Retóricas agudas: violência urbana e corrosão do humano – Número 135 – 07/2015 – [57-62]

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Preâmbulo

Custo a aderir a qualquer leitura sobre as conversas nas redes sociais, postagens, compartilhamentos e outras formas de manifestação nesses espaços virtuais[1] como algo promissor; dada a forma, em geral, irrefletida e bidimensional de tais publicações. Acontece que, mesmo muito vacilante em relação a esse movimento, aventuro-me nesse breviário a ter como base uma troca de mensagens que travei recentemente em minha página virtual. Faço isso como uma forma de purgar uma espécie de toxidade que permaneceu depois da discussão ferrenha. Um envenenamento pelo contato com a agudeza[2] retórica que envolve formas de argumentação que não têm nenhum constrangimento em se afastar das prerrogativas do reconhecimento da humanidade do outro.

Enquanto jogamos brigas de foice virtuais nas quais compartilhamos de bate e pronto tudo o que nos afaste de Bolsonaros e Mainardes da vida, tratamos esses personagens como manifestações do grotesco, daquilo que consideramos o mal, o atraso, o monstruoso e até o absurdo, na acepção mais profunda daquilo que corrói o significado do mundo. Pouco nos movemos, entretanto – para além do silêncio ou dos mecanismos de demarcação da distância virtual (bloqueios, exclusões, e outras formas de apagamento cibernético) –, em relação ao fato de que tais retóricas agudas (logo, blindadas, pouco porosas aos contra-argumentos) são moduladoras de grande parte do senso comum. O exercício aqui proposto, portanto, além da necessidade de purgação, tem também o propósito de levar a sério o senso comum como objeto de reflexão.

Hannah Arendt define a compreensão como uma atividade do pensamento que procura resistir aos abismos de significado provocados pelas formas de poder que têm por base o cancelamento do humano[3]. O atributo desse movimento da compreensão que me interessa aqui diz respeito à sua descrição como uma espécie de arco reflexivo que parte do senso comum e a ele retorna. Isso é fundamental porque as aniquilações do humano com as quais nos debatemos têm sua manifestação mais acabada não nas formas monstruosas, mas no registro da banalidade, como a própria Arendt nos alerta[4].

Existe uma dimensão subterrânea e densa que nem sempre percebemos no aspecto plano e raso dos nossos murais virtuais. Sua profundidade é temporal. Ao empilharmos postagens e comentários em nossas páginas planas não se promovem apagamentos. Ocorre, ao contrário, um acúmulo de tempos que é matéria e forma daquilo que nos deveria chocar, abalar, corroer, mas se sedimenta no senso comum e ganha o verniz moral da bondade: o lado dos bons, dos justos. É preciso dar com os olhos na feição corriqueira desses horrores e não em seus porta-vozes iconoclastas.

A cena muda

A circunstância virtual que desencadeia a confecção deste breve ensaio se inicia quando compartilhei uma notícia divulgada pelo diário Extra. Essa reportagem fala de um vídeo que mostra policiais da Unidade de Polícia Pacificadora do Morro da Providência adulterando uma cena de crime, um homicídio cuja vítima era um jovem de dezessete anos, morador daquela favela. Os policiais aparecem dando disparos com uma arma de fogo que depois é colocada na mão do cadáver do jovem[5]. Não tardou para que um confrade digital viesse à minha postagem manifestar suas discordâncias de modo brusco: colou em seu comentário as fotos do cadáver de um policial que foi torturado e morto no Baixada Fluminense[6].

Excluí a foto com a seguinte justificativa ao meu interlocutor que aqui chamarei de X.:

Foi mal, X. Excluí a foto. Não costumo deixar no meu mural esse tipo de imagem. Em relação à morte do policial, lamento da mesma forma. Lamento ainda mais essa relativização de que a publicação acima diminui em algo a morte do policial em questão ou vice versa.

respondeu da seguinte forma:

Só me perguntei por que você preferiu a notícia do bandido morto ao invés do policial…

A partir daqui, reproduzo aquilo que empilhei em minha postagem como resposta. Mantenho os comentários tais como os publiquei na página virtual[7]:

Se for procurar nos perfis do “pessoal dos direitos humanos” vai encontrar diversas manifestações de pesar pela morte do policial em questão.

