Manoel de Barros ou nas Mínimas Expressões está Toda Poesia – Número 142 – 01/2017 – [02-14]

M

Este Breviário em PDF

Os versos de “No meio do caminho”, poema de Carlos Drummond de Andrade que apareceu publicado primeiro numa edição da Revista de Antropofagia e dois anos depois, em 1930, foi incluído no volume Alguma poesia, inaugura – se não, renova – o tema da expressão mínima e vulgar como objeto original e propiciador do poético, efeito sempre condicionado a elementos de natureza sublime que outros poetas desde sempre tiveram ou designaram como ato epifânico, devaneio, sonho, resultado da inspiração, produto de um exercício tecnicamente elaborado. Evidentemente que a afirmativa sobre o poema do poeta mineiro não esquece os feitos de outros poetas. Dez anos antes, Manuel Bandeira já havia abalado a condição quase-sagrada da poesia com os também muito conhecidos versos de “Os sapos” – este é só um exemplo.

Esse fato, se por um lado se aproxima do ato do poeta pernambucano e de outros que antecedem a poesia de Carlos Drummond do Andrade, ganha, por outro lado, novas dimensões. Isso porque “No meio do caminho” é possivelmente o inaugurador de um novo interesse da poesia, que, ao invés de se beneficiar propositalmente de uma forma para escarnecer de uma ordem estabelecida, como faz Manuel Bandeira, trouxe o objeto não-poético – ou até não percebido enquanto tal – como elemento puro e simples do poema. Se houve algum interesse mais direto com o feito do mineiro em relação à poesia praticada então foi a de dizer que o projeto defendido pelos modernistas de 1922 estava em plena atuação sem carecer da exposição clara e por vezes artificial do tom da rebeldia e do ataque. Entre essa condição incendiária, o que melhor permanece – não comodamente como o gesto poderá parecer – é o efeito da dissimulação sobre o assunto do poema; o poeta é como quem solta um rojão para dispersar um aglomerado e depois é visto entre os dispersos como um simples alheado porque não demonstra o semblante da culpa mas o de quem nada fez. Qualquer associação com certo ditado popular que rediz o espírito do mineiro – o do come-quieto, o do come-pelas-beiradas, o do chega-calado – não é mera coincidência, afinal, a condição do poeta com esse poema é de um todo coerente com ela, desde a posição mais ou menos distanciada assumida com o grupo do então centro cultural do país ao trabalho de construção de uma poética naturalmente integrada na força, formal e estética, do que defendiam os modernistas de maneira engajada e, por isso, não raras vezes, beirando o artificialismo.

O leitor de Carlos Drummond de Andrade distante do contexto em que se publica os tais versos No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho não alcança essa compreensão porque tem deixado a condição de peça incomum pela de feito inovador para a poesia brasileira; isto é, o poema recebeu a mesma saraivada de reprovação crítica que as vaias e o esvaziamento do Teatro Municipal de São Paulo ante a leitura de “Os sapos” e só mais tarde se constituirá como forma assente entre outros poemas da literatura brasileira. Agora, a primeira reação pode ser um motivo factível à exploração da poesia nesta segunda ocasião. E, por conseguinte, sobre as criações contemporâneas. Para o momento, basta compreender como esse poema acolhe em seu interior uma trivialidade, repetida de forma diversa como é toda trivialidade (ou seja, o poeta conforma estruturalmente a provocação do poema); e como o poeta torna poético, por assim dizer, um elemento só aparentemente esvaziado desse sopro. A atitude engendrará outras correntezas na nossa poesia; entre elas a que sustém obras como a de Manoel de Barros.

Não é difícil de considerar que o projeto literário construído pelo poeta das coisas simples – cujo início data de depois de percorrer alguns países da América Latina, viver uma parte da sua vida nos Estados Unidos e se aproximar, na poesia, ofício que teve desde cedo como seu, do experimentado pelas vanguardas – tenha se ancorado nessa pequena qualidade da nossa tradição literária: tornar não a paisagem, o sentimento do mundo ou o pensamento sobre a existência, algumas das dominantes na poesia de seu tempo e na sua própria obra, mas os elementos, os seus componentes, grande parte insignificantes como a “pedra” do poema de Carlos Drummond de Andrade, em matéria poética. E de alta voltagem, se pensarmos que tais elementos, apesar de mínimos, compõem uma renovação das percepções sobre o mundo maior e a correlação entre o que se mostra e se oculta, procedimento criativo experimentado pela poesia de poetas como Augusto dos Anjos.

