Sra. Dalloway: um breve ensaio – Número 134 – 06/2015 – [48-56]

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Introdução

Caso fossemos inserir as obras de Virginia Woolf em uma corrente literária, qual poderia ser? Seria possível classificarmos em algum lugar comum os modelos de Woolf, estes que chegam a extrapolar as dimensões de um mero romance?

Certa vez, Ernest Heminway escreveu em um de seus livros:

Todos os bons livros se parecem como se eles fossem mais reais do que se tivessem acontecido de verdade.[1]

Decerto, as obras literárias de Virgínia Woolf, em especial a obra a ser examinada (Sra. Dalloway), figuram na categoria “bons livros”. Não há como negar isto na precisão como ela desnuda seus personagens, digo, como eles se auto-desnudam por meio dela. Deste modo, Woolf tem o papel apenas de agenciar os monólogos interiores de cada um, polarizando qualidades e vícios com um poder de observação aguda tão evidente como se os pensamentos desvelassem por si suas próprias características.

Evidentemente, diferentes perspectivas de realidade para o universo individual de cada personagem são forjadas, mediante a tensão entre a rememoração e as percepções sensíveis e imediatas da realidade, no que um objeto ou um lugar pode remeter o personagem a uma esfera de realidade particular. E assim os personagens se observam, seja estranhando-se ou redescobrindo-se mutuamente. Isto significa uma mudança na forma narrativa do romance, com o desaparecimento do escritor como narrador dos fatos objetivos em prol de um outro modelo em que ele não é visto como presença e sim como fluxos de um olhar em inquietante difusão por seus personagens. Tal medida é uma afronta aos modelos realistas anteriores, diante do caráter ineditista, por excelência, da obra. Proust dizia: “o autor não explica a obra: a obra deve falar por si”[2], o que corrobora com as características presentes na corrente literária que denominamos por modernista.

Façamos uma pequena síntese sobre as mudanças sofridas na estrutura da narrativa. Segundo Ian Watt, o século XVIII não foi apenas importante no que diz respeito ao maior número de leitores, devido ao barateamento dos livros, mas também ao surgimento de romances que prezam por sua “legitimidade”. Não há mais, portanto, a história baseada em epopéias ou na vida da realeza, recheada de fundos morais. Em 1719, Daniel Defoe na obra “Robinson Crusoé”, inaugura o romance ficcional ao mesmo tempo em que funda a importância da experiência pessoal baseada na empiria e até no questionamento de si. Posteriormente, no século XIX, a narrativa irá salpicar diferentes modelos subjetivizados para o ato da sensibilidade, por meio de diferentes entendimentos do mundo, em que até o empiricismo é preterido em prol de um estudo fenomenológico do espírito. A partir de obras realistas, os sentidos dos personagens são realçados. Diferentes filosofias irão estudar a fundo as relações entre morte e vida, tal qual o sentido da própria existência. É neste período que a crise do narrador onisciente se estabelece, propiciando as mais diversas abordagens de seus personagens. Num conto de Virginia Woolf chamado “Um romance não escrito”, o narrador questiona através de seus personagens: “Mas quando o eu fala com o eu, quem é que fala?”[3] Há uma angustiante incapacidade de se apreender o suposto mundo real para lhe dar alguma nitidez externa.

O modelo ideal de livro é aquele que contesta, reivindica, conclama através do enredo e de seus personagens. A imparcialidade é contestada. O classicismo é lido e reescrito muitas vezes com tonalidades oitocentistas. O que então classificamos por literatura modernista diz respeito à incorporação de novos modelos na elaboração do real, abalando os limites entre a realidade e o ficcional, tamanha força e vitalidade o enredo ou os personagens anunciam. E isto chega a tal ponto que, como realçamos no parágrafo anterior, o narrador, o tempo e as formas são postos em questão diante do estilo característico do escritor. O psicológico aqui está tão latente que a narrativa está bem próximo ao raciocínio humano em seus desenvolvimentos naturais. A obra surge como uma metamorfose sua que, muitas vezes, põe em cheque a forma e o conteúdo do que irá ser relatado na obra em cada estrutura das frases – tudo ao bel prazer ou necessidades do escritor, garantindo um toque sempre autêntico à sua escrita.

