Os Ajudantes: Sara Ramo – Número 163 – 05/2018 – [52-58]

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Eram seus olhos. Com eles, não via muito longe. E, no entanto, dizia que seus olhos eram os melhores que havia, o fanfarrão.

Robert Walser

[…] o vento soprava tão forte que apagou seus olhos. Ele quis acendê-los de novo, mas não tinha fósforos. Aí, começou a chorar […], porque não tinha mais como encontrar o caminho de casa.  

Robert Walser

§ Este texto, essa crítica, repete-se. Ela se faz um tanto de algumas fugas com relação ao que pode ser incômodo e por isso habita nele. Isso não pode ser compreendido tão somente de forma negativa. Pois tal disposição de ouvir nos permitiu enxergar o que seria mais relevante para um conjunto de dúvidas, bem como, refazer o caminho que expõe certa injustificável inocência de convicções implícitas em certas práticas. Escutar nunca nos deixa cair. Daí que o trânsito do desamparo cruze o da política nem sempre olhando para os dois lados antes de atravessar.

§ São dois vídeos, uma série de fotos, e outra de esculturas. O primeiro traz uma pequena ilusão sobre proporções, fazendo com que uma sala branca em formato de cubo, dentro de outra, seja tomada por recortes coloridos e depois material escuro. Este cubo branco serve de referência a lugares que possuem esse formato, como uma galeria de arte, por exemplo, mas também como um artifício para compreender os espaços. A Direção é um Centro Vazio. Tudo que há é Entornonomeia e indica a direção e o porquê do movimento. O segundo Os Ajudantes é menos abstrato. Nele vemos uma floresta habitada por criaturas que se tornam perceptíveis sob luz de clareiras. São seres bastante singulares, cuja figura lembra a forma humana. A sensação para quem vê é a de estar cercado por esses monstros. As fotografias e as esculturas dialogam mais diretamente com este segundo vídeo. As esculturas são posteriores às máscaras e nada mais são do que os moldes refeitos. A idéia é mostrar que mesmo desvendando as cascas das quais supostamente saíram os seres que nos rodeiam, isso não exauriria a perversão que representam. Essa é a força que o trabalho detém. Aparência, a série fotográfica, revela versões de materiais no escuro. Em parte são fruto da pesquisa que Sara vem fazendo sobre a adaptação dos olhos a espaços pouco iluminados, repletos de objetos. Esta prática foi iniciada na exposição Penumbrana Fundação Eva Klabin (Rio de Janeiro) e desenvolvida em Desvelo y Traza no Matadero (Madrid) e Centre d’Art La Panera (Lleida). Tal como as esculturas podem ser vistos como fragmentos de perversão. O sentido geral da individual pode ser descrito como interrogação do relacionamento habitual com as presenças que nos rodeiam. Sobretudo aquelas das quais dependemos, mas não notamos. É como se a artista pudesse dizer que sempre estamos sob o cuidado de estranhos. Ela nos faz reconhecer que a circunstância que nos rodeia depende da sensibilidade ao mesmo tempo formal e social. No âmbito formal, como já foi dito, que os contornos entornam e no social que a virtude que podemos deter parte do julgamento daqueles seres que nos rodeiam, aqueles mesmos que a política faz com que desapareçam quando chega o dia, quando a luz é acesa, até mesmo com a luz acesa. Essa exposição aborda, pode-se dizer, a sociabilidade e a política, sem utilizar recursos explicitamente convencionados como detentores de tais propriedades. Ou mais ainda, as principais questões atinentes à política precisam ser abordadas incidentalmente desde seus pressupostos sociais.

