Sir Robert Filmer no Brasil – Número 124 – 08/2014 – [62-67]

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And therefore from the like things past, they expect the like things to come; and hope for good or evil luck

Thomas Hobbes, Leviathan, I, 12

Estudiosos do pensamento político inglês do século XVII, dentre as etapas que  costumam marcar intelectualmente o período, alocam em Hobbes (De Cive, 1642 e Leviathan, 1651) o ponto de inflexão mais contundente, separando-se, a partir de então, da querela da origem da legitimidade da coroa. Dentre os que estavam nesta disputa, havia quem defendesse o governo livre desde os primórdios saxões e nórdicos; outros apresentavam a conquista normanda em 1066 como o efetivo momento da criação da common law e, com ela, os costumes britânicos dos quais temos notícias até hoje. Havia ainda aqueles que alocavam na Magna Carta os direitos originais.

Não sem razão, esta discussão encontrou lugar na ilha a partir dos acontecimentos e respostas práticas e intelectuais francesas advindas da fatídica Noite de São Bartolomeu. Afinal, onde se centrava a autoridade franco-gálica era a questão que imperava do outro lado do Canal da Mancha. O modo pelo qual se conteria a expansão da sanguinolência atroz daquele massacre religioso era a pergunta que se espalhava pela Europa.

A primeira resposta inglesa viria com a interpretação da imemorialidade dos costumes, do governo limitado e da tolerância. Os códigos jurídicos foram lidos, escritos e rescritos um sem-número de vezes de modo que as autoridades políticas ficassem em seu devido lugar. Até mesmo um rei, em 1642, afirmou peremptoriamente, sob o temor da repetição da tragédia francesa, que seu reinado não era uma “Utopia of Religion and Government” (CHARLES I, 1999, p. 160), já que “King’s Authoritie, [is] declared by both Houses of Parliament” (CHARLES I, 1999, p. 162). Em suma:

There being three kindes of Government amongst men, Absolute Monarchy, Aristocracy and Democracy, and all these having their particular conveniencies and inconveniencies. The experience and wisdom of your Ancestors hath so moulded this out of a mixture of these, as to give to his Kingdom (as far as human prudence can provide) the conviniences of all three, without the inconveniencies of any one, as long as the Balance hangs even between the three Estates. (CHARLES I, 1999, p. 167)

O discurso comedido não impediu que Cromwell, sete anos depois, cortasse sua cabeça com a coroa ainda a adornar-la, marcando o início do único período republicano da história daquele país.

A solução de Hobbes era o exato oposto. Dado que o problema é a guerra civil por motivos eminentemente religiosos, basta que se eliminem as causas. Não sendo possível (talvez para sua infelicidade) eliminar a religião, que fique restrita ao mundo privado, às casas, aos templos e aos corações de cada um; sem pregações públicas, sem discursos aos quatro cantos. E cabe ao soberano, unitário e absoluto, reger o peso da espada contra qualquer um que aventar a pretensão de um refugo religioso. Sob a formatação do que se pode denominar Estado moderno, Hobbes conferiu aos sistemas morais e religiosos a impossibilidade de afetá-lo, sempre lembrando que o desrespeito a tal premissa levaria à guerra de todos contra todos. Mas Hobbes vai além e insere prudências que pretendem obliterar os mais ingênuos de caírem nas garras dos desonestos:

And tehrefore the first Founders, and Legislators of Common-wealths amongst the Gentiles, whose ends were only to keep the people in obedience, and peace, have in all places taken care; First, to imprint in their minds a beliefe, that those precepts which they gave concerning Religion, might not be thought to proceed from their own device, but from the dictates of some God. (HOBBES, 1985, p. 177)

Publicada apenas em 1680, mas escrita quarenta anos antes, a obra Patriarcha de Sir Robert Filmer tem como alvo duas questões centrais. Primeira, o homem não nasce livre, mas submetido à vontade divina e como tal, segunda, os reis são os únicos responsáveis pela manutenção da ordem. O argumento, hoje, faria rir qualquer criança em idade escolar. Deus criou o mundo e Adão, depois lhe disse que tudo que ai está lhe pertence: “Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra” (Gn 1, 26). Depois de descansar, deixou que o curso seguisse com o primeiro soberano reinando sobre tudo e todos na terra. Mas, ensina Filmer, na descendência de Adão conteria a semente dos regimes políticos. Transmitida a autoridade pelo sangue, o critério de primogenitura estender-se-ia pelos poucos milênios que a terra tinha de idade até chegar ao século XVII.

