Transição presidencial ou transgressão institucional? A crise valorativa e o nexo entre elites políticas e empresariais brasileiras – Número 143 – 02/2017 – [15-22]

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A ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, em 2003, se deu em um contexto regional assinalado pela emergência de uma nova correlação de forças, marcada pela falência do formato anterior que se caracterizava pela aquiescência às teses neoliberais. Essa transição, portanto, diz respeito não apenas à ascensão de uma nova elite política, mas, sobretudo, à representação prioritária dos interesses de uma parcela da população, as classes populares, em detrimento de outra, as elites econômicas. Em outros termos, da prioridade da justiça social sobre a rentabilidade dos investimentos.

Nesse período, o posicionamento das lideranças regionais perante os projetos e intentos neoliberais se constituiu de formas distintas – a depender da conformação política de cada país. Foi possível, desse modo, evidenciar três projetos políticos na América do Sul, quais sejam: um modelo imperialista liberal, ainda confinado aos ideais neoliberalizantes dos Estados Unidos, como os casos de Álvaro Uribe na Colômbia e Ricardo Lagos no Chile; um projeto neodesenvolvimentista, confluindo demandas populares concomitante a forte atuação do Estado e de parcela das elites; e o projeto denominado “Socialismo do Século XXI”, tendo como caso mais emblemático a revolução bolivariana na Venezuela (BOCCA, 2013).

Não obstante, diferentemente de outros líderes da região, Luís Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência comprometido em não contrariar os interesses dos setores empresariais, financeiros e rentistas, conferindo aos seus representantes acesso preferencial aos processos de tomada de decisão realizados no governo. Este acesso, como vem sendo demonstrado pelos sucessivos escândalos de corrupção, ultrapassa os mecanismos institucionais que caracterizariam as variedades de capitalismo coordenado de origem alemã e japonesa (GUIMARÃES, 2006), aproximando-se do bom e velho patrimonialismo latino-americano.

Esse padrão de conciliação, que ilustra a falta de autonomia das elites políticas e do Estado, historicamente refém das investidas rentistas dos caciques locais, se manteve durante todos os governos petistas. Ainda assim, como realça André Singer (2015), Dilma Rousseff teria esboçado um esforço para romper com essa correlação de forças, apostando nos canais de coordenação junto ao setor produtivo não apenas como estratégia para promover o desenvolvimento econômico do país, mas, também, para deslocar as bases de apoio ao governo, diminuindo sua dependência perante os caudilhos tradicionais.

Nesse ínterim, foram implementadas um conjunto de políticas de fomento às indústrias nacionais, de modo a instituir um ensaio neodesenvolvimentista, visando a superação da pobreza e do subdesenvolvimento através do fortalecimento do setor produtivo, mediante ativa coordenação do Estado (SINGER, 2015, p. 45). No que concerne à sociedade civil organizada, mais especificamente às entidades de representação empresarial, pode-se notar uma considerável atuação dessas associações junto ao poder público no período abordado. Além da indústria, o agrobusiness também se encontrava inserido e representado nos processos de tomada de decisão e na correlação de forças que apoiava o governo.

Nesse tocante, destaca-se o papel da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), sendo esta protagonista na organização do setor industrial brasileiro, participando ativamente na coordenação da nova fase da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) (BOSCHI, 2012). A PDP é a continuidade da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), e foi implementada em maio de 2007, com vistas a ampliar o estímulo à inovação tecnológica, investimentos e exportações das indústrias brasileiras. Em maio de 2011, quando a CNI foi escolhida pelo governo para coordenar a PDP, seu presidente, Robson Andrade, declarou a necessidade de reajuste cambial e tributário, e realçou, também, as assimetrias das indústrias brasileiras.

