Na terça-feira, 6 de setembro, eu não havia assistido ao noticiário e nem lido os jornais. Lá pelas tantas da tarde, uma repórter de uma grande emissora de televisão me telefonou querendo marcar uma entrevista sobre os confrontos no complexo do Alemão e o descrédito das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) diante da população. Eu, sem saber do que ela estava falando e estranhando a correlação que o tema da conversa propunha, decidi recusar a entrevista (até porque havia dado uma entrevista para a mesma emissora semanas atrás e considerei tanto os jornalistas quanto o tratamento dado ao material que coletaram se não desrespeitoso, no mínimo, inconveniente).
Lendo e escutando sobre esses acontecimentos (a saber: a ocorrência de um confronto armado na madrugada do dia 6 de setembro no complexo do Alemão, que seria um ataque de traficantes contra as forças do exército lá instaladas), no dia seguinte, tive a impressão de que algumas ciladas se colocavam no modo pelo qual a imprensa tratava do tema. Esta cilada se enuncia por uma retórica que pretende colocar o tráfico no centro da lógica da gestão de segurança pública no Rio de Janeiro. Explico melhor.
A tônica da cobertura jornalística (analisada de modo interessante no livro de Silvia Ramos e Anabela Paiva (Mídia e violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro, IUPERJ, 2007), as opiniões do senso comum e as iniciativas do poder público, nas últimas décadas, em torno das questões que atravessam o debate sobre os problemas de violência e segurança pública no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, especificamente, giraram em torno de uma resposta recorrente: a necessidade de um recrudescimento dos confrontos que visam combater o tráfico de drogas. Esse tipo de argumentação, tão familiar, vem sendo posta de lado, ou pelo menos posta em outra escala de prioridades, pelas UPPs. Em sua lógica de implantação e operação as UPPs levam a cabo uma modalidade de policiamento que tem como fundamento a retirada do controle armado de traficantes em determinadas favelas do Rio. No discurso oficial, esse fundamento tem precedência sobre o combate ao tráfico de drogas. Admite-se, portanto, que possa continuar havendo tráfico em áreas ocupadas, contanto que isso não represente o controle armado dos assuntos da vida pública nas favelas por parte dos traficantes.
Não priorizar o combate ao tráfico não é pouca coisa, tanto em termos dos efeitos imediatos quanto no que diz respeito a horizontes mais dilatados. Essa mudança de atitude, aparentemente sutil, interrompe um ciclo vicioso que alimentou de modo pernicioso a presença estatal, através das forças policiais, nas áreas de favela do Rio de Janeiro. A lógica (na verdade, uma lógica que, paradoxalmente, se fundamenta na irracionalidade) do combate, enraizada na cultura corporativa das polícias fluminenses, produziu uma escalada da violência que teve como pano de fundo processos de segregação social e a produção de feridas políticas e simbólicas que marcam o cotidiano carioca. O que move o confronto é a consideração sobre a necessidade de guerrear contra o tráfico de drogas. Em termos da vida comum nas favelas, a cultura do combate produzia um processo no qual as forças policiais se faziam perceber por incursões marcadas pela truculência e pelo uso arbitrário da força. Ainda que essas incursões se pautassem por justificativas de estratégia e planejamento da operação policial (resposta a denúncias, etc.), o sentido dessas ações, para as pessoas que vivem nas áreas em que elas ocorriam, permanecia opaco, logo, irracional e cruel. No que diz respeito às mazelas traduzíveis em dados, ou pelo menos mensuráveis em equivalências que muito pouco expressam dos dramas embutidos nesses números, a cultura do combate produziu uma disparada nos índices de letalidade da violência no estado do Rio de Janeiro, nos anos 1990 (em estudo sobre a letalidade policial, Ignácio Cano (Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ISER, 1997), mostra em detalhe a contribuição da violência policial para a composição desse cenário).
Nas linhas a seguir não pretendo mostrar que as UPPs representam uma mudança completa de cenário, mas elas colocam em cena alguns passos que não devem ser subestimados, ao menos na abertura de horizontes operacionais e retóricos que se vinculam à lógica da gestão de segurança pública.