O furor causado pela publicação de 1680 reverberou de modo atônito entre as mentes mais brilhantes daquele fim de século. O rei já tinha morrido, Filmer já tinha morrido, Cromwell já tinha morrido, Hobbes já tinha morrido, a república encontrara seu ocaso, a restauração fora feita; mas havia ainda quem teimasse que a solução para as guerras religiosas era pela religião. James Tyrrell foi o primeiro a se pronunciar, apenas um ano depois, em seu Patriarcha non monarcha, contra as teimosias: “since all Government was ordained by God for the good of Mankind, that could never be of divine institution which would render all things to be so much the Princes Right” (TYRRELL, 2010, p. 6). A centralidade de seu argumento reside na negação do Jure Divino dos reis, o que implica no fato de os homens serem naturalmente livres, portanto, escolhendo o governo que lhes aprouver (TYRRELL, 2010, p. 10). Além disso, atacava o patriarcado: “As for Nimrod’s being King over his own Family by Right, and over other Families by Usurpation and Conquest, and not by Election of the People or Multitude, he [Filmer] gives us Sir Walter Rawleigh’s opinion that it was so […] but if it were true, it proves no more, than that this patriarchal Right could not long continue” (TYRRELL, 2010, p. 12). E combina este argumento com a forma de governo:

I see no reason but that these Fathers of Families may […] agree to govern all alike together; and that whoever is a Master of a distinct Family, or a single man at his own dispose […] shall have a Vote in the Government, and the major part of the Votes shall conclude all the rest, and then it will be as perfect a Democracy as ever was. (TYRRELL, 2010, p. 55)

Algernon Sidney escreveria logo depois, quase nos mesmos termos, que a origem e legitimidade de todo e qualquer poder político reside no povo. Para Sidney, deus fez os homens igualmente livres e racionais (SIDNEY, 1996, p. 9), por isso, “the nations have a right to make their own laws” (SIDNEY, 1996, p. 12), porque não são impostas por deus. Este, “having given to all men in some degree a capacity of judging what is good for themselves, he hath granted to all likewise a liberty of inventing such norms as please them best” (SIDNEY, 1996, p. 20). Portanto, o patriarcado não se justifica; menos ainda, um regime absoluto. Desse modo, as leis são a efetiva garantia da legitimidade do poder e também da manutenção da liberdade religiosa em espaços exclusivamente privados, de modo que um não contamine o outro (SIDNEY, 1996, p. 104).

John Locke, igualmente escrevendo contra Filmer, reafirma que o ser humano nasce livre e igual por natureza e o governo legítimo é unicamente pelo consentimento (LOCKE, 1993, p. 7). Repete mais uma vez que pai e rei não são a mesma coisa e torna o argumento a respeito da religião mais sofisticado. Ao invés de afirmar, com os demais, que os fundamentos religiosos não são autoridades para a determinação da política, Locke afirma que são, porém, basta que se cumpra uma única condição: a obediência a uma autoridade religiosa deve ser feita apenas mediante a revelação divina sem que ninguém seja capaz de duvidar de que se trata efetivamente de deus. Em outras palavras, deve-se, sim, obedecer a deus, ou ao seu mandatário, não apenas privadamente, mas publicamente e este determinará o curso da política se, e somente se, deus, o próprio, descer à terra disser isso a todos os ouvintes e, tendo a plateia confirmado a veracidade do autor das ordens, cumpre-as. Enquanto isso não acontecer, não há motivos para que se aceitem ordens divinas no universo político. “a way of proceeding [to warp the sacred rule of the word of God], not unusual to those, who embrace not truths, because reason and revelation offer them; but espouse tenets and parties, for ends different from truths, and then resolve at any rate to defend them” (LOCKE, 1993, p. 43).

Em comum, os três autores tinham que o pai não é autoridade política, e dividiam isso com Hobbes (1985, II, 20), mesmo que se possa amá-lo e respeitá-lo, ele não é um homem público enquanto pai. Em questões de Estado, o poder popular deve consentir em ser governado apenas na medida em se julguem legítimos os seus atos, como já havia desenhado o rei Stuart. Compartilhavam ainda da premissa de que os seres humanos nascem livres e, como tal, definem por si mesmos, por livre escolha e consciência, o governante que desejarem.

Porém, o que mais incomodava estes críticos era que Filmer e seus seguidores insistiam na sobreposição da religião à política, que as ordens de deus são feitas para a política e que os homens são simples marionetes de tais ordens. A suposição inicial é pela racionalidade humana, potência própria desses seres que lhes atribui a faculdade de discernir sobre o que é público e o que é privado e, no âmbito privado, tendem a concordar com Hobbes, é onde reside a religião. Discordam, por outro lado, da necessidade do absolutismo, preferindo, alternativamente, governos guiados por leis com instituições plurais. Num misto de moderação estatal, definição do público e do privado e liberdade de consciência, jogando para escanteio os preceitos religiosos, os críticos de Filmer conformaram as linhas mestras do Estado de direito moderno. No Estado de direito moderno não é a vontade de deus que escolhe o governante.