Esse discurso de que não se pode vigiar a ação da polícia ou criticá-la porque haveria um descaso em relação às mortes de policiais além de ser um mito só ajuda a legitimar as práticas registradas na reportagem acima. Eu lhe desafio a encontrar um caso de morte de policiais no Rio que não tenha sido amplamente registrado pela mídia e não tenha sido profundamente investigada. Agora vc imagina quantos jovens foram enterrados como traficantes por conta desse tipo de prática acima? O que se tem que entender de uma vez por todas é que práticas ilegais como essas só alimentam os mecanismos que marginalizam os policiais e os empurram para as circunstâncias da irracionalidade desses confrontos armados que os vitimizam. Enquanto os policiais estiverem matando e morrendo ninguém vai dar um passo para investigar a sério as rotas do tráfico de armas. Nenhum governo fará o dever de casa de valorizar a carreira policial e nem fará os investimentos públicos que realmente têm impacto em longo prazo para a redução da violência, como educação e infraestrutura. Aqueles que dizem que é um equívoco denunciar mortes ilegais como as da reportagem acima precisam saber que estão contribuindo para a desqualificação e marginalização do trabalho policial e para as circunstâncias que produzem mortes de policiais como a que você postou aí acima.

Não preferi nada. Não se trata de estabelecer uma hierarquia mórbida. Compartilhei a notícia acima pelo fato de se tratar especificamente de um caso no qual há o registro de um procedimento ilegal constantemente aplicado e constantemente negado pela polícia que insiste na legalidade de suas práticas ilegais. Acho muito bizarro esse tipo de questionamento: qual morte preferimos. Que isso? Como eu posso PREFERIR que alguém morra? Acho execrável comemorar assassinatos. Fico chocado quando vejo pessoas amigas achando bom quando um bandido é assassinado: “menos um!”, canso de escutar ali no tête a tête com pessoas amigas. Engulo à seco, muitas vezes. E lamento de chegarmos ao ponto de ter satisfação com uma morte. Nem um policial deveria sentir isso, por mais que a profissão tenha essa possibilidade. Da mesma maneira, não sinto alívio, prazer, satisfação ou nada de positivo com a notícia da morte de um policial. Você não me verá por aí postando a notícia da morte do rapaz favelado acima como comentário à notícia da morte do policial como se uma justificasse a outra. O fato de eu postar em meu mural a notícia acima não diz nada a respeito da morte do policial que você comentou aqui. NADA!

Outra coisa: até que se prove o contrário, o rapaz morto na notícia que postei não era um bandido! O que a notícia mostra é o policial metendo a arma na mão dele depois de morto e dando os disparos. Se você acha que todo jovem favelado é um bandido, você está redondamente enganado.

Repito. Eu não compartilhei a notícia de um bandido morto, mas de um jovem acusado, por fraude, de ser um bandido. Lamento que você não veja as coisas por esse prisma.

O tom destemperado das minhas respostas, obviamente, condiz com as prerrogativas retóricas daquele espaço. Mas também é uma forma que sintetiza as cores emocionais de estar de frente com um tipo de argumentação que tem como base a aniquilação do outro. O que me pareceu mais violento foi o fato de que a própria imagem do policial morto, seu cadáver, se apresentasse assim como um contra-argumento. O policial morto seria, portanto, para X. a condensação de uma justificativa. A imagem do morto foi utilizada como um emblema, um parágrafo, como algo que fosse retoricamente suficiente. Essa ponderação muda foi proferida sem que meu interlocutor parecesse constatar todas as implicações de que aquilo que ele colava em meu mural era a foto de uma pessoa morta.

Tal retórica aguda é uma operadora, portanto, de procedimentos de desumanização que possuem manifestações monstruosas em seus célebres e grotescos enunciadores públicos, mas atravessam suavemente – conciliados de modo confortável com narrativas da bondade e da justiça – a superfície das coisas banais, nossas manifestações cotidianas, nossos posicionamentos privados. Dessa forma, considerar o outro menos humano, menos digno de vida, prescinde de vestir as cores dos enunciados brutais, explicitamente fascistas, e passa a ser algo que se profira com suavidade e satisfação em almoços familiares e nesses entroncamentos virtuais.

Essa mesma operação engendra significados que fazem com que o seguinte trecho de um áudio, supostamente gravado por um policial, que recebi por outra rede virtual, possa parecer algo risível por seu narrador e seus supostos interlocutores. Trata-se de uma narrativa sobre o desfecho de uma ação policial no Rio de Janeiro:

Final da história: uma arma apreendida, um bandido morto atropelado (demorou pra perna e o braço dele esticar pra caber dentro do baú da funerária lá, do rabecão; deu o maior pena [com ironia], entendeu?), e um vagabundo baleado. Pô! Show de bola! A gente vem aqui só pra dar notícia ruim de polícia morto. Eu tô vindo aqui pra vocês pra alegrar o domingo de vocês aí. Esse domingão maravilhoso! Maravilhoso! Um bandido morto, meu Deus do céu! Quem gostou compartilha!

Horizontes

Além da necessidade de purgação dos potenciais tóxicos do contato com expressões tão acabadas da banalidade do mal[8], pretendi aqui, nesse combinado de desabafo e tentativa de reflexão, frisar a necessidade de que se construam modos retóricos e argumentativos que tenham como alvo não as expressões emblemáticas e óbvias do desejo de aniquilação do outro, mas suas latências cotidianas. Considero alguns fatores essenciais para esse fim:

É preciso, em primeiro lugar, que se demonstre pragmaticamente que tais posturas de relativização do valor da vida humana produzem efeitos contrários aos valores de bem e de justiça que galvanizam a superfície da defesa cotidiana da desumanização do outro. Dito de modo mais objetivo: é necessário mostrar que tais posturas produzem mais violências e empurram os policiais – heróis tortos por excelência dessa retórica da agudeza – para lugares sociais marginais e, portanto, mais vulneráveis às violações que os alçam num argumento que se configura da seguinte forma: “Ninguém dos direitos humanos se importa com a morte de um policial, só com as mortes dos bandidos”.

Reiterar, em segundo lugar, a universalidade da vida como valor – ainda que seja um aspecto basilar das convicções que nos movem a resistir às retóricas de desumanização – parece-me pouco promissor para que se constranjam os argumentos de bondade e de justiça dos que não se importam com assassinatos daqueles que podem ser imputados de modo imediato como “bandidos”. Isso porque a crença de que o bandido é a síntese do mal já traz em si o banimento desses sujeitos para o domínio das coisas. Mas é preciso que os defensores e reprodutores subterrâneos da desumanização do outro saibam publicamente que sustentar e replicar tais argumentos possui contradições profundas com as fontes morais que dão lastro às possibilidades não fascistas de vida política.

Destaco, por fim, a importância de se ter em mente que os interlocutores fundamentais dessa discussão não são aquelas caras grotescas que atacamos de forma icônica e contundente. São aquelas feições familiares com que nos deparamos cotidianamente e com quem será difícil argumentar porque, com frequência, se manifestam a partir de convicções do bem e da justiça. Esse é o ninho que choca os ovos da serpente. Penso ser a hora de pensarmos sobre isso, sobretudo, porque o recém-publicado Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta um empate no Brasil entre os que concordam e os que discordam da afirmação “Bandido bom é bandido morto”.[9]

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André Rodrigues

[1] Evito até mesmo as descrições desses sítios como “arenas” e muito menos “ágoras”, como é possível se entreouvir em publicações de especialistas nisso que se pode chamar genericamente de “ciberespaço”.

[2] O termo agudeza aqui nada tem a ver com astúcia, mas com o sentido que tinha no século XVII, ou seja, algo como um fechamento reativo à argumentação.

[3] ARENDT, Hannah. Compreender (Ensaios). São Paulo, Companhia das Letras; Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.

[4] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

[5] A matéria figura na capa da versão impressa do Jornal Extra de 30 de setembro de 2015, mas pode ser lida em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/pms-sao-presos-apos-divulgacao-de-imagens-que-mostram-alteracao-em-cena-de-homicidio-17642140.html. Esse foi o link que compartilhei em minha página pessoal na internet.

[6] A notícia da morte desse policial também pode ser lida na página do Extra: http://extra.globo.com/casos-de-policia/pm-morto-com-tiro-nas-costas-na-baixada-fluminense-17626389.html.

[7] Corrigi, entretanto, a ortografia e a pontuação.

[8] Tal desintoxicação é perseguida também por uma parcela de pessoas intelectualizadas de classe média, da minha geração em diante, que parecem perseguir antídotos que assumem a forma de outros entorpecimentos da consciência: algo que parece o frisson de uma experiência de cidade que não existe, uma atmosfera festiva, fluida, carnavalesca que é comum em bairros como as Laranjeiras ou Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.