Duas frentes argumentativas se impõem, portanto, para a refutação do combate como aspecto central do policiamento no Rio de Janeiro, uma de caráter normativo e outra de caráter fático.
Não é desejável, em primeiro lugar, num contexto de consolidação de uma agenda democrática para as instituições brasileiras, a perpetuação de posturas institucionais, no âmbito da atuação policial, pautadas pelo confronto. O combate – com suas metáforas bélicas e mecânicas (“pressão”, “asfixia”, etc.) – tem como modus operandi e fundamento a imprevisibilidade, a contingência, a irracionalidade e o voluntarismo. O combate prevê uma solução tópica aos danos produzidos pelo crime que ignora as mediações legais previstas no sistema de justiça criminal – ou ao menos cria atalhos que deflacionam o significado do direito como via de estabilização da ordem. Ainda que as justificativas operacionais das ações policiais busquem o contrário, mesmo na situação pautada pela lógica do confronto, está embutida no combate uma expectativa pelo potencial reparador da violência como resposta ao crime. Esta expectativa dialoga com os mecanismos da inversão (conversão do agredido em agressor – a sociedade contra os bandidos), da intercambialidade (a agressão justifica o revide e confunde papéis entre agredido e agressor) e da indiferenciação (definição de equivalências entre violências empregadas no revide que vincula agredido e agressor a um destino trágico comum), apresentados por Luiz Eduardo Soares em um ensaio em que levanta hipóteses que indicam horizontes compreensivos para as consequências da experiência da violência (“O inominável, nosso medo” in Soares, L.E. et alli. Violência e política no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ISER/Relume Dumará, 1996). A deflagração da violência, além disso, fere premissas da vida civil e de uma ordem polida que caracterizam as bases da vida política moderna no ocidente (ver Elias, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro, Zahar, 1993). É grave quando essa deflagração da violência ocorre em vista de contradições e tensões que reproduzem dinâmicas anômicas da vida na cidade. É mais grave ainda quando o estado é parte ativa dos processos de produção e reprodução dessa violência.
O horizonte fático é mais simples: a lógica do confronto não gerou resultados para a redução da violência (tanto em termos dos índices quanto no que diz respeito à sensação de segurança).
As notícias sobre os últimos episódios violentos no complexo do Alemão possuem duas armadilhas: (i) consideram a ofensiva de traficantes naquela favela um abalo à legitimidade das UPPs; (ii) estruturam esse argumento recolocando o combate ao tráfico no centro do debate; a pergunta que colocam é: será que as UPPs são eficientes no combate ao tráfico de drogas? A interpelação da jornalista que me telefonou para a entrevista é muito expressiva e reveladora dessa articulação.
Que armadilhas seriam essas? Aquela que se manifesta pelo segundo ponto que coloquei é óbvia: invocar o combate ao tráfico, questionar a necessidade de uma resposta estatal às ofensivas armadas dos traficantes, consiste em dar centralidade ao confronto, retomando, portanto, os gargalos descritos acima que se inscrevem nas dinâmicas que põem o combate ao tráfico em marcha.
A segunda é mais sutil e complexa. Por que representa um erro vincular a situação do complexo do Alemão (sua ocupação) ao rol de critérios para a avaliação da legitimidade das UPPs, em geral? Em primeiro lugar, a ocupação do Alemão não é uma UPP. Considero que tanto o governo quanto a imprensa erraram ao depositarem as fichas de credibilidade das UPPs na ocupação do complexo do Alemão. Em termos táticos, ocupar um grande pólo de operações do tráfico de drogas parece acertado, mas o rendimento retórico dado a essa estratégica possui riscos. Eu estava em campo, num trabalho de pesquisa, no Morro dos Macacos, no momento da ocupação do complexo do Alemão, no início deste ano, e pude ver como esse evento tinha elevado os níveis de credibilidade da UPP. Considerar a ocupação do complexo do Alemão como uma metonímia dos sucessos e insucessos das UPPs representa, entretanto, um equívoco. O complexo do Alemão, para falar em termos mais objetivos, é (ou, ao menos, deveria ser tratado como) um caso à parte. Ainda que a criação de uma UPP esteja nos horizontes daquela ocupação, a situação corrente não compartilha dos mesmos princípios norteadores dessas unidades de polícia. A presença do exército (que considero um equívoco de ordem tática, inclusive, dadas as prerrogativas institucionais de distinguem polícias e forças armadas), por exemplo, representa uma das distinções em relação às UPPs. Trata-se de uma intervenção tática que requer a presença ostensiva e permanente do estado em suas representações armadas. E para por aí. Aquela ocupação, além disso, diz mais sobre as afetações às dinâmicas da operação do negócio do tráfico do que sobre a mitigação do controle armado de áreas da cidade por parte de grupos criminosos. Obviamente, em termos empíricos esses dois aspectos estão vinculados, mas o que pretendo aqui é estabelecer uma separação retórica dessa articulação entre violência no Rio de Janeiro e combate ao tráfico de drogas. O combate ao tráfico, a meu ver, não deve ser agenda prioritária das UPPs. Essa é uma questão basilar para a consideração dos sucessos desse programa de policiamento. A ocorrência de confrontos armados no complexo do Alemão com a demanda por um enfoque pautado no enfrentamento ao tráfico de drogas, completa esse equívoco retórico que traz à tona riscos políticos importantes.