Esta qualidade de boa parte – ou a mais significativa – da poesia de Manoel de Barros e da nossa poesia não é algo inaugurado pela cena poética nacional tampouco pelo poeta. É, sim, fruto de uma transformação mais ampla e universal iniciada com as vanguardas, fonte de onde nossos poetas desde o modernismo, sempre beberam. É evidente que toda importante obra literária para ser como tal precisa assinalar determinadas rupturas com os modelos vigentes – mesmo num contexto tão marcado pela amplitude das formas e a diversidade das manifestações artísticas como é o alcançado por Manoel de Barros. A associação às vanguardas é por uma única causa: o lugar de relação da poesia moderna brasileira com elas na elaboração do que podemos chamar por vanguarda tropical, tal como arquitetou Oswald de Andrade e companhia pelo que ficou conhecido como antropofagia (a partir d’O manifesto Antropofágico e do Manifesto da poesia Pau-Brasil) e a força radical assumida pelos vanguardistas no trabalho de renovação das criações artísticas. Por mais perigosa que seja estabelecer a obra do poeta ora observado em relação com tais poéticas, essa não é uma atribuição vazia (aliás, é sequer uma atribuição, porque é notório o diálogo construído com esse espírito – sobretudo nos seus primeiros poemas). Ou não é esse aluno de certo traço quem aparece em títulos como esse, de Poemas concebidos sem pecado?

10.

Pela rua deserta atravessa um bêbado comprido
e oscilante
como bambu
assobiando…

Ao longo das calçadas algumas famílias
ainda conversam
velhas passam fumo nos dentes, mexericando…
Nhanhá está aborrecida com o neto que foi estudar
no Rio
e voltou de ateu
– Se é pra disaprender, não precisa mais estudar

Pasta um cavalo solto no fim escuro da rua
O rio calmo lá embaixo pisca luzes de lanchas
acordadas
Nhanhá choraminga:
– Tá perdido, diz que negro é igual com branco!

O que dizíamos antes do poema pulsa claramente, desde a incorporação pelo texto do linguajar popular, tal como entrega o termo que colocamos em itálico, na realização do embate entre tradição e modernidade, uma das características que recriará ao longo de toda sua obra poética (muito na única e grande reforma de sua voz lírica); seja no citado estranhamento linguístico aqui disposto, seja na manifestação do ambiente urbano tomado das cores e da atmosfera impassível de certa ruralidade, seja a relação dialética da visão de mundo produzida dos indivíduos dos dois ambientes distintos, seja ainda pelo tom livre, prosaico, irreverente, humorístico com o qual o eu lírico reveste – quase um narrador ou um olho que descreve ou compõe o fotograma de uma cena corriqueira – a força do poema mantém relações com os lugares da poesia modernista e, por conseguinte, com os tons das vanguardas.

Outra implicância nessa relação vive entre as fronteiras da compreensão de que não estamos lidando com criações espontâneas e nem com ineditismos porque sabemos que desde a formação da cultura tal como conhecemos – sobretudo esse ofício da palavra a partir de outros organismos poéticos, isto é, depois da consolidação de uma cultura letrada e bibliográfica – que todo trabalho literário se faz num contínuo diálogo, apropriação, recorte, ampliação, colagem, tomada, retomada, repetição e reinvenção daquilo uma vez já construído. Desde o declínio da experiência, tal como afirmam Walter Benjamin e Adorno sobre o romance contemporâneo, observação estendida aqui para a realização da poesia, o poema é construção a partir dos escombros do passado e do presente – que o digam T. S. Eliot ou Ezra Pound e seus exercícios poéticos, contumazes procedimentos de bricolagem com matérias e experiências alheias por uma consciência, diríamos, sem correr o risco de parecer anacronismo, antropofágica. Isso não significa dizer que a experiência tenha sido descartada da poesia contemporânea, mas em alguns casos ela tem se tornado mais sintética (no sentido de artificial); mesmo que a esta nunca tenha lhe interessado ser, como na prosa, um repositório (no sentido de representação) da realidade; foi sua tarefa servir de revelação, mesmo individual de um estado ou condição de quem fala e, consequentemente, apresentação desse invólucro que a todos circunda, ou câmara de espelhos, da qual não alcançamos romper.