A obra Sra. Dalloway, publicada em 1925, preza por desenvolver uma teia que consiga servir de interlocução entre seus personagens. Tudo sob um fluxo dinâmico e intenso dos pensamentos em conexão entre si, de modo recíproco e contínuo, através de laços – e embaraços – de memória. É assim que Peter Walsh se liga à Clarissa Dalloway, esta à Sally e assim sucessivamente, conectando passado e presente, na Inglaterra antes e depois da 1ª Guerra Mundial. Contudo, a narrativa oscila a tal ponto que é difícil discernir a percepção quase osmótica dos personagens do presente e do passado, tal qual a própria autoria de um determinado pensamento, todos tragados pelo fluxo de consciência de sua agenciadora, Woolf. Podemos dizer que na aventura romanesca de Woolf, nada entra e nada sai, como dirá um personagem, bem ilustrando o mundo da autora, em “O romance não escrito”: “Estamos todos aqui, disse ela bruscamente, engaiolados nesta sala abafada”[4].

Deste modo, Woolf introduz novas técnicas de tempo e temporalidade, atrelando o tempo interior e exterior dos personagens – o que era então impossível nos estilos literários anteriores -, culminando na determinação de um todo, não mais proveniente da sucessão de eventos, mas como ocorrência própria, tal qual uma concha de retalhos, cujas partes compõe o todo.

O mais curioso é que a trama se desenrrola em um único dia de junho, quando Clarissa Dalloway prepara uma festa em que ela será a anfitriã. E no percurso que vai do dia à noite, a história se consolida. É aí onde se constrói não apenas as realidades subjetivas de cada um, mas também as objetivas, ao expor as nuanças sob diferentes assuntos correntes na estrutura social da Inglaterra do pós-guerra. Assuntos que vão desde o feminismo, homossexualismo até o problema dos sobreviventes de guerra e o discurso médico da época, são levantados. Isto sem rechaçar questões existencialistas presente em cada personagem, de tal modo que todos têm um comportamento próprio.

Personagens e problemáticas

Clarissa Dalloway, com sua saúde debilitada, é a figura principal da obra, uma vez que a narrativa gera, basicamente, em torno dela. Até mesmo Septimus, um veterano de guerra que se suicida, irá participar de algum modo da vida dela, mesmo sem ter conhecido pessoalmente, senão através das conversas proferidas em meio à sua festa, feitas pelo renomado psiquiatra Sir William Bradshaw, cujo paciente era Septimus. É ela que melhor aprecia a vida a cada dia e uma das poucas em que não se filia a nada, senão ao puro carpe diem – atitude talvez inspirada por sua amiga íntima, Sally Seton. Daí o desejo em dar as festas, não para agradar determinados grupos ou pessoas simpáticas a sua vontade política, mas para unir as pessoas presentes em sua vida, seja lá quais forem. Isto lhe rendia o título de hipócrita por vários personagens do livro, pois só ela compreendia a grandeza dos momentos felizes ao filtrar as inutilidades úteis da vida, seja nos pequenos gestos ou num sorriso, por exemplo. É este “joie de vivre”, termo cunhado por Peter Walsh, um apaixonado pela maneira “charmosa” de ser de Dalloway, que torna ela alguém tão envolvente e misteriosa. Isto se evidencia principalmente nas páginas finais, quando as elocubrações sobre o suicídio do desconhecido Septimus servem para justificar uma vontade maior de viver, na fuga da morte e do envelhecimento, diante do que ainda existe e é belo.

