que criam o espaço a ser preenchido por escalas de valores compartilhados. Resulta uma vida à parte não somente da vida rotineira, mas da própria sociabilidade. Por isso a maldade figura como aspecto motor dessa experiência aventureira.

iii.

O efeito perverso desse processo de desarranjo das relações entre sujeito e objeto, entre obra e vida, é dramatizado pelas metamorfoses do quadro. Tais metamorfoses se aproximam daquelas das “tonalidades da alma” tratadas por Lukács (1974). Os acontecimentos terríveis que encaminham os desenvolvimentos do enredo também são expressão da perversão que esse pecado estético.

Ao falar da arte pela arte e do espírito burguês, Lukács (1974) trata de uma possibilidade estética de conter a crise de esvaziamento de sentido da vida moderna. Também nesse caso, os balanços entre sujeito e objeto seriam uma alternativa a essa crise. Lukács identifica que a vida burguesa (a vida no burgo, marcada por um pertencimento à comunidade, por uma relação íntima com o torrão natal) significa a “dominação da ordem sobre a tonalidade da alma” (1974: 99). Ao falar da obra de Storm ele apresenta uma possibilidade estética que se vincula a uma resignação e a um ambiente ausente de distúrbios. A resposta à “crise”, bem como identifica Walter Benjamin (2004) em um ensaio sobre Beaudelaire, está muito relacionada com as alternativas à experiência do choque. A possibilidade estética apresentada por Lukács na leitura que faz de Storm representa um balanço das possibilidades de filtragem ou amortecimento da experiência do choque.

O objetivo da arte pela arte representada por Storm consiste em estabelecer um artesanato que se vincule a uma consciência do trabalho feito com propriedade, ou seja, que mobilize todas as forças possíveis para criar algo perfeito. Essa experiência estética vem vinculada com uma vida pacata e muito ligada ao compartilhamento de valores no seio da comunidade.

A arte pela arte presente n’O Retrato de Dorian Gray é de um tipo absolutamente distinto daquele descrito por Lukács. O “Retrato” apresenta uma experiência estética que produz a danação, o fechamento de horizontes da experiência moderna. Ele dramatiza as fragilidades da experiência estética para estabilizar e lidar com o mundo da crise, do capitalismo da crosta de ferro. O rompimento da moldura, presente em Beaudelaire (Benjamin, 1996), e que faria parte, mais tarde, da resposta dos movimentos de vanguarda à crise, no início do século XX, é exposto e ironizado por Wilde com um amargor que dão o tom do livro, permeado por uma falsa leveza, uma leveza enganadora de seu protagonista com olhos de anjo.

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André Rodrigues

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. (2004), Charles Baudelaire. Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo, Brasiliense.

LUKÁCS, Georg. (1974), L’Ame et les Formes. Paris, Gallimard.

SIMMEL, Georg. (1971), On Individuality and Social Forms. Chicago, The University of Chicago Press.

_____. (1988), Sobre la Aventura. Barcelona, Península.

_____. (1998), “A Moldura. Um Ensaio Estético”. In SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília: UnB. p. 121-128.

WEBER, Max. (2004), A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras.

WILDE, Oscar. (2010), O Retrato de Dorian Gray. São Paulo, Abril.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.