É lógico que a poesia sempre terá preferido ser criação e não representação minimalista, mas, seu reino esteve habitado também por uma força cuja matéria havia de advir do sentimento mais comum, ou, como vigorou no discurso de Federico García Lorca: a poesia devia ser produzida pelo uso não-educado (essa é uma intervenção nossa) dos sentidos para captação de um mundo íntimo. Estávamos, até antes das vanguardas, em grande parte, ainda embalados por uma condição do fazer poético como registro de um tom subjetivo ou sobre a situação, limitados ao desarranjo do motivo cívico-moral e como fator de evasão, elucubração, devaneio. As determinantes – nascidas não com esse interesse, mas logo incorporadas como tais – da poética do fingimento de Fernando Pessoa tornada quase um conceito sobre o trabalho do poeta e a construção racional, conforme se lê temática e estruturalmente no trabalho de um João Cabral de Melo Neto, são fatores importantes na consolidação desse componente desabitado do espírito ou sopro da poesia e agora avivado pelo hálito do poeta. O poeta é capaz não apenas da criação do mundo mas da animação das coisas que o habitam. Isto é, a acusação da poesia enquanto forma sem relação com o componente histórico-social é só isso: uma acusação. Ou, para repetir os termos de Adorno na sua “Palestra sobre lírica e sociedade”: “Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade”.

Assim, uma parafernália de objetos, situações comezinhas, expressões linguísticas colhidas da fala antes ignorada pelos ouvidos do poeta, então encantado com o sibilar das musas, passam a significar sua voz e material para a poesia; e é nesse abrigo onde busca apoio o jovem poeta Manoel de Barros – devia ter consigo certo convívio com a obra dos nomes da poesia brasileira aqui citados, obviamente, enquanto sua alma se movia encantada pela força rebelde comum dos mais novos e talvez interessada em ser como foram alguns dos espíritos mais significativos de sempre. Ficará por responder sobre qual seria o lugar de sua obra se estes domínios tivessem lhe tomado todos os sentidos ou não tivessem passado pelo constante processo de reeducação porque passou, quando lemos sua persistência na consolidação e reafirmação do universo que escolheu para animar sua obra. Evidentemente que ao dizer isso não queremos negar um trabalho pautado na reinvenção da matéria poética e movido pela chama de certo atrevimento desde o primeiro momento de sua poesia; cada um à sua maneira, cada fase com suas forças, o exercício do poeta é sempre mantido por um traço de rebeldia. O que se sublinha é o afastamento progressivo de Manoel de Barros de qualquer radicalismo que fosse capaz de levar adiante aquela diversidade de interesses com a qual flerta sua primeira obra; é a sutilização da rebeldia ou sedimentação para formação de um lugar próprio, cuja a ousadia foi reafirmar continuamente sua estética.

Porque a obra poética de Manoel de Barros, apesar de se nutrir dessas forças da vanguarda tropical e de alguns impasses tornados quase em cismas – como a relação tradição e modernidade, mundo convencional e mundo inventado, o discurso comum e o discurso do marginalizado –, nos convence mais que quando desabrochou seu interesse pelo cenário mínimo mas de maior significação que é a ocasião de redescoberta do mundo através do reencontro e do reolhar seu próprio lugar geográfico. Mas, crítica seja feita, o projeto de reafirmação contínua de sua poética alguma vez tornou-se desgastado, preso numa mesmice, marcado por uma repetição vazia cuja força encontrava-se já estiolada pelo uso e não tinha por isso o mesmo poder que quando foi-se abrindo as portas de seu museu da inocência. Que todo escritor precisa forjar um mundo seu é uma coisa; que ele precisa reinventar-se neste mundo é outra. E o Manoel de Barros do entardecer não se reinventou. Preferiu estar alheado em seu mundo de miudezas. Por isso sublinhar o instante de obras como Face imóvel e Poemas concebidos sem pecado não apenas como o da gênese do poeta e da estética que construiu e sim como um pântano onde o leitor pode se aventurar em averiguar qual teria sido o outro poeta que Manoel poderia ter sido e não foi; ou mesmo que tenha sido, não ousou aperfeiçoar-se. Isso é já discutível num momento mais adiante, mas antes, uma provocação: não estaria no poeta encantado com o poder das vanguardas a sua melhor forma? Teria o poeta sido tragado por forças corrosivas da arte como o narcisismo? Antes, outro poema desse princípio; de Face imóvel:

Os girassóis de Van Gogh

Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas

Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.

E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.