§ Sara opera no âmbito da forma, ou das formas, e do personagem. Não só, também percorre a ligação de uma coisa na outra. No que concerne à forma, ela o faz no vídeo em que explana sobre os contornos do cubo, após tempestade negra e de cor, como passo inicial, sobre a direção assumida pelo traço. A força das formas segue para um centro, mas esse é vazio. Nas bordas, entorno. Se não cabe entorna. É emblemático que exista o esforço de se compor também com os personagens. Se os abordasse tão somente, seria o caso de dizer para onde estão indo. Tendo sido colocados vizinhos da forma, a intenção é mais nítida. Não vão a lugar nenhum, apenas se movimentam. Eles são criaturas familiares, sem história, se praticam algum drama residual, que seja, mas próximos ao cubo, resistem a tal caminho. São peças que tem acompanhado a artista há algum tempo, em muitos sentidos, agora ambulantes, além de habitarem penumbra pela qual nossos olhos têm sido formados. São seres assistidos possivelmente imóveis no escuro. A intuição é que transitam agora entre clareiras. Há toque de desamparo, de estar perdido no meio do mundo sob o cuidado de estranhos, não em alguma forma de idílio perdido, mas com toda a carga de perturbação intrínseca a um lugar desconhecido. O desamparo é momento atualizável da vida em que experimentamos as dores da perversão polimorfa em sua doce liberdade. Se é comum a prática da repressão das terríveis sensações de variabilidade, aquelas de quando vemos formas no escuro, aqui nos é proposto imergir no estado obscuro em que os desejos transitam pelo corpo sem hierarquia. No trabalho não há disponibilidade com as narrativas indiretas feitas de datas relevantes e fantasias, tais como as reiteradas recepções a eventos históricos. A ponte entre o abstrato e os personagens, resistentes à dramaturgia, é feita por conjugação de fotografias e de artefatos escultóricos retirados da penumbra. São inspeções da adaptação do olho às incidências várias de luz sobre tais formas familiares que não se dão à alegoria. Sim, escritas da perversão polimorfa em sua morada, o escuro. Se iluminadas as formas, a revelação será a de seus negativos. Uma forma habitante ao lado árido da imaginação não pode ser decifrada senão como verso. Para isso, temos esculturas de corte particular, irregular como são as imagens da vida secreta das sensações polimorfas. Algumas cortadas como à espada de samurai e a cabeça dividida em duas. Outras se tornando internamente como uma fruta meticulosamente cortada em pedaços menores à faca, embora, externamente, lembrem um constructo. As sensações polimorfas são as que, por darem uma explicação adequada, são urgentemente silenciadas.

§ N’Os Ajudantes, Sara mostra uma acertada e curiosa relação entre desemparo e percepção. Tal como Benoît Mandelbrot nos dizia, os índios não eram capazes de ver a caravela se aproximando pela primeira vez, pois seus olhos não estariam habituados a ver o barco no horizonte, donde eles seriam um pouco cegos para esse objeto. Não seríamos naturalmente capazes de ver as criaturas que nos rodeiam. Seria preciso assistir o ir e voltar, para ter os olhos preparados pelo movimento. Veríamos essas formas no escuro depois que nos acostumássemos a elas, depois de percebidas com a ajuda da luz. Eis que mora o problema, com a luz acesa ou apagada não estamos diante da mesma coisa. Diante da luz apagada, temos uma criatura no escuro. Diante da luz, temos a parte possível de alguma coisa, que pode ser uma criatura, mas também pode não ser. No escuro, não temos a impressão de uma criatura, a partir da parte de alguma coisa, há realmente alguém lá que nos ajuda. Esse alguém some na luz, as coisas são feitas para que não possa existir nela.

§ Todos conhecemos o epíteto repetido pelo Mario Pedrosa sobre o fato da arte ser o exercício experimental da liberdade. Como boa sentença, ela podia e pode ser interpretada de muitas formas. Parece-me que Pedrosa queria dizer que a arte conseguia inventar potências novas para a liberdade, bem como, práticas novas propriamente ditas, em um ambiente contíguo à sociedade, como num laboratório, de modo que os bons experimentos de liberdade poderiam ser aproveitados e os maus descartados, como experiências que não deram certo. Ao mesmo tempo, a arte poderia mostrar à sociedade aquilo que ela poderia ser, positiva e negativamente, mas que ainda não é. O elemento virtuoso dessa forma de pensar do Pedrosa é a clara politicidade da prática artística, em todos os seus âmbitos, formal e referencial, uma vez que a liberdade é política, mesmo no sentido existencial, como todos bem sabemos. O elemento vicioso, meramente residual, é que a arte é compreendida como tendo algo de apartado, numa concepção de experimento algo cientificista, segundo a qual ele teria função de verdade superior à experiência. De tal forma, a liberdade do experimento da arte seria uma liberdade possível, não a liberdade mesma. A politicidade da arte seria possível, não atual. Haveria então algo de mentirinha no modo como os artistas fariam política. Mas por que isso? Talvez pensasse Pedrosa que a liberdade extrema dos artistas, que os faria experimentadores da liberdade, também traria a necessidade de que essa fosse filtrada. Ou seja, haveria algo de possivelmente relevante na política dos artistas, mas nem sempre.