A beleza e satisfação da Sra. Dalloway não é aquela adquirida por alguma religião – como Doris Kilman – ou por um amor virulento – como o de Peter Walsh -, e sim pelo que cada coisa pode proporcionar aos seus sentidos, através da solenidade das ações que afirmem a vida, como a compra de flores. O clássico constraste entre o ser e o parecer é expresso melancolicamente nas miudezas dos gestos e das coisas e, mais que tudo, a ausência de um eixo de valor a partir do qual alguma realidade possa se erguer como estabilidade. Daí tanto ela quanto os personagens, ao longo do livro, aparentarem freqüentes instabilidades entre a felicidade e a tristeza; a dor e a alegria;a morte e a vida. Isto igualmente revela o porquê dela ter rechaçado o amor verdadeiro e obsessivo de Peter Walsh cuja liberdade concedida por ele, segundo Clarissa, a “asfixiava” e exigia algo que ela não podia dar. Ele, por sua vez, nunca entendia a preferência dela em se casar com Richard Dalloway, um homem tradicional e membro do parlamento, e em cujas intenções seriam a de torná-la uma boa dona de casa. Clarissa aparece ora alegre ora triste com a sua resolução e, em certa passagem, diz estar satisfeita só pela simplicidade de Richard e por carregar o sobrenome Dalloway.

Perspectiva similar aquela tomada por sua amiga e mestra Sally Seton, a quem quando jovem teve grande admiração pelo caráter independente e desinibido quando esta fumava cigarros e corria nua no corredor de casa na frente dos empregados, dentre outras atitudes cujo intuito era obter alguma reação das pessoas e se divertir com isso. No momento em que a Sra. Dalloway a reencontra após vinte anos, ela é também dona de casa, casada com um rico homem – atitudes que, quando jovens, ambas consideravam como uma catástrofe. Elas foram testemunhas dos “momentos mais felizes da vida” há vinte anos, quando se beijaram por alguns segundos. Este ato, verdadeiro momento de paixão, diz respeito à tendência homossexual dos seus personagens, o que é evidente em outros escritores, como em Proust, quando a filha de Vinteuil beija uma amiga e cospe no retrato do pai. Isto pode significar uma crítica aos valores tradicionais conservadores. No livro Sra. Dalloway, isto pode ser representado por Hugh, político importante e de renome, ao qual Sally, representante dos ideais femininos, se contrapõe constantemente.

Interessante a importância dada por Woolf às obras de Shakespeare ao longo do livro. Clarissa se apropria de Shakespeare muitas vezes. Quando ela compra flores no início do livro, ela lê algumas poucas linhas de uma peça de Shakespeare, Cymbeline, num livro exposto na vitrina de uma loja. As linhas vêm de uma marcha fúnebre no que sugere que a morte deve ser abraçada como uma libertação das limitações da vida, pensamento recorrente tanto em Septimus quanto em Clarissa. Como ela sente a morte em várias passagens do livro, estas linhas sugerem a morte como uma alternativa – o que Septimus irá seguir ao pé da letra -, um caminho esperançoso de abordar as perspectivas da existência através da morte. Ela se identifica com um personagem de Othello, que ama a sua mulher, mas mata ela por ciúmes, e depois se suicida quando percebe que o seu ciúme foi injustificável. Compartilha com Othello a sensação de perda de um amor, principalmente quando pensa em Sally Seton.

O apreço pela poesia revela muito dos posicionamentos de Clarissa e Septimus, assim como a ausência de tal apreciação nos outros personagens. Richard Dalloway, por exemplo, acha os sonetos de Shakespeare indecentes. Talvez seja por isto que Richard é um dos personagens que mais tem dificuldades em exprimir a sua emoção, tal qual Lady Burton, ao nunca ter lido poesia, ser tão rígida e indiferente, com a reputação de “se importar mais com política do que com pessoas”.

Um outro personagem ícone do livro é a figura de Septimus Smith, também amante das obras de Shakespeare e veterano de guerra, que não mais encontra conforto na poesia como outrora, pois sofre constantes alucinações de Evans, fiel amigo morto na guerra antes do armistício, devido às neuroses causadas pela guerra. Lucrezia, fiel esposa e descendente de italianos, a quem ama Septimus profundamente, demonstra-se insatisfeita com o tratamento dado pelo Doutor Holmes. Este diz não haver nada de errado com Septimus fisicamente ou anatomicamente e sugere que ela procure pela ajuda de Sir William Bradshaw. Apoiado nos modelos comportamentais, este diz – à sua esposa e não a ele – que Septimus sofre de uma “falta de proporção” – da realidade moral – e precisa reajustar-se sozinho ao sanatório, localizado em meio à bela paisagem. Havia um mito de que se o paciente fosse isolado e exposto ao meio natural, ele pudesse recuperar o que era antes. Ter de se separar de Septimus a chateia.