Já foi dito que o texto de Filmer nasceu prematuramente caduco, menos pelo seu medievalismo tacanho, que inclusive encontrava oposição nos setores dominantes católicos, e mais pela transmissão direta do poder paterno ao poder do rei. Assim como o pai tem autoridade absoluta sobre sua família (filhos e esposa) e propriedade (servos e bens), o rei o tem sobre seus súditos, dizia Filmer. E isso, completava o Sir, era a vontade de deus, já que foi ele quem inventou a família. Caso não fosse, não teria dotado Adão de poder ilimitado sobre a terra e tudo que nela vive. É perceptível que as deduções políticas extraídas disso, embora assustadoramente potentes e capazes de reviver a Noite de São Bartolomeu, não são lá muito elaboradas. O que causava mais medo a Tyrrell, Sidney e Locke era como a irracionalidade poderia se espalhar com tanta velocidade em uma época que consideravam superadas todas as autocracias fundadas em critérios religiosos. Boquiabertos, não se calaram.

Filmer atacava seus adversários – aliás, de todos os calibres – mais do que apresentava suas posições, e quando o fazia, limitava-se a transferir para a bíblia a responsabilidade do que afirmava. Poucas coisas irritavam mais Filmer do que a democracia. Esta forma de governo não tinha durabilidade, era instável, confusa e irreal em um país grande e diverso (FILMER, 2004, p. 25). Não obstante estes contratempos práticos, a essência do problema da democracia é que ela pressupõe uma pluralidade de opiniões divergentes da sua. “And I verily believe never any democratical state showed itself at first fairly to the world by any elective entrance, but they all secretly crept in by the back door of sedition and faction” (FILMER, 2004, p. 27). Ora, o modo conspiratório e violento com o qual ele julgava estar sendo tratado não era muito mais do que as regras de liberdade de expressão, em franco desenvolvimento no período, apregoavam.

Para ele, isso se refletia no fato de que a maioria não deveria governar, apenas se submeter ao que ele achava ser a lei de deus e, quando confrontado com derrotas históricas, se valia dos mais furibundos vocábulos para desqualificar os adversários. Por isso, as nações civilizadas devem seguir o patriarcado. “Most of the civillest nations in the world labour to fetch their original from some one of the sons or nephews of Noah, which were scattered abroad after the confusion of Babel” (FILMER, 2004, p. 7). Esta era a forma da família que ele próprio definia e que outros discordavam: patriarcal. “I know the politicians and civil lawyers do not well agree about the definition of a family” (FILMER, 2004, p. 16). Mas, o que importa, já que ele está do lado certo? Aos que estão do lado errado só resta o martírio eterno como vingança (FILMER, 2004, p. 28). As ameaças não paravam por ai. No discurso do medo, Filmer sempre lembrava que a divisão da nação era sempre uma possibilidade, mas claro, não dizia que era partidário de um confronto fratricida, apenas que se não lhe dessem ouvidos, a violência seria eminente (FILMER, 2004, p. 34).

Em suma, a crítica da democracia e a defesa da família como dádiva divina são os termos interdependentes do Jure Divino filmeriano. “He [Pedro] cannot mean that kings themselves are an human ordinance, since St Paul calls the supreme power the ordinance of God” (FILMER, 2004, p. 40). Isso significa que a política não é determinada pelos seres humanos, mas por uma ordem pré-estabelecida por deus no ato da criação. “And he that is so elected claims not his power as a donative from the people, but as being substituted properly by God” (FILMER, 2004, p. 11).

Trezentos e setenta e quatro anos depois dessa frase ter sido escrita, Silas Malafaia disse em entrevista à Época: Quando um mandatário assume, entendemos que é a vontade de Deus”.

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Luís Falcão

Referências bibliográficas

CHARLES I. XIX Propositions Made by Both Houses of Parliament, to the Kings Most Excellent Majestie: With His Majesties Answer Thereunto (1642). In: The Struggle for Sovereignty: Seventeenth-Century English Political Tracts. Indianapolis: Liberty Fund, 1999.

ÉPOCA. Rio de Janeiro. Editora Globo. n. 849, 7 de setembro de 2014.

FILMER, Sir Robert. Patriarcha (1680). In:___. Patriarcha and Other Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

HOBBES, Thomas. Leviathan (1651). New York: Penguin Books, 1985.

LOCKE, John. Two Treatises of Government (1689). Vermont: Everyman, 1993.

SIDNDEY, Algernon. Discourses concerning government (1683). Indianapolis: Liberty Fund, 1996.

TYRRELL, James. Patriarcha non monarcha: the patriarch unmonarch’d (1681). Indianapolis: Liberty Fund, 2010.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.