Partidos apartidários ou de mentirinha? – Número 113 – 10/2013 – [162-165]

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Desde quando profetizado o fim da história e com ela da ideologia, em sentido marxista ou não do termo, as democracias contemporâneas esbarram em dificuldades para encontrar caminhos que deságuem em efetivos partidos políticos. Da ambivalência nas percepções marxistas de partidos, do escopo que vai de Lênin a Gramsci, o debate sobre vanguarda, ou caciquismo, e partido de massas, ou oportunismo eleitoral, recai, quase sempre, na difamada ideia de que o número total de partidos formais importa. Mesmo que se concorde com a assertiva, o fato é que não existe fórmula pronta para o que seja ou com quais funções cumpram os partidos.

Se, de um lado, vemos partidos agindo em causas – como a favor do meio ambiente ou dos aposentados –, de outro, permanecem ridicularizados aqueles que insistem em qualquer dimensão programática, de frentes liberais a unificações de trabalhadores socialistas. É como se fosse imperativo da contemporaneidade a existência de interesses e paixões segmentárias, como a defesa da Amazônia e planos de reajuste da previdência, do mesmo modo que o utopismo ideológico teria perecido. Este último grupo sofre ainda mais pela crítica feita pelos intérpretes do utopismo: “a era das ideias já passou”.

Existe, contudo, um pano de fundo na crítica velada aos “interesses segmentários” e revelada aos “utopistas ideológicos”. O primeiro referir-se-ia tão somente a um conjunto de proposições que, se não afetar o espectador, não despertará suas paixões. Deixa-se assim que falem apenas para eles mesmos. O segundo diz respeito à ausência de compromisso com a nação, dos interesses gerais, do bem comum etc. Não obstante a necessária consideração de que essas coisas talvez não existam, pelo próprio objeto da Política, a alternativa posta refere-se a mecanismos e não a fins. É como se o que estivesse em jogo não fosse o resultado, mas as regras da partida. De fato, sabe-se desde há muito que a política é um jogo cujas regras são produzidas e reproduzidas durante a partida. Mas, como gosta de dizer um professor de ciência política, muitos parecem apenas torcer para o árbitro.

O imperativo deste mecanismo se passa, fundamentalmente, pela crença de que todos estão, ou moralmente deveriam estar, comprometidos com o bem comum. Como se esse caminho fosse dado a priori, mesmo que existisse. Daí, surgem propostas e, surpreendentemente, propostas partidárias. Do mesmo modo que não parece fazer sentido a existência de um partido anarquista, por motivos óbvios, também não parece coerente que uma “parte da sociedade” detenha o conhecimento do reto caminho, do summum bonum de Agostinho. Sem lançar mão das defesas das minorias de Stuart Mill – bastante argutas, por sinal – que pretendiam obliterar erradicações políticas pela plausibilidade lógica que oferecessem respostas a problemas futuros, é possível observar o cenário atual defendendo as minorias sem cair nas armadilhas convencionais.

Quando em destaque na mídia, Roberto Jefferson dizia que seu partido ainda não tinha cara de partido, por não ter unidade nacional ou programática e isso, para ele, era um problema. Agora, não, isso parece ser uma qualidade. O então prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, ao explicar seu novo partido, julgava não apenas vantajoso, mas também coerente e positivo, que a nova agremiação não compartilhasse de qualquer unidade ideológica, programática ou o que o valha. Para ele, não parecia difícil justificar um partido sem programa, isso lhe conferia um caráter “suprapartidário” e “apolítico” que poderia moldar o partido aos interesses da nação e ao bem comum, no dizer dele, evidentemente. Um partido comprometido com os interesses gerais que não dizia quais eram os interesses gerais, mas era um partido novo, afinal, o Brasil precisava reciclar o conjunto de partidos gagás quase como uma necessidade de interdição médica.

A perspectiva de que partidos podem, de fato, ser classificados como bons e ruins recai em um ensinamento hobbesiano sobre as formas de governo: bom para aquele que é a favor, ruim para os que são contra. Porque cada parte da sociedade defende o que lhe convém, desde que respeite o jogo posto, não parece que o rótulo “novo” seja distintivo importante. A coisa fica grave quando, além de novo, o partido precisa incorporar o bem maior agostiniano e precise abandonar uma estrutura caciquesca-leninista ou oportunista-gramsciniana. Do lado não marxista da história, ficam-se os pequenos, os defensores das causas ambientais ou previdenciárias. Definham todos os quixotescos toscos.

A era da maleabilidade ideológico-programática não é perigosa apenas pelas incoerências internas, na verdade, isso é o que menos importa. O que mais importa é o fato de os partidos apartidários terem legitimidade na sociedade civil. O novo partido agora proposto (prometo não chamar de “partido da Marina”) tem muitas cláusulas já acusadas de idealistas e utópicas. Algumas: proibição de mais de 16 anos de mandatos parlamentares, proibição de financiamento de empresas contrárias à sustentabilidade, coordenação nacional ao invés de presidência nacional, e segue. Talvez não sejam tão idealistas quanto a erradicação da pobreza ou o fim de qualquer seguridade social. Mas ainda não atacaram a nova instituição por ser ideologicamente comprometida com a esquerda ou a direita. O projeto do novo partido é fazer com que o árbitro ganhe a partida, com uma pitada de incrementos ambientais. Mais do mesmo? Agora, não. Agora é mais do novo, um partido assumidamente apartidário, uma rede, como eles chamam. Não surpreende que não cause qualquer preocupação nos caciques e oportunistas. No fim, a vitória continua sendo dos partidos apartidários e a política não deixa de ser um jogo aberto a seus críticos.

A mentirinha causou comoção. A conferência promovida pelo acadêmico e professor Joaquim Barbosa, em Brasília, provocou as mais fortes reações de todos os lados, sobretudo aonde os partidos mostram a que vieram: o Congresso nacional. A imprensa tratou logo de indagar o governo e a oposição sobre a matéria. Com leves particularismos, todos concordam que as declarações não contribuem para o tão alardeado “aprimoramento das instituições democráticas”.

O caso revela uma questão de fundo interessante que, mesmo que não comprove a mentirinha dos partidos, talvez os retire da esfera partidária. Na medida em que o Congresso seja reconhecido como o lócus dos partidos, segmentários ou quixotescos, o discurso que paira como consenso irrestrito faz notar a despreocupação com a dimensão partidária dos partidos. Em outras palavras, todos correm atrás do bem comum dado a priori, inclusive, o acadêmico. A solução deste não é outra coisa que não garantir a “representatividade” a partir da velha fórmula do voto distrital majoritário. (O adendo “majoritário” não foi mencionado no discurso, como se no Brasil não houvesse distrito eleitoral.) Que seja. A solução para o problema dos partidos serem de mentirinha é acabar com o que ainda existe de interesses segmentários e propostas ideológicas, isto é, aquilo que confere um mínimo denominador comum à formação de um partido. Sendo assim, também não seria exagero propor a extinção dos partidos ou