§ Poderíamos, todavia, levar o tema do Pedrosa para outras paragens, a partir de objeções que ele provavelmente usaria para reformular o seu argumento. Ora, o experimentalismo da arte não se distingue ou se separa da experiência, elas são a todo momento indissociáveis. O emprego de duas palavras, mesmo assemelhadas, neste âmbito, nada mais é do que o estabelecimento de um álibi sem sentido. Isso quer dizer que a atividade da liberdade do artista, a todo momento, está no exercício do “risco todo” e da responsabilidade intrínseca às ações. A arte é a experiência experimental da liberdade de tal forma que não se distingue da liberdade atual. Na verdade, o artista, como qualquer um, disputa pela liberdade.

§ A experiência, como todos desconfiamos, é uma textura aberta e complexa. Nada fica de fora. A mais dissimulada e escondida das nossas ações, mesmo as inconscientes, estão nela. Seria estranho pensar que a política tem a mesma dimensão da experiência. Entretanto, também desconfiamos quando algo é dito não político. O que acontece? Parece que todas as experiências podem ser políticas, ainda que não sejam o tempo todo. Um mesmo ato pode ser político e não político ao mesmo tempo. Dessa forma, perguntas sobre “o que é a política” ou “como a política faz isso ou aquilo” são subsidiárias de uma outra, qual seja, “quando é política”. A ontologia da política é temporal. Por isso, Hegel de férias ou não, intuitivamente, não largarmos do guarda-chuva.

§ Então a arte pode ser política como as outras experiências ou até mais política do que elas. Na qualidade de temporais, eventos políticos podem ser diferenciados pela intensidade. Nessa direção é que faz sentido dizer que um acontecimento foi mais político do que outro. Então quando é política? A resposta apressada, parcialmente correta, diria que ela é quando se institui. Ora, tudo o que perdura na experiência é instituído. Não seria essa a forma de dizer o quandoum pouco alargada demais? A política estáquando a instituição é restritiva, ocasionadora de resultados constritivos em âmbito íntimo. O modo pelo qual ela o faz é pela dor. A política está quando a dor é instituída no tempo. A política está quando estamos diante da crueldade, na maior parte das vezes, sem que saibamos.

§ Dito assim, parece terrível, principalmente em função de que depositamos nas capacidades operativas da política as nossas agências de melhoramento do mundo. A oposição entre a crueldade e a virtude é aparente. Porque rapidamente admitiríamos que uma concepção de mundo dita melhor é conflitiva com outras que se consideram ainda melhores e o efeito circunstancial da virtude deriva da capacidade de se instituir, por vias populares, no melhor dos mundos, a restrição a todas as outras. Por melhor que seja um mundo, ou plural que consiga ser, está marcado no seu caderno de débitos todos os mundos desejados que não são.

§ Se a arte é uma experiência especialmente intensa da liberdade, se sua prática experimental afeta sobremaneira, e sem álibi, a vida social, a arte contemporânea, em especial, aprofunda esse processo. Dentre outras razões, por ser capaz de transfigurar objetos comuns em outras coisas, mormente em obras de arte. Todavia o mais importante para a política, em sua dinâmica de sociabilidade, não é propriamente o resultado da transfiguração, mas o processo. A dinâmica não precisa ser tão radical quanto a passagem da caixa de sabão em pó ou da lata de sopa. Na verdade é até bom que não seja, pois nesses exemplos extremos ficamos, não sem razão, hipnotizados com a novidade. O artista contemporâneo é capaz de operações conceituais de pictorialidade, segundo as quais vemos a natureza de imagem onde antes ignorávamos. Por certo, o mecanismo tem se sofisticado e tal operação pictórica é também usada com sutileza, inserindo pequenas fraturas em circunstâncias cuja pictorialidade nos passava ao largo. O que isso tem a ver com a liberdade política? Porque ela deriva da habilidade de ver fenômenos que prevalecem por não serem vistos.

§ A instituição política existe em processos de opacidade. Para que se estabilize é dependente, como outros fenômenos, de hábitos sociais, repetições, mas como há especificidade na experiência política, o que reitera no tempo é a restrição. Pode-se deduzir que ela se faz sólida, de tal forma que, em estados cristalizados, nem nos damos conta que está aí. Nisso a crueldade se aprofunda. A grande questão é que a instituição política pressupõe essa opacidade, sem a qual a imprevisibilidade ultrapassaria a previsão. Assim, cabe aos exercícios experimentais da liberdade reverterem, não sem risco, esta aparente invisibilidade. A arte contemporânea quando incide sobre a política, direta ou indiretamente, a partir de seus operadores, de permitir ser visto como imagem, faz a política passível de ser percebida. Se não ver estabiliza o mundo e aprofunda a crueldade, ver a diminui; por vezes, a ponto de suprimi-la. Trocando o âmbito da imagem, inserindo nela uma fratura, permite que seja vista enquanto tal, para além dos efeitos da opacidade e da repetição.

§ Muitas vezes tal operação pictórica é realizada de modo explícito, tematizando imagens de conflitos, violência, morte etc. Noutras recompõe, sob artifícios, sentimentos referenciados a acontecimentos históricos dignos de vergonha ou reconhecimento. Trata-se de vencer os obstáculos que impedem a devida canela de ser chutada. Por outro lado, não há qualquer razão para que precise ser explícita. Porque isso que começa como deslocamento de objetos entre estatutos de materialidade, e se aprofunda como fratura na imagem, pode ser apenas uma dissonância nas expectativas, como quando um corpo realiza uma manobra antianatômica, a depressão vitrifica uma situação, um acidente estetiza as vísceras etc., ou, como no trabalho da Sara, a reposição animada de questões de natureza formal. Dessa maneira, há duas formas, que obviamente não se excluem,da arte contemporânea instituir politicamente: ela pode realizar um objeto pictórico, de tal forma que seu sentido se aprofunde, que passe a habitar a esfera pública, na restrição a algo ruim, ou ela expõe dinâmica a partir da qual uma restrição se dá. A não exclusão é evidente, porque expor é instituir.

§ Os Ajudantes é uma exposição política predominantemente nesse segundo sentido. Sara, com ela, desloca dissonante, como lhe é habitual, e delicadamente alguns sentidos, de forma que uma dinâmica reste exposta. Trata-se de tornar explícita certa profundidade da relação com o outro, num primeiro momento, e depois adensar o fôlego na direção de uma completa fragmentação. O percurso se inicia no cubo e termina no despedaçamento do cenário e dos personagens.

§ Há uma forma de pensar fundada na contradição. Um diz uma coisa e outro diz outra, apontando as falhas do anterior e aponta o novo caminho, este é o jogo, artistas também se ocupam dele. Um diz uma coisa, não, não é nada disso, é aquilo, ou mesmo um pouco disso, também um pouco daquilo. Ora, todos o fazem. Onde está a contradição? Ela se dá na impossibilidade de perceber a artificialidade dessa dinâmica. Em tomá-la como verdadeira. Como via única necessária para alguma coisa. A arte contemporânea, como os céticos antes dela, age pela composição. Na contradição, os argumentos se implicam e se arrefecem no encontro do círculo vicioso. Na composição, o problema é outro. Trata-se, pois, de encontrar como os fenômenos se montam. Cubos, linhas e pontos povoam a imaginação por contradição e por composição. Nessa segunda, todavia, possuem sentido bastante particular. São encontrados por decomposição, redução etc. Se cubos, linhas e pontos são ditos abstratos, tal, na composição, deve-se apenas a um uso, porque são os elementos mesmos da concretude, da materialidade.

§ Os cubos de Sara, se percebidos como metáforas ou alegorias, perdem toda força cabível à família da composição. Nesse sentido é que são uma didática da resistência ao drama. Para não contar alguma coisa, ou fazê-lo em sua concretude, é o caminho se manter na composição. A forma é coisa suja também, ela larga pedaços, está cheia de terra. Há pessoas na forma, é-se feito dela. Nela se abre a porta, como Sara, com os dedos ainda sujos de tinta. Por essa razão se pode dizer que a forma é política, porque ela é feita da mesma mistura terrena grosseira que o mundo.

§ Há uma conhecida canção popular norte-americana, oriunda do contexto da dominação dos brancos sobre os negros, na qual se ouve a repetição que pode ser traduzida “por vezes me sinto como uma criança sem mãe”. Trata-se de uma melodia religiosa muito triste e remete inevitavelmente ao desamparo. A autoria é ignorada, conta com um sem número de versões. São dignas de nota a de Bessie Griffin, densamente relacionada ao ambiente gospel, ainda no contexto religioso é decidida e fantasmática a de Paul Robson e sua voz de baixo, há também a que Louis Armstrong conversa com interlocutor, entre as repetições, sobre o sentido do peso da vida, fogem um pouco ao universo religioso o sofisticado arranjo jazzístico da interpretação de Jimmy Scottt e a revigorante e agitada toada de Kathleen Emery. Essa última, apesar de não poder desvincular o cântico da escravidão, concede a ele algo do desamparo disseminado, talvez pelo toque burguês que acrescenta. Por que essa canção é relevante? Pela solução lírica à questão do desamparo advindo da dominação política. Ao mesmo tempo em que remete à ferida histórica, não é dependente dela. Usa-a como plano a partir do qual se fala, autorizando-se, para ser conferição de otimismo inevitável à precariedade da experiência. “Por vezes me sinto”, noutras não. O desamparo é o mais maduro dos sentimentos morais, quando tomado em sua instabilidade.

§ O desamparo é a máquina produtora de criaturas. Os lugares escuros que lhe servem de habitat lhes confere uma particular estrutura. As criaturas nos são familiares, posto circundarem a qualquer perspectiva. Porque tudo é entorno, a ninguém é vedada a possibilidade de ser criatura para alguém e ser desaparecido no acender das luzes. É intrínseco ao familiar conferir segurança, mas também ser negado ou esquecido, por ser tão comum. Como na música, as criaturas são entorno, circulam. As criaturas da Sara resistem ao drama para não serem despotencializadas, para não serem sugadas pelo melodrama. Apenas assim se pode ver a circulação da crueldade: nem mais pesada e nem mais leve, nem mais amarga e nem mais doce. Ser tornado criatura é ser marcado com uma diferença, ser docemente posto para sumir. Sem enredo, sem encenação. É isso que as populações fazem enquanto as vemos como criaturas, elas circulam até serem colocadas para nunca existir.

§ Então as caravelas se movimentavam num estado desaparecido, surgiram os descobridores aos índios como criaturas. Os selvagens, por outro lado, eram monstros fazedores de barulho. Os olhos antigos foram apagados para se tornarem outros novos. Errou quem apostou que haveria um fim do olho. Não havia fim. Restou o despedaçamento ao qual chamamos de mundo. Talvez fosse melhor assumirmos como dada a transitoriedade do olho, de modo a carregarmos vários nos bolsos. Além de encomendarmos sempre novos, para apanharmos, mesmo no susto, o que não vemos. Daí pouco desaparecerá em função da nossa cumplicidade. Meus olhos novos, adaptados a esse novo escuro, percebem nas fotografias da Sara a crepitação de algo que não irradia luz, o corpo de alguém que num momento deixa a própria forma como se estivesse sentado, depois deitado, como se habitasse alguém. Noutras não mora ninguém, daí nada pode ser deduzido, o tecido oferece uma casa aos meus olhos, como se eles tivessem chegado à terra de ninguém. Uma terra torcida, boa e torcida.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.