Ao longo da história, Septimus reconhecerá o doutor Holmes como a própria “natureza humana”, aquilo que está entranhado nele. Daí ele dizer “Holmes está dentro de mim”, tal qual William, o juiz do bom comportamento, ao denotar o tratamento como “uma obrigação” moral, ao dizer: “Você deve fazer ‘isto’ ou ‘aquilo’ para sanar seu problema”. De maneira geral, a reação de Septimus na fuga à “natureza humana” e às obrigações morais, desencadeadas em meio ao absurdo da guerra e as conseqüências destas à sua vida é imediata. Sofrendo a interiorização da uma culpa que justificasse a então “falta de sensibilidade” após a guerra, ele se suicida ao se jogar da janela. Dr. Holmes ao testemunhar a cena, taxa Septimus de “covarde”, novamente como se fosse uma questão moral.

Há também a proposta encabeçada por Lady Burton para a deportação dos veteranos de guerra para o Canadá, com o intuito de “conservar a saúde mental, a riqueza econômica e social da Inglaterra”. Woolf parece demonstrar o descaso das autoridades pelos veteranos, evidente quando descreve a alta sociedade preocupada nos títulos adquiridos – onde os médicos, encabeçados pelos discursos de Dr.Holmes e William, estão encluídos – , pois almejam apenas poder e respeito. A indiferença permeia o campo dos ricos, isto já quando Hugh, um político importante e de renome, compra joías à sua esposa como forma de aliviar a sua depressão causada pela doença. Ele é a melhor caracterização do nobre inglês.

É possível aplicarmos aqui o discurso de Hannah Arendt, de forma parcial e não totalmente, acerca do que ela considera por ralé no Imperialismo Ultramarino, onde a Inglaterra seria um principal expoente. Hugh é a metáfora destes “homens sem espírito”. Envolvido por um forte orgulho e amor próprio em conhecer as principais personalidades políticas da época em busca de um reconhecimento social, pouco se importa para questões mais humanas, diferentemente de Richard. Este o critica pela atitude gélida perante sua esposa, a falsidade evidente de seu caráter e,em vez de olhar a vitrina, resolve comprar um ramalhete de flores para Dalloway. Tanto Hugh quanto Lady Burton – uma figura masculinizada e também egolótra – são representantes da degeneração do indivíduo, da indiferença, sobretudo.

Peter Walsh é um mal sucedido romântico que está sempre envolvido em problemas amorosos. Incerto sobre o que realmente sente, constantemente lembra do passado e não consegue se desprender dele, assim como tem muitas dúvidas sobre suas escolhas, o que faz com que ele seja alguém muito imprevisível, inclusive a ele próprio. Apesar de sua ambivalência e tendência para a análise, ele sente a vida intensamente com fantasia e aventura, e tem grande sensibilidade por muitas questões pertinentes ao universo de Clarissa, com exceção do que ele julga ser a “ignorância” dela ao estar cercada de hábitos e pessoas fúteis, e menosprezar o saber. Ela, todavia, diz precisar das pessoas para se libertar do “preconceito” pessoal, ao valorizar o propósito do mistério solene das coisas e das relações humanas, adquirindo o supra-sumo da existência pela natureza da vida.

O marido de Clarissa, Richard é, por sua vez, um homem de muita simplicidade, bom pai e esposo, devotado a realizar reformas sociais no país, contudo pensa de forma diferente de Clarice sobre a beleza da vida. Em certa parte do livro, Richard tenta romper a sua habitual timidez do relacionamento ao dizer à Clarissa que a ama, todavia isto não se realiza porque ele se sente muito reprimido para dizer estas palavras, já que se sente intimidado ao não ter dito estas palavras há muito tempo. E isto porque ele considera a tradição de primeira importância, antes da paixão. Isto explica a própria tentativa dele em conservar as tradições inglesas da guerra – vide a ida dele à casa de Lady Burton com o intuito de escrever a história militar familiar – em contrastre com Septimus, que reconhece a guerra uma hecatombe. Ao longo do livro ele é posto em contradição com Hugh, um homem que, como ele, participa da alta sociedade, só que sem escrúpulos algum. Richard simboliza os bons costumes seguidos ao pé da letra, enquanto Hugh é orgulhoso e calculista demais, sempre se apropriando de máscaras sociais.