Um dos riscos decorrentes desse modo retórico consiste em vincular as considerações sobre a avaliação de uma política pública ao episódico. As respostas de caráter imediato às questões da vida pública – especificamente, àquelas que se articulam com temas afetos à segurança pública – retomam posições despóticas, tal como avalia Luiz Eduardo Soares em ensaio intitulado Os quatro nomes da violência: um estudo sobre éticas populares e cultura política (in Violência e Política no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ISER/Relume Dumará, 1996). Elas vinculam a violência a visões naturalistas cujas soluções apontam para a intervenção tópica do estado, pautada pela irracionalidade e pelo voluntarismo. Num cenário no qual a questão premente consiste justamente em inserir as UPPs em uma lógica de regulação, controle externo e normatização, vinculá-las ao episódio é, no mínimo, pernicioso, tanto mais quando essa vinculação é movida por argumentos do combate ao tráfico de drogas. As disposições despóticas de nossa cultura política identificadas por Luiz Eduardo Soares, nos anos 1990, ao lidarmos com questões relativas à violência, parecem estar de pé. O episódio violento parece capturar as possibilidades de reflexão sobre a violência, afastando as considerações que invoquem as necessidades de mediação do império da lei e a implantação de horizontes racionais e planejados de intervenção.
Acredito que pensar sobre a política – mesmo quando pregamos, em termos normativos, a adoção de horizontes de planejamento e racionalidade – consiste em estabelecer uma reflexão que lide com o risco. Sempre que penso sobre as UPPs, por isso, coloco no horizonte o maior dos riscos, que logo se pronunciou nas incursões de campo que realizei tendo essas unidades de policiamento como interesse de pesquisa: a possibilidade da saída das UPPs das áreas hoje ocupadas. Isso representaria a abertura de lacunas para o retorno violento dos traficantes, com o cumprimento de promessas de retaliação já feitas e difundidas aos moradores que vivem em favelas ocupadas por UPPs. Outra consequência seria a frustração de horizontes de promessa e perdão – categorias a que Hanna Arendt (A condição humana. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2004) dá um valor fundamentalmente político – que permeiam a construção da legitimidade das UPPs como alternativas aos traumas sofridos pela ação policial nas favelas do Rio de Janeiro e a uma memória latente da truculência. Tal frustração tornaria ainda mais diminutas as chances de soluções aos problemas da violência no Rio de Janeiro a partir de posições não despóticas. Isso é motivo suficiente para que, a despeito de todos os poréns, seja preocupante a degradação dessa iniciativa, articulada a clamores pelo enfoque no combate ao tráfico de drogas. O ambiente de crítica deveria primar, portanto, pelo aperfeiçoamento das UPPs e não por sua degradação.
Há muito o quê se criticar e debater em relação às UPPs, mas é muito arriscado pensar nos aspectos de sua legitimidade tendo como pano de fundo o episódico e as expectativas de que elas sejam uma panacéia. Devemos cuidar para que as considerações sobre os futuros desdobramentos das UPPs não representem retrocessos.
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André Rodrigues