Inúmeros foram os indícios de que era promissora a aliança entre as elites políticas e econômicas, pelo menos no tocante aos setores produtivos nacionais. Em abril de 2012, o presidente da entidade, Robson Andrade, apesar de exigir a diminuição da carga tributária brasileira, reconheceu os avanços instaurados por Dilma Rousseff, conclamando o empresariado nacional a apoiar a presidenta em sua cruzada contra as taxas de juros abusivas, tendo em vista possíveis retaliações por parte das elites financeiras, conforme realça o trecho de sua fala, na noite da entrega da Medalha da Inconfidência, em Ouro Preto:

É uma demonstração positiva ao desonerar setores da indústria, reduzir encargos trabalhistas, ampliar o crédito e estimular as exportações. Ainda não é o suficiente, mas devemos reconhecer o primeiro passo; sobretudo devemos apoiar a presidente em sua guerra aberta contra os juros elevados e os absurdos spreads cobrados pelo sistema financeiro.

Não obstante, como ficou demonstrado pelos eventos posteriores, essa aliança não era estável, assim como não são as fronteiras entre as elites produtivas e financeiras.

Em agosto de 2011, os efeitos da crise de 2008 começaram a solapar a economia mundial, ameaçando a continuidade deste projeto. A especulação de que países europeus – como a Itália e a França – não honrariam suas dívidas implicou em uma desestabilização nas principais bolsas de valores do mundo. A Dow Jones, em Nova York, caiu 4,31%, a maior recessão desde dezembro de 2008. Entretanto, apesar das instabilidades econômicas constatadas nos Estados Unidos, seus títulos proporcionavam baixos riscos, o que acarretou a fuga maciça de capitais para o país. Somado a isso, a diminuição do crescimento chinês abalou as exportações brasileiras de commodities, o que exigiu novas medidas econômicas do governo brasileiro a fim de estimular a economia e manter estáveis os índices de emprego.

Diante deste cenário, motivados por diversos fatores, dentre eles os alertas das agências financeiras internacionais acerca do “perigo” das políticas econômicas e das ameaças de rebaixamento nos índices de confiança, o empresariado começa a se afastar do governo (Singer, 2015, p. 47). As agências de rating exerceram papel elementar nesse quadro. Em setembro de 2015, a agência Standards & Poors retirou o selo de bom pagador do Brasil (operando outro rebaixamento em fevereiro do ano subsequente). Em dezembro de 2015 e fevereiro de 2016, a Fitch e a Moody’s, respectivamente, rebaixaram a credibilidade de investimentos no Brasil. Em maio de 2016, a Fitch voltou a rebaixar a nota do país[7]. Milagrosamente, após o impeachment as suspeitas sobre a solvência da economia brasileira foram substituídas por um súbito otimismo acerca da sua capacidade de recuperação, ainda que os fatores materiais responsáveis pela crise (a queda no preço das commodities e a desaceleração no crescimento chinês) não tenham sofrido qualquer alteração.

Neste contexto, é interessante acompanhar as trajetórias individuais de atores econômicos, uma vez que estas podem ser ilustrativas para a compreensão das transformações ocorridas na correlação de forças no cenário político brasileiro. É o caso novamente de Robson Andrade, que, outrora colaborador do governo, mudou de lado e passou a invocar o empresariado a apoiar sua derrubada, tendo, inclusive, remetido à Câmara dos Deputados uma carta contendo as palavras de ordem: “é hora de mudar” .

Em dezembro de 2015, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) divulgou os resultados de uma pesquisa que ouviu 1.113 indústrias paulistas, em novembro daquele ano, a respeito do assunto. De acordo com os dados apresentados, o impeachment era apoiado por 91% dos empresários. A partir de então, o órgão passou a apoiar intensamente, de diversas formas, as manifestações contrárias a presidente, organizadas, principalmente, pelo Movimento Brasil Livre.

Tendo em vista o aparato de parcela considerável da elite empresarial brasileira a implementação do impeachment, conforme supracitado, faz-se coerente analisar o funcionamento das instituições políticas nesse processo. Em 31 de agosto de 2016, o Senado Federal concluiu o processo de impeachment, destituindo a presidenta Dilma Rousseff. As contestações em relação à solidez, imparcialidade jurídica e política do trâmite reverberaram sobretudo na opinião pública internacional, como pudemos acompanhar pelos editoriais dos principais veículos de imprensa. No que diz respeito à mídia e às autoridades locais, todavia, cabe destacar um consciente esforço de inserir o processo em um horizonte de normalidade e legalidade, abafando as inúmeras manifestações de repúdio[10]. A expectativa dos apoiadores do processo é de que, ao fundamentá-lo no âmbito dos fatos (facticidade, mantendo a terminologia habermasiana), ele conquistasse seu lugar no plano dos valores (legitimidade).

O processo de impeachment foi manejado pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, réu em dois processos no Supremo Tribunal Federal e um na Operação Lava Jato, acusado de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, corrupção e falsidade ideológica para fins eleitorais. Cunha acolheu o pedido de impeachment de Dilma Rousseff no mesmo dia em que a bancada do PT, contrariando as indicações da base aliada, votou pela continuidade do processo de sua cassação, no Conselho de Ética da Casa.

A partir deste momento, abriu-se a porteira para o esfacelamento da coligação de forças que apoiava o governo, em particular por parte daqueles que já estavam sendo investigados pela operação Lava-Jato. Ao não proteger seu antigo aliado, eximindo-se de exercer uma influência mais contundente sobre os operadores das instituições de controle, o PT deixou de ser digno de confiança por parte daqueles que temiam o mesmo destino de Cunha. Talvez nisto o experimento brasileiro difira daqueles levados a cabo pelas demais lideranças progressistas da região, que em sua maioria aparelharam e garantiram controle sobre o Judiciário e sobre os demais órgãos da administração direta e indireta. Talvez isto explique por que apenas aqui a máquina pública tenha sido utilizada para derrubá-los.

No início de junho, o procurador geral da República, Rodrigo Janot, enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de prisão endereçado ao ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha; ao senador e ex-ministro do Planejamento de Temer, Romero Jucá; ao ex-presidente da República e do Senado, José Sarney; e ao atual presidente do Senado, Renan Calheiros; todos do PMDB e todos acusados de tentativa de obstruir as investigações da Lava Jato, todos até então membros da coligação de governo.

A denúncia de Janot fundamenta-se nas gravações feitas pelo ex-presidente da Transpetro Sergio Machado, que inclui áudios, como as declarações proferidas por Romero Jucá, que explicitam o ímpeto de “estancar a sangria” propalada pela Lava Jato, ou seja, de instituir o impeachment com vistas a barrar o desencadeamento das investigações pela operação. Em suma, fazer aquilo que o PT não conseguiu, ou não quis fazer.

Logo, não é mera coincidência que Renan Calheiros tenha tentado acelerar a tramitação de um projeto que dificulta as investigações da Lava Jato, e que o mesmo tenha refutado com veemência o pedido de Waldir Maranhão – atual presidente da Câmara dos Deputados – de não dar continuidade ao processo de impeachment de Dilma. No dia 31 de agosto de 2016, Calheiros, que até então mantinha sua posição em segredo, votou pelo definitivo afastamento de Dilma Rousseff.

Os 61 senadores que votaram a favor do impeachment conceberam que os atrasos no repasse do Tesouro Nacional ao Plano Safra e a instituição de três decretos suplementares sem o aval do Congresso configuraram crime de responsabilidade. O embasamento da acusação acerca dos atrasos ao Plano Safra foi fundamentado na representação efetuada por Júlio Marcelo de Oliveira – procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU). Cabe observar, entretanto, que o digníssimo servidor não é um exemplar weberiano de burocrata, tendo afirmado ter feito convocações às manifestações pela rejeição das contas de Dilma Rousseff. Embora isto não seja suficiente para atestar (no plano dos fatos) a parcialidade do conteúdo de seu parecer sobre as supostas irregularidades das contas públicas de 2015, ajuda a levantar suspeitas sobre sua plausibilidade (no plano dos valores).

No que concerne a atuação de Michel Temer, logo após o afastamento de Dilma Rousseff pela Câmara, o presidente interino instaurou uma série de medidas polêmicas, dentre as quais pode-se destacar: a ausência de mulheres e negros no corpo ministerial, a nomeação de ministros citados na Lava Jato, bem como as propostas de desindexação de fatores, como o reajuste salarial e o INSS. Mais recentemente, o governo elaborou uma proposta de emenda constitucional para estabelecer um teto para os gastos públicos por 20 anos, limitando os reajustes no orçamento do Estado às taxas da inflação do ano anterior.

Em junho, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, defendeu a aprovação no Senado do projeto que permite que as empresas terceirizem as atividades-fim. O ministro proferiu esse discurso em um almoço com empresários do Grupo de Líderes em São Paulo (LIDE), que aplaudiram a proposta. A organização possui 1700 empresas filiadas, que representa 52% do PIB privado brasileiro. A terceirização das atividades-fim não apenas precariza as condições de trabalho barateando o custo de produção, conforme relatam os procuradores-chefe da Procuradoria Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, Teresa Besteiro e Fábio Villela:

O artigo 9º da CLT diz que é nulo de pleno direito todos atos praticados com o objetivo de fraudar as normas de proteção ao trabalho. Na verdade, isso praticamente acaba com a figura do empregado dos moldes de CLT e também cria uma desigualdade entre as empresas, gera o chamado dumping social. Vamos supor que eu seja um empregador correto, que observa o piso da categoria, recolhe os encargos sociais, cumpre as normas ambientais de trabalho. E outro terceiriza a atividade-fim, fazendo o custo cair. Isso afeta a livre concorrência. Infelizmente, a terceirização irregular e ilícita vem sendo utilizada para baratear o custo da produção e aumentar a competitividade no mercado. […] As empresas vêm, precarizam a mão de obra, não cumprem as normas de saúde e segurança do trabalho e terceirizam de forma ilícita para baratear o custo da mão de obra para diminuir o preço do produto […].

É possível conceber as políticas monetária e fiscal como elementos centrais na diferenciação entre governos de esquerda e direita. A primeira se caracterizaria por estratégias mais expansivas voltadas à garantia do emprego e da justiça social. A direita, por sua vez, se definiria pela ênfase na rentabilidade do capital, implementando, para tanto, políticas fiscais e monetárias de cunho restritivo . Sendo assim, consolidação de governos de esquerda na América do Sul está, portanto, associada a um contexto internacional de elevação nos preços das matérias primas, enquanto elemento prioritário na pauta de exportações da maioria destes países. A abundância de divisas garantiu a estes governantes maior margem de manobra e maior tolerância por parte dos mercados em relação às políticas fiscais e monetárias de caráter expansivo.

De modo diverso, a redução da lucratividade do capital produtivo desencadeada, a partir da crise de 2008, implicou em uma escassez de moeda nos países da região, deixando-os mais vulneráveis à pressão dos setores ligados ao mercado financeiro[28]. Esse movimento propiciou um ambiente favorável para ascensão de elites políticas mais afinadas com o mercado, isto é, comprometidas com a prioridade da rentabilidade dos investimentos sobre a justiça social.

Nesta medida, a compreensão dessas variáveis sistêmicas nos auxilia a entender a crise brasileira atual, inserindo-a em um contexto econômico regional desfavorável aos governos de esquerda. Tais elementos também nos ajudam a compreender as policies swifts observadas ao longo da década de 80 e 90, quando, em um contexto de escassez de moeda (currency crisis), lideranças associadas ao imaginário da esquerda na América Latina implementaram uma agenda pró-mercado, contrariando suas trajetórias políticas, além das expectativas dos cidadãos que os elegeram.

No entanto, tais elementos não nos auxiliam a compreender a ruptura institucional observada no Brasil no contexto atual, uma vez que as mudanças ocorridas em outros países da região no presente e no passado ocorreram, de modo geral, dentro dos marcos da institucionalidade, respeitando as rotinas eleitorais dos respectivos países. A transição presidencial no Brasil dirigiu-se ao plano dos fatos, cumpriu as formalidades do devido processo legal. Ignorou, contudo, o plano dos valores. Não foi apresentada à sociedade, não houve debate, não houve consenso, ninguém propôs, ninguém discutiu, ninguém legitimou. É uma filho sem pai nem mãe, ninguém é responsável por ele.

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Mayra Goulart

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Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.