Por uma possibilidade trágica da amizade – Número 177 – 06/2021 [29-32]

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“O amor é uma paixão agradável e o ressentimento, desagradável: e, por isso, não desejamos tanto que nossos amigos aceitem nossa amizade mas que partilhem de nossos ressentimentos.” (Teoria dos Sentimentos Morais. Smith)

  1. Em seu “Teoria sobre os sentimentos morais” a Simpatia funciona como a mola propulsora do argumento Smithiano. Para além da polissemia do conceito – Simpatia -, delineia-se um significado muito específico, que, recusando a noção de um sentimento originado de determinada forma de sociabilidade humana, toma-a como caraterística própria da natureza dos homens. Ora, concentremo-nos por um instante em abstrair de todas as possibilidades de desdobramentos desse argumento para ressaltar um aspecto de singular interesse, a saber, o conceito de amizade.
  2. No excerto aqui selecionado da “Teoria”, consideramos apresentar elementos suficientes do tipo de amizade Smithiana, qual seja, uma relação que encontra suas bases no ressentimento mútuo. Nesse sentido, uma forma de relação – a amizade – de importância vital para a sociabilidade humana, ocorre antes por ressentimento do que por um sentimento de alegria e/ou vitalidade compartilhada. Para seguir uma intuição Nietzscheana e Laboetiana, propomo-nos investigar outra possibilidade para tal relação, a saber, uma amizade que se estabeleça pelo ímpeto da criação, ou, fora de amarras morais. Tomando de empréstimo termos do filósofo alemão, o que denominaremos como amizade trágica ou amizade extra-moral. Para tal, escolhemos uma peça ficcional, a série Hannibal, e a relação que se estabelece entre seus dois personagens principais, Hannibal Lecter e Will Graham.
  3. Hannibal tornou-se conhecido através das telas de cinema, como um psiquiatra canibal, encarnando em si o cume da maldade humana. Nesse sentido, e, que de certa forma permanece na série, apresenta-se um personagem que parece impossibilitado de estabelecer qualquer vínculo de sociabilidade que não se funde em bases da crueldade. Onde há tamanha maldade, portanto, não poderia existir amizade (no sentido majoritariamente utilizado). Ora, observemos então os índices do relacionamento que se desenvolve entre os dois personagens citados. Realçam-se aspectos nietzscheanos no personagem Hannibal, que, para além de todas as obviedades, é preciso que se diga, não há qualquer tipo de apologia ao canibalismo nos textos do filósofo. Se quer perceber uma experimentação estética, que recusa a moral ressentida, ou para melhor dizer, que se mobiliza ativamente em formas de conjuração da moral do escravo. 
  4. De um momento preciso, a primeira conversa entre os dois, aparece no horizonte a possibilidade de uma amizade. Hannibal, personagem diagnosticado como psicopata, tem a possibilidade de qualquer vínculo de empatia ou simpatia negada, mas, sobretudo, essa impossibilidade parte de uma postura ativa da própria persona. Nessa primeira conversa, o interesse de Hannibal desperta quando Will diz sobre a atitude de uma jornalista sensacionalista “Mau gosto”, ao que Hannibal retruca “Você tem problema com gosto?” Ora, parece-nos que é neste exato instante que surge a centelha de uma amizade por vir. O gosto, nesse sentido, não encontra suas bases na moral, portanto, muito menos no ideal de belo por ele estabelecido. Antes de tudo ele serve para denunciar a décadence, o mau gosto e mal cheiro do homem da moral. Tomemos então esse tipo de gosto, como marcador de vitalidade, extra-moral.
  5. Hannibal em conversa com sua psiquiatra diz sobre as razões da impossibilidade de formar vínculo com o outro, reside no fato de que para tornar-se amigo, é preciso desnudar-se, mostrar sua verdadeira face, ou seja, para isso é necessário que alguém mereça acessar o mais obscuro de seu ser. Assim, para confirmar sua amizade com Will, ele submete-o a um sem número de testes, que são, em última instância, para provar seu valor, a sua força. Nessas experiências, existe a chance de Will não sobreviver. Isso não quer dizer que Hannibal deseja sua morte, pelo contrário, ele quer fazer Will experimentar uma transmutação, para que assim, ele seja capaz de apresentar-lhe sua perspectiva própria, sua visão de mundo e da existência. 
  6. Enquanto na amizade moral (simpática) o vínculo se dá pelo ressentimento, no tipo que aqui denominamos trágica, a possibilidade da amizade acontece pela experimentação da vitalidade. Isso implica perceber toda uma nova experiência da relação, como, por exemplo, na amizade La Boétie e Montaigne. Se é amigo enquanto se cria, enquanto experimenta-se, não torna-se amigo para compartilhar tristezas, ressentimentos, mas para fazer fluir o pensamento e a vida.
  7. Nietzsche diz em seu canto:

“[…]Ó saudade da juventude que não compreendeu a si própria!
Aqueles por quem eu ansiava,
Aqueles que eu julgava transformados tal como eu,
O fato de terem envelhecidos afastou-os:
Só quem se transforma continua meu amigo.

  1. Quanto se impõe à amizade que precisa continuamente se transmutar. Torna-se outro quando constantemente leva-se a experiência ao limite, assim também-o é a amizade. Se a vida é um combate entre forças – ativas e reativas -, é necessário mobilizar-se ativamente para se transformar, fugir por dentro, denunciando o decaimento do homem com suas relações que se dão no território do ressentimento. Hannibal, como canibal, devora o outro, mas não no sentido de um antropófago, ele não quer deglutir as forças do inimigo para se fortalecer. Ele devora o decaído, o homem escravo, o animal pequeno, que contamina o mundo com sua fraqueza. Exige, assim, do seu amigo (Will), uma prova de força, um índice de transmutação para coabitar em seu mundo, sua perspectiva própria.
  2. No quarto episódio da série, Hannibal como psicólogo trata de uma de suas pacientes (Abigail), que tem medo de desenvolver traumas psicológicos por ter perdido seu pai, que era um serial killer. Demonstrando o que parece ser um aspecto Nietzscheano responde “trauma psicológico é sinal de fraqueza”. Em “Genealogia da Moral”, Nietzsche apresenta-nos a categoria do Esquecimento, um mecanismo ativo do homem nobre, que impede a formação do ressentimento e da má consciência. O homem pequeno remói continuamente os maus encontros, enche o seu corpo de bílis, até que se forme o ressentimento, característica de uma vida rebaixada. Se a vida é caos, bons e maus encontros, tornar-se traumático, ressentido é sinal de fraqueza.
  3. No decorrer da primeira temporada, Will, que é funcionário do FBI, descobre que o Serial killer que ele persegue o “Estripador de Chesapeake” é o Hannibal. A essa altura, Hannibal já o considera seu amigo, ou para melhor dizer, Will o acessa exatamente porque ele deixa, ele demonstra sua face oculta, seu modo de ver as coisas. Nisso, a relação fica obscura, Will entrega-o para o FBI, mas Hannibal consegue escapar, não antes de feri-lo fisicamente, deixando-o à beira da morte. Quando curado de seus ferimentos, Will volta a procurar Hannibal. Mas, dessa vez, não para persegui-lo, ele foi transmutado, não queremos com isso dizer que se tornou um canibal, um assassino, mas ele partilha de uma certa postura diante da vida. 
  4. Extraindo os elementos ficcionais, os assassinatos que Hannibal comete, demonstra-se aquilo que Nietzsche disse em “Nascimento da tragédia”, que a vida só se justifica como fenômeno estético. Isso quer dizer entender a vida como um todo artístico, tomar o homem como artista, experimentando intensamente sua principal característica, a invenção. Hannibal é, sobretudo, um artista, que experimenta os limites da existência, para com isso extirpar a moral do homem inferior, que aprisiona-o, limita suas possibilidades, o faz fraco. 
  5. Com isso exige do seu amigo, não uma simpatia para com suas dores, mas um compartilhamento de vitalidade, ou seja, uma amizade de forças, em que a própria formação do ressentimento é impossibilitada. Consequência prática da amizade Smithiana, é a acomodação do vínculo, e um fortalecimento da identidade, porque relaciona-se com aquele que nutre os mesmos pesares, ressentimentos, e a amizade perpetua-se no que se permanece o mesmo, o eterno animal que carrega fardos, torna a vida pesada. Por outro lado, na amizade trágica, o amigo é sempre aquele que se transmuta, que se libertou da moral. O que se compartilha são as forças em intensidade, a experimentação do corpo que compõe sua arte, a amizade enquanto puro devir.

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Yargo Marino

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.