A filha do casal, Elizabeth, é uma menina passiva, bem ao modelo tradicional de “boa esposa”. Muito próxima ao pai, ela tem como professora de história Doris Kilman, despedida durante a guerra por ser descendente de alemães. É surpreendente a figura representada por ela, como uma professora de extrema devoção religiosa que tenta por educar religiosamente a menina e que, constantemente, tem inveja de sua família – principalmente da mãe de Elizabeth – por sua condição social. E é diante desta mistura de inveja com raiva que o discurso religioso a ampara, pois ela diz ter encontrado o verdadeiro sentido da vida alí. As atitudes dela no interior da igreja chegam a ser cômicas ou desgraçadas quando se debruça em gestos bruscos que demonstram um grande fervor à oração. A impressão é dela “descarregando” as tensões e insatisfações do dia-a-dia por meio do discurso eclecsiástico da fé, dando-lhe forças para menosprezar a idiotia da sociedade.

O mal-estar da civilização em Virginia Woolf

Freud, em seu clássico livro[5] diz:

Nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não o permite.

O que ele quer dizer é que o mal-estar que se manifesta na esfera da cultura ou da civilização – Freud nunca distinguiu exatamente as duas – se traduz por uma busca infeliz e infantil da felicidade. Tal busca pelo imediatismo de um impulso instintivo é reprimida pela civilização, embasada por leis e éticas, com o objetivo de reprimir as pulsões individuais, em benefício da vida cultural coletiva. A civilização seria, portanto, tanto uma obra humana quanto um “rolo compressor” às atividades humanas. É o mal necessário sem a qual o homem seria segundo Hobbes, “Homo homini lupus”, tão perverso o homem é como indivíduo.

É possível averiguarmos esta repressão no livro de Virginia em duas perspectivas. A primeira diz respeito à luta interna a Eros (pulsão de vida) na instauração de uma oposição entre felicidade individual e a humanidade. Richard, o cumpridor em excelência dos regulamentos da “boa” conduta social, é o personagem mais recalcado e aquele que mais sofre as tensões da luta interna a Eros. Tanto Clarissa, quanto Peter e Doris Kilman encontram amparos diversos, seja na percepção sensível ocular, no saber da filosofia ou na religião, respectivamente.

A segunda corresponde à luta entre as pulsões – Eros e Thanatos – e é balizada essencialmente pela valorização da pulsão de morte na elite inglesa, em geral por Hugh e Lady Burton, como já apontamos previamente na proposta para votação da lei de deportação dos sobreviventes de guerra e nos diagnósticos dos médicos, mascarados sob a “boa moral civilizacional”. Foi por meio desta “boa moral civilizacional” que também foi possível a assimilação dos colonos no Imperialismo Ultramarino, através da dizimação da estrutura social existente por meio da imposição de leis favoráveis aos administradores locais, segundo Hannah Arendt. O mesmo discurso foi utilizado para a exploração e até na legitimação de ideologias que pudessem justificar inúmeros massacres de etnias menores ou que servissem de bode expiatório para uma determinada situação política ou econômica desfavorável, sustentando a solução final: o Holocausto na Segunda Guerra Mundial.