No poema se lê algumas das referências abandonadas ou reinventadas tão logo Manoel de Barros construiu sua afeição pelo universo pantaneiro; é o poeta atento melhor ao coro universal sobre a existência, o homem de ânsias pela renovação do homem, mas ainda incrédulo ante essa possibilidade. É, por essa razão um poeta de conteúdo político-social mais explícito e muito diverso daquele que estreia em Poemas concebidos sem pecado, livro cujos poemas são antes de forma meio para a construção de um conteúdo narrativo de força significativa, diferente do tom de perquirição denunciativa da condição humana, se guia, como observado, por certo veio humorístico também social, e pela coloração diversa dos tons advindos da incorporação da narrativa no interior do poema. Esse traço, lembramos, é uma recorrência nunca abandonada pelo poeta; basta apontar como exemplo, a criação de algumas personagens habitantes de sua obra ou mesmo sua estratégia de reinventar-se como persona de si no diálogo que constrói com esses seres de tinta e papel que tornam ao tecido da poesia.

Mas a forma com a qual se inaugurou e que melhor diz do primeiro Manoel de Barros – talvez pelo traço da rebeldia natural do jovem, do convívio com o universo pulsante de uma América Latina em transformação – foi também a de uma poesia dissidente, justificando com todas as letras o título da sua obra inaugural. Essas duas formas citadas aqui envivecem em Poesias, talvez seu livro mais diverso e de maior pulsação poética. Um poeta em busca de tornar capaz uma poesia em que o valor do literário não se reduza ao valor da arte ou entretenimento vazio, via de acesso ao devaneio, mas seja intervenção reflexiva sobre a linguagem, o homem e a sociedade. A esses tons, é possível agregar mais outro: o de uma maior aproximação com o seu universo mais íntimo, como se o poeta buscasse melhor compreender-se e compreender seu lugar de filiação a partir de suas impressões sobre o que viu e viveu. É o contato com uma voz em prosa que se ensaia no verso, pela liberdade de criação e pela forja de uma intelecção inovadora, sobre a qual não é possível fazer vista grossa; outra maneira, podemos dizer, de olhar o mínimo: a ideologia. Mas, é neste título que se percebe Manoel de Barros melhor embevecido por um sopro lírico ou, de fato, a obra que justifica claramente o melhor da sua formação poética. Uma vez permanecesse nesse território diverso e adverso poderia sofrer a crítica de ser um poeta sempre em busca de sua voz. Está aqui uma das razões porque preferiu distanciar-se de uma linha por fazer-se para fazer-se numa linha.

Mas, não residiria nessa condição as maiores chances de romper com certos nortes e reinventar-se literariamente? Mesmo que não fosse do feito reinventar-se, não residiria nesse primeiro momento a chance de que o seu projeto literário melhor se integrasse à condição universal perseguida por outros poetas ou esse momento, porque não foi o que colocou em evidência no seu território, nunca foi visto como seu verdadeiro lugar poético? Essa e outra série de questões podem ser respondidas não com suposições arbitrárias nem com a revisão das entrevistas e depoimentos deixados pelo poeta; mas pela sua própria obra literária. E uma coisa é certa: a leitura mais simplista para responder tais indagações sempre será aquela que coloque em detrimento o reconhecimento capital sobre o seu fazer poético; mesmo que Manoel de Barros fosse desses nomes mais triviais da literatura, que se dedicam a escrever a obra ditada pelo mercado ou pela percepção de mercado aferida pela figura do editor, os gestos e a obra não confirmam esse lugar. O que a obra autoafirma é um zelo com a língua no anseio de retirá-la da mera condição pragmática ou da designação forçada pela sedimentação gramatical e do dicionário a fim de reanimá-la, oxigená-la, como é força de todo exercício literário não voltado para o reforço das trivialidades e dos lugares-comuns. Ou seja, toda rebeldia do Manoel de Barros ao amanhecer, concentrou-se para um único fim – se não reinventado quando se esperava dele reinvenção, não menos importante, o suficiente para fazê-lo singular na poesia brasileira contemporânea: a reafirmação contínua de um projeto literário cuja força se fecha no valor expressivo da linguagem e na ressimbolização de sua aldeia.

É sabido que poucos poetas brasileiros terão alcançado entre os leitores o lugar que Manoel de Barros alcançou quando descobriu sua voz e construiu os alicerces de seu universo – o que não é tarefa vã se lembrarmos a extensa quantidade de vozes significativas na nossa poesia que divide espaço tomado pela cultura de massa e toda parafernália do mundo da técnica. Ainda que seja acusado de permanência no mesmo, sobretudo, na ocasião em que se esperou dele a tomada de outro impulso, mesmo no seu pequeno universo de miudezas, e não tomou, o poeta foi sempre consciente de que na poesia perdoado nunca será quem não faz de suas escolhas uma profissão-de-fé. E mais: torná-la quista, integrada à fala comum. Toda grande obra é nada mais que uma obsessão de quem a escreve e só é uma obra grandiosa quando amaina fronteiras entre a obra e o mundo ao ponto de se confundir um no outro como uma só expressão. De que não tenha cumprido a primeira etapa, ninguém pode acusar Manoel de Barros; a segunda, é esperar pela força indelével do tempo. Isto significa dizer também que, todas as escolhas feitas, certamente foram próprias e movidas pelo desejo de todo escritor – não perecer na memória de seu povo. Além disso, cada um, a certa altura, mede o já-feito e, mesmo que não tenha para si nenhum projeto literário, o que não é o caso de Manoel de Barros, faz uma tomada de decisões que muitas vezes é já a própria obra que lhe delega.

Isso se verifica claramente na poesia do poeta em seu segundo momento – consideramos que ela esteja formada por duas águas, essa sobre a qual dissemos ser de forte aproximação com a vanguarda, a dos tons narrativos, do embate entre tradição e modernidade, do viés político-social e outra que passaremos a explorar, em melhor sintonia com seu universo particular, a observação das formas mínimas e marginais, de cariz mais estético e interessada na força expressiva e reinvenção da linguagem em seus diversos planos. Essa divisão não é opositora, uma vez se preservar algumas das características observadas na sua formação, tais como os tons da prosa e o embate entre mundos animados por consciências dialéticas; é uma divisória determinada até certo ponto por um fato biográfico de grande repercussão na obra do poeta: a necessidade de assumir a responsabilidade sobre os bens herdados do pai sob pena de ser tragado pela existência por não dispor dos meios mais viáveis para a sobrevivência. Ao mudar-se para o Pantanal, Manoel de Barros inicia um processo de expansão de suas raízes, de escavação de seu próprio mundo e sedimentação de sua existência e consequentemente de sua obra poética; algo semelhante ao que faz Carlos Drummond de Andrade e sua acomodação no perfil de homem público e cumpridor rigoroso de suas competências no mundo burocrático e a manutenção de um status quo sem grandes envolvimentos – que não por sua obra – com questões de foro político-social.

Uma questão que parece ser crucial nesse lugar assumido e retrabalhado de maneira persistente, vagarosa e silenciosa por Manoel de Barros nasce da condição da experiência como melhor maneira para o enforme da poesia (e é esse o mesmo destino que teve, por exemplo, o poeta de Boitempo): o poeta cria o mundo que ergue para si ora pelas mesmas constantes do mundo vivido, ora pelo experienciado real ou imaginariamente, ora pela relação contínua que mantém com a sua criação e a dos seus contemporâneos. Não é possível falar com propriedade apenas pela força da criatividade espontânea como parece aludir o termo quando se refere à poesia; isso é uma asserção verdadeira mesmo para os que se trancam em seu universo de celulose e tinta, porque nenhuma experiência criativa é possível de se realizar espontaneamente, haverá sempre que se relacionar com o já-existente; o seu criador, que até pode ser capaz de ignorar aqueles que o antecedem, não alcança ignorar o mundo habitado por ele. O poeta pantaneiro exerceu o ofício que outros também praticaram com igual primor: não ignorou seus antecessores e dedicou-se mais à universalização de seu pequeno mundo e dos sentidos por ele evocados – estas formas que todo aquele afeito aos rastros da memória nunca conseguirá se desvincular na construção de seu universo literário.

Agora, também não é o caso de acusar o poeta em haver se tornado um medíocre; talvez a sua escolha tenha se dado na percepção de que essa poesia do impasse ou a poesia de cunho social (chamemos assim a obra manifestada desse ambiente da vanguarda tropical e a obra de cunho político-interventivo) era insuficiente para responder pelo novo universo em causa e o ideal foi referir-se a um mundo que se oculta tal como ele se apresenta: o dialético se manifestaria assim na própria necessidade de não justapor o mundo que se revela com o mundo revelado. Mas compreendê-los enquanto esferas implicantes. Seu impasse, alicerçado nos impasses que nutriram como um todo as obras da nossa literatura moderna e contemporânea, reside no trabalho de fazer do miúdo grandiosa matéria de compreensão sobre a existência – o grande desafio de uma parte importante da poesia desse novo tempo. Essa epifania capaz de gerar todo o universo que Manoel de Barros gerou foi a mesma que se revelou em Guimarães Rosa para a realização de um sertão transfigurado, fora de sua condição marginal, do espaço-tipo, como a designada pelas obras literárias de cunho social; coube-lhe, cansado dos mesmos lugares de linguagem e embebido da força com a qual um romance como Grande sertão: veredas participa na confluência de outra realidade, sem se ferir pelo trago do retrato realista ou do impasse da vanguarda brasileira, dizer transfigurado o ambiente onde viveu a maior parte de sua vida. Não exclui nesse processo certo laivo político que animou suas primeiras criações, uma vez sua atenção se constituir em torno do que logo designamos como figuras, temas e lugares da margem tais como o exercício da escrita, o poeta, o catador de lixo, o velho, a criança, o louco, a obsessão pela poesia, a observação do inútil, a reflexão, o vagar sobre nadas, a fabricação de histórias, os monturos, os escombros, o espaço e atmosfera rural pantaneira.

Obviamente que o Manoel interessado em ver seu ambiente e a palavra pelo cerzido ainda intocável de sua força significativa, terá feito sua poesia mais popular; não por essa renovação da maneira de reparar seu mundo, mas principalmente por redizer uma ideia controversa e talvez nascida da relação com certo lugar da poesia enquanto território hermético (porque se diz feito só de palavras): o discurso sobre a inutilidade. Trata-se de uma apropriação de um lugar determinado primeiro pelo primado da razão – desde Platão – e da técnica – esta que se coloca acima dos valores da expressão artística com nomes como prática, serventia, consumo, necessidade. A construção de seu universo poético é pelas mãos de quem cata restos num grande monturo de insignificâncias e os realinha no intuito de lhe dar outra forma. Por isso, a tarefa do bricoleur, como se deixa perceber na enumeração das sobras, na maneira com que justapõe e recria palavras, discursos, é a forja ideal para sua poesia. É evidente que essa compreensão tem um valor incomensurável para a poesia brasileira e latino-americana. Mas, toda vez que se reforçar esse argumento, é preciso não esquecer, que de cada um dos tons dissonantes daquelas duas obras de estreia poderia ter se formado um poeta ainda mais diverso, audacioso e capcioso no trabalho de renovação das estéticas literárias; no entanto, aquela diversidade da estreia flagra a gênese de um poeta movido pelo fragmento, interessado em, na articulação diversa da linguagem, revelar sua descontinuidade. Em reafirmar o valor da insignificância – agora com os tons utilizados pela voz comum mas fazendo do insignificante refrigério para o mundo cinza e árido. Ou seja, instalando-se no e apropriando-se do discurso que o condena, o poeta atenta contra o desvario que subjuga a arte e revela a hipocrisia e a barbárie como determinações impostas pelo capital e pela técnica.

Por fim, o lugar da vanguarda tem ainda outro peso no Manoel tal como conhecemos que vem de quando se autodenominou – depois do convívio com o jornalista Bosco Martins e com o poeta do portunhol selvagem Douglas Diegues – de um integrante da Vanguarda Primitiva, dada sua fascinação pelo primitivo, aquilo que está na origem de todas coisas. Há nessa constatação a afirmação do ponto alto da rebeldia remanescente do jovem poeta: a de tornar os sons que antecedem todas formas mais elaboradas de linguagem numa gramática ideal à composição de uma voz poética nascida na aurora do tempo anterior ao da palavra. É quando se apresenta o Manoel entusiasmado com os efeitos de deslocamento dos morfemas, sintagmas, sintaxe e tentado à sismologia de captação dos ruídos, do descartado pelos sentidos animados pelos efeitos da razão. “Palavra: parvo; cores: o azul; fatos: passei a vida tentando escrever em língua de brincar. Minhas palavras são de meu tamanho; eu sou miúdo e tenho o olhar pra baixo. Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio” – assim se expressaria numa entrevista publicada numa edição da revista Caros amigos a respeito desse lugar assumido pelo poeta. Essa talvez tenha sido a mais substancial virada dentro de seu já consolidado universo de fabulação de nadas e o ponto alto do seu trabalho poético; é quando Manoel de Barros consolida aquela inquietação sustentada na variedade com que se manifesta sua primeira poesia. É quando se cristaliza em Manoel, dentre a diversidade de olhares com os quais vê o mundo, a condição do infante – sempre atento em considerar a grandiosidade das pequenas coisas. Uma reafirmação da condição marginal do fato poético.

O reforço sobre uma condição marginal, diríamos, da poesia é uma faca de dois gumes; ora a ideia de inutilidade se assume como um ato de resistência frente a um mundo cada vez mais fundado em criar valores e determinações de valor sobre aquilo que o homem produz – e essa é a interpretação que melhor diz sobre sua aproximação com um universo de insignificâncias –, ora a ideia de inutilidade afirma, principalmente ante os leitores do núcleo mais popular onde angariou um grande público, como mero reforço de sua condição afastada desse mundo de utilitarismos. Tudo o que produziu a partir de então intensifica a variação das diversidades poéticas de nossa literatura e problematiza sua própria condição numa realidade cujos valores aparecem distorcidos e fundados mais no ter e poder. De certa maneira, esse cunho político-interventor pode não vigorar explícito como o grito de um rebelde mas pulsa na maneira como subverte o status quo do urbanoide e a vida burocrática pela simplicidade do ambiente natural e a beleza da vida e das coisas simples. O regresso às forças primitivas é ainda uma maneira de expressão sobre a totalidade das formas, sobretudo da existência. Isto é, reanimar a forma do homem e sua integração com a natureza torna-se um apelo – nesse tempo tomado pela força de uma crise em que fatalmente a destituição dessa relação é uma das vias principais – pelo qual se constrói uma compreensão sobre os abalos nas outras esferas das relações sociais; é sim tornar à vista da comunidade o primitivo como valor primordial à revisão sobre nossa conturbada maneira de ser e estar no mundo.

A riqueza desta poesia reside na capacidade de negar sem dizer que nega, isto é, sua atuação reveste-se da mesma naturalidade com que a poesia de Carlos Drummond de Andrade se revestiu dos usos determinados pela cartilha modernista. A relação aqui apresentada não é sobre usos de temas e objetos e sim sobre a forma. Quanto às mínimas coisas, essas não são tornadas, na poesia de Manoel de Barros, em objetos de espanto tal como a pedra em “No meio do caminho” – o que coloca tais usos noutro patamar; são peças recolhidas ao acaso, do mundo do poeta, catalogadas (porque se repetem) e tornadas peças de significação para a composição de um mundo particular, o do eu-poético – espécie de museu da inocência composto apenas por penduricalhos de afetividades, miniaturização do mundo civil e existencial do poeta. O limiar entre este mundo e o do poema é o lugar de realização da poética de Manoel. A integração de insignificâncias é uma forma de atentar para um modo de preservar o que há de mais precário e perecível da existência num mundo em desencanto. No mundo do poema, as pequenas coisas que só têm lugar fora do mundo do descarte encontram um lugar afetivo, porque se revestem de valor sentimental, do tecido da memória. Essa atenção guarda outra assimilação das vanguardas: a aproximação com a pop art.

Há na construção da obra de Manoel de Barros outra atitude cara aos poetas seus contemporâneos. Esbocemos o mal para depois dizer a estratégia do poeta. É que movido pelo espírito narcisista, cuja centelha pulsa em maior ou menor proporção em qualquer artista, a aparição midiática, por uma necessidade de ser a todo tempo lembrado, por uma ambição sempre capaz de desunerar qualquer obra ou por uma impaciência ao potável exercício de maturação do tempo, ou ainda pelas massagens de ego oferecidas por uma crítica que no Brasil foi sempre mais pessoal que sobre o trabalho, tudo isso, leva muitos poetas a tornar a poesia em coisa qualquer, quando o seu lugar sempre foi de outra esfera. Nesse caso, a obra pode angariar um duplo caminho que não é eficaz à manutenção da voz do poeta: esgota-se muito cedo a criação ou não alcança a maturidade devida. Evidentemente que essa observação desconsidera o caso daqueles poetas que constituem uma exceção à regra: os que têm com o material poético uma relação prolífica e, simultaneamente, conseguem lidar com o apelo sobre a figura do escritor. Esses parecem se mover por uma compulsão desgarrada e disciplinada pela criação e por uma displicência sobre o mundo multicolorido dos holofotes.

Ao apelo midiático reagiu com certa reclusão e cautela; preferiu deixar que sua obra se encarregasse de sempre estar à sua frente. E a compulsão criativa assume nele outra forma: a substituição da diversidade pela maturação e a reflexão sobre o mesmo tema (como quem a ele se afeiçoa e o aperfeiçoa) e o esforço de extensão (no sentido de alargamento) das fronteiras da palavra. Isso se justifica na correlação de forças entre o desejo de vivificar um mundo de miudezas numa obra também, por assim dizer, miúda. O caráter entre forma e criação responde por um desvio desse lugar sagrado alcançado pela unanimidade da crítica sobre sua poesia; há em todas as subversões que seu gesto poético possa significar a distância da medida ditada pelo tempo capital para o qual tudo tem de ser dado em extensa quantidade e com valor prático. É ainda uma comunhão com o gesto quase determinista sobre o labor do poeta com a palavra: o poema não se sustém se não lhe é dado tempo necessário de sua maturação. Nesse sentido, o trabalho do poeta se atém e muito a uma dimensão que se diferencia em tudo do tempo corrido da contemporaneidade.

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não aguento ser apenas sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros, antes de ser o poeta quisto, o que alcançou parte importante da unanimidade dos leitores sobre sua obra, tinha para si uma grande dimensão desse tempo outro do poeta. E soube pesar a seu favor fundindo a brevidade das coisas mínimas não apenas como tema literário, não apenas como forma, mas como exercício de criação. Eis a grande diferença e seu legado para a poesia. Com a capacidade do poeta de inserir fôlego novo à palavra tornou-as não objetos, mas novas formas, por vezes criaturas dotadas do sopro existencial, deu-lhes ânima, tal como faz as crianças quando se põem a fabricar realidades a partir de formas minúsculas ou inanimadas. Fez da língua jogo de brincar. “Eu acho que eu passei a vida inteira brincando, por que todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos, são todos assim, quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso, pra procurar o sentido, num acha a ideia, porque a linguagem apaga a ideia, a metáfora destrói qualquer ideia. As ideias depois se quiserem inventam. Cria uma outra ficção a partir do poema, da frase”, diz o poeta numa entrevista para o programa da TV Educativa Regional do Mato Grosso do Sul, “O outro lado de la fronteira”.

Explorou ao limite aquilo que foi sedimentado pelo tempo da infância e trabalhado pela argúcia de quem descobriu nesses sedimentos a possibilidade de transformá-los em material de poesia. E, enquanto os demais poetas veem o que está no mundo – se integra na condição de espanto – Manoel de Barros vai por outra via; olha as miudezas, mas não constrói sobre elas nenhum espanto, nenhuma exaltação, que esse outro mundo parece dispor de uma força justificada nele mesmo pela grandiosidade de suportar quieto os rumores do mundo de coisas grandes e complexas. Constrói correntezas e oferece outra posição como usuário do código escrito. Esse trabalho é genuinamente poético, se compreendemos por ele um exercício pleno de ressignificação da língua pela criação. Num itinerário oferecido pela sua obra, agora depois de pronta (é sempre assim quando a vida biológica expira), é possível notar que o poeta sempre teve interesse em olhar para baixo e nunca terá se desvinculado totalmente (coisa que nós, a gente comum, sempre vimos fazendo) do seu período de infância – este em que é possível ver nas pequenas coisas grandes coisas. Essa terá sido a maior de suas subversões. E por que o acusam de se repetir nessa forma? Porque ainda nos falta perceber que o gesto da repetição é a base natural de toda escrita – repete-se até quando a vista cansa e não alcança mais dizer, mesmo sabendo que as possibilidades de dizer são infinitas; repete-se até o limite de a língua cansada de ser a mesma torna-se outra. E há em toda repetição um engano a quem olha apressadamente para a obra e não percebe os deslocamentos produzidos por ela. Quem olhar de perto a poesia de Manoel de Barros sempre encontrará outras vozes no poeta que elegeu um tempo distinto do tempo em degradação para dar forma à sua poesia.

Penso na infância rural que tive e como minhas faculdades imaginativas eram capazes de tornar grandes fazendas um cercado de restos de tijolos e pedra, em grandes criações de galinhas com suas formas diversas sementes de pereiro, uma grande boiada com bichos de nome próprio e tudo com pedras, grandes poços artesianos em buracos cavados no chão e como a partir dessas criações eu construía histórias e inventava um linguajar diferente para dizer o imaginado. Era sempre possível observar esse cenário de faz de conta, historiado pela imaginação criativa, e criar uma diversidade de outras realidades e expressões; de narrativas cujo o tempo e a existência se confundiam com o tempo comum e a realidade experienciada entre os mais velhos. Essas formas nunca estiveram distanciadas de Manoel de Barros e, logo, também essas diferenças. Seu trabalho poético é assim, um trabalho nascido na memória e na interpenetração de mundos; no prefácio que redigiu para Meu quintal é maior do que o mundo, um verso que diz muito de uma obra que se enraizou num chão próprio mas alcançou universalidade fora desse chão, José Castello diz que a tarefa da poesia do poeta pantaneiro “não é explicar, mas desexplicar”; eu amplio: desexplicar é dizer o mundo pelo sua forma original (no sentido do genesíaco), porque no caso do poeta, é dizer o mundo tal como enxerga, nascendo, despossuído de grandes propósitos.

***
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.