Da Liberdade da Imprensa – Número 168 – 10/2018 – [72-74]

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1. Nada é mais capaz de surpreender os estrangeiros do que a extrema liberdade de que desfrutamos neste país para comunicar ao público o que nos aprouver e para censurar abertamente qualquer medida introduzida pelo rei ou por seus ministros. Se a administração decide pela guerra, afirma-se que, de propósito ou por ignorância, incompreende os interesses da nação, e que a paz, na presente situação dos negócios, é infinitamente preferível. Se a inclinação dos ministros se volta para a paz, nossos escritores políticos nada inspiram além de guerra e devastação, e representam a conduta pacífica do governo como ruim e pusilânime. Como tal liberdade não é indulgenciada em nenhum outro governo, quer republicano, quer monárquico (em HOLANDA e VENEZA mais do que em França ou ESPANHA), isto pode mui naturalmente dar ocasião à pergunta: Por que acontece de apenas a GRÃ-BRETANHA desfrutar desse privilégio peculiar?

2. A razão por que as leis nos indulgenciam tal liberdade parece derivar de nossa forma mista de governo, que não é inteiramente monárquica, nem inteiramente republicana. Se eu não estiver enganado, há de reputar-se como observação verdadeira em política a de que os dois extremos num governo – a liberdade e a escravidão – comumente se aproximam muito um do outro; e que, se partires dos extremos e misturares um pouco de monarquia com liberdade, o governo há de tornar-se sempre mais livre; e, por outro lado, se misturares um pouco de liberdade com monarquia, o jugo há de tornar-se sempre mais pungente e intolerável. Num governo como o da FRANÇA, que é absoluto, e onde a lei, os costumes e a religião concorrem em fazer o povo plenamente satisfeito com sua própria condição, o monarca não pode entreter nenhum ciúme em seus súditos, e portanto é capaz de indulgenciar-lhes grandes liberdades tanto de expressão quanto de ação. Num governo completamente republicano, como o da HOLANDA, onde não há nenhum magistrado eminente ao ponto de fazer ciúme ao Estado, então não há nenhum perigo em confiar aos magistrados grandes poderes discricionários; e, embora muitas vantagens resultem de tais poderes na preservação da paz e da ordem, eles colocam muitas restrições às ações humanas, e fazem todo cidadão privado prestar um grande respeito ao governo. Assim, parece evidente que os dois extremos da monarquia e da república aproximam-se um do outro nalgumas circunstâncias substanciais. No primeiro, o magistrado não tem ciúme nenhum do povo; no segundo, o povo não tem nenhum do magistrado: a falta de ciúmes confere uma confiança mútua em ambos os casos, e produz uma espécie de liberdade em monarquias e de poder arbitrário em repúblicas.

2. A razão por que as leis nos indulgenciam tal liberdade parece derivar de nossa forma mista de governo, que não é inteiramente monárquica, nem inteiramente republicana. Se eu não estiver enganado, há de reputar-se como observação verdadeira em política a de que os dois extremos num governo – a liberdade e a escravidão – comumente se aproximam muito um do outro; e que, se partires dos extremos e misturares um pouco de monarquia com liberdade, o governo há de tornar-se sempre mais livre; e, por outro lado, se misturares um pouco de liberdade com monarquia, o jugo há de tornar-se sempre mais pungente e intolerável. Num governo como o da FRANÇA, que é absoluto, e onde a lei, os costumes e a religião concorrem em fazer o povo plenamente satisfeito com sua própria condição, o monarca não pode entreter nenhum ciúme em seus súditos, e portanto é capaz de indulgenciar-lhes grandes liberdades tanto de expressão quanto de ação. Num governo completamente republicano, como o da HOLANDA, onde não há nenhum magistrado eminente ao ponto de fazer ciúme ao Estado, então não há nenhum perigo em confiar aos magistrados grandes poderes discricionários; e, embora muitas vantagens resultem de tais poderes na preservação da paz e da ordem, eles colocam muitas restrições às ações humanas, e fazem todo cidadão privado prestar um grande respeito ao governo. Assim, parece evidente que os dois extremos da monarquia e da república aproximam-se um do outro nalgumas circunstâncias substanciais. No primeiro, o magistrado não tem ciúme nenhum do povo; no segundo, o povo não tem nenhum do magistrado: a falta de ciúmes confere uma confiança mútua em ambos os casos, e produz uma espécie de liberdade em monarquias e de poder arbitrário em repúblicas.

3. Para justificar a outra parte da observação precedente, de que em todo governo os meios-termos distam ao máximo uns dos outros, e que as misturas de monarquia e liberdade tornam o jugo ou mais leve ou mais pungente, tenho de notar um apontamento de TÁCITO acerca dos ROMANOS sob os imperadores: não podiam suportar nem a escravidão total, nem a liberdade total: Nec totam servitutem, nec totam libertatem pati possunt[1]. Este apontamento um célebre poeta traduziu e aplicou aos INGLESES em sua vívida descrição da política e do governo da rainha Isabel:

E fit aimer son joug a l'anglais indompté,
Qui ne peut ni servir, ni vivre en liberté,

Henriade, liv. I [2]

4. De acordo com tais apontamentos, devemos considerar o governo ROMANO sob os imperadores uma mistura de despotismo e liberdade na qual o despotismo prevaleceu, e o governo INGLÊS uma mistura do mesmo tipo onde a liberdade predomina. As consequências são tão conformes à observação precedente, e tais como se podem esperar dessas formas mistas de governo que engendram uma mútua vigilância e ciúme. Os imperadores ROMANOS, muitos deles, foram os mais temíveis tiranos que jamais desgraçaram a natureza humana, e é evidente que sua crueldade era sobretudo excitada por seu ciúme, bem como por observarem que todos os grandes homens de ROMA suportavam com impaciência o domínio duma família que, apenas um pouco antes, não era sob nenhum aspecto superior às deles próprios. Por outro lado, como a parte republicana do governo prevalece na INGLATERRA (não obstante a grande mistura com a monarquia), fica obrigada, para a própria preservação, a manter um ciúme vigilante sobre os magistrados, remover todos os poderes discricionários e assegurar a vida e a fortuna de todos por leis gerais e inflexíveis. Nenhuma ação deve ser tida por crime senão aquela que a lei claramente determinou sê-lo. Nenhum crime deve ser imputado a alguém senão com uma prova legal diante de seus juízes – e mesmo esses juízes devem ser igualmente súditos, que estão obrigados, por seu próprio interesse, a ter um olho vigilante sobre os abusos e violência dos ministros. Destas causas procede que haja tanta liberdade e até, talvez, licenciosidade na GRÃ-BRETANHA, quanto houve antigamente escravidão e tirania em ROMA.

5. Estes princípios dão conta da grande liberdade de imprensa nestes reinos, além daquela que é indulgenciada em qualquer outro governo. Depreende-se que o poder arbitrário tomar-nos-ia, não fôssemos cuidadosos o bastante para prevenir o seu progresso, nem houvesse um método fácil de espalhar o alarme de um confim do reino para o outro. O espírito do povo deve ser frequentemente levantado para vergar a ambição da corte, e o pavor de levantar esse espírito deve ser usado para prevenir essa ambição. Nada é tão eficaz para este propósito quanto a liberdade de imprensa, pela qual toda a instrução, espírito e gênio da nação podem empregar-se em prol da liberdade, e todos se animarem em sua defesa. Então, enquanto a parte republicana do nosso governo puder manter-se contra a monárquica, será naturalmente cuidadosa em deixar a imprensa livre, como sendo de importância para a sua própria preservação.

6. Deve-se porém admitir que a liberdade irrestrita de imprensa, conquanto seja difícil, talvez até impossível propor um remédio adequado para ela, é um dos males que acompanham aquelas formas de governo.

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David Hume

[1] A frase anterior é a tradução desta, que se encontra em Historiae, 1.16.

[2] A tradução literal dos versos é “E fez amar o seu jugo o inglês indômito/ Que não pode servir nem viver em liberdade.” A Henriadeé um poema épico em dez cantos feito por Voltaire em homenagem a Henrique IV de França (1553-1610), o rei que assinou o Édito de Nantes, que assegurava direitos a protestantes, e foi assassinado por um fanático católico.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.