Renúncia e castração são para Freud os fundadores da cultura que todos inconscientemente carregam consigo. Até mesmo a culpa não escapa da trama inconsciente do sujeito, isto é, mesmo que o sujeito esteja inocente em atos, nunca será em pensamentos; será sempre culpado ao nível de seus desejos e fantasias. Como no inconsciente o pensamento opera de modo onipotente, não há consideração sobre o princípio da realidade, nem meios para discernir entre fantasia e realidade, o que transforma, quer queira ou não, o sujeito em culpado. Esta culpabilidade, decorrente do conjunto de representações pulsionais fantasiosas e reprovadas, irá acarretar fenômenos clínicos como o sentimento de culpa nutrido por Séptimus, por não ter conseguido salvar a vida do seu fiel amigo Evans. A autopunição dele ocorre ao relatar uma “falta de sensibilidade” e, também, certas halucinações pós-traumáticas ao acontecimento.

Freud diz que para sanar o problema do mal-estar da civilização é necessário sanar o mal-estar das pessoas, através do ato ético da escuta, pois o próprio discurso da felicidade prometida pela ciência e o da “falta de proporção” sustentado por William é uma grande falácia. O escopo, portanto, não está em dar a felicidade ao paciente – já que a própria infelicidade é considerada inerente ao homem na realização e concretização da vida -, mas de fazer com que ele consiga aliviar ou finalizar com o seu sofrimento. Tal prática clínica só poi possível com a terapia psicanálise, prática desconhecida provavelmente por Virginia Woolf em vida.

Conclusão

À guisa de conclusão, é importante salientar a importância do olhar e das mãos na construção do romance de Woolf. Há uma permanente ânsia em apanhar a caneta e registrar qualquer coisa do dia-a-dia. Em seu diário italiano de 1908, ela diz:

(…) Tentarei ser serva fiel, recolhendo material que possa ser útil a uma mão habilidosa posteriormente – ou seguir imagens acabadas para o olho. O fato é que eu uso um tipo de taquigrafia e faço pequenas confissões, como se desejasse benefiar meu próprio olho, ao ler depois[6].

No conto “romance não escrito” ela corrobora:

(…) a vida é o que se vê nos olhos das pessoas; a vida é o que elas aprendem e, depois que o aprenderam, jamais, embora procurem escondê-lo, deixarão de estar cientes – de quê? De que, parece, a vida é assim(…)[7]

É o olhar que mergulha no detalhe, onde dalí narrador e personagem, permeáveis um ao outro, avançam ao acaso das sensações, até voltarem ao ponto de partida e recomeçarem novamente. É como se o mundo literário de Virgínia, do mesmo modo que o mundo em que ela viveu, não conseguisse mais reconhecer no espaço da vida uma referência firme capaz de ancorar com alguma solidez os nossos sentidos, senão por meio da leitura de seus escritos, do conteúdo significativo que suas palavras pudessem remeter, amparando a inquietude dos pensamentos de Woolf; o que sabemos que não foi o suficiente, dado o seu suicídio em 1941. Restaram, a nós leitores, o legado e importância da alegria pueril do ser de Clarissa, a salvaguardar a doce e útil inutilidade dos transitórios momentos que nos escapam.

Finalizo com um excerto de Ernest Hemingway:

Depois de você ter finalizado a leitura, você irá sentir que tudo ocorreu com você e que tudo pertence a você; o bom e o mal, a êxtase, o remorso, e a tristeza, as pessoas e os lugares e como era o clima. Se você conseguir captar isto de forma que você possa dar às pessoas, então você é um escritor[8].

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Filippi Fernandes

[1] HEMINGWAY, Ernest in Old Newsman Writes: A Letter from Cuba ed. William White, 1967 : 7

[2] PROUST, Marcel in Contra Saint-Beuve. São Paulo: Iluminuras, 1988: 91-92

[3] WOOLF, Virginia in Uma casa assombrada, Ed. Nova Fronteira, 1984: 78

[4] Idem, pp. 117

[5] FREUD, Sigmund. Volume XXI da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969

[6] WOOLF, Virginia. A passionate Apprentice: The Early Journals 1897-1909,ed. Mitchell A. Leaska,pp.

384-385 in A casa de Carlyly e outros esboços, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004 p.25

[7] WOOLF, Virginia in Uma casa assombrada, Ed. Nova Fronteira, 1984: 176

[8] HEMINGWAY, Ernest in Old Newsman Writes: A Letter from Cuba ed. William White, 1967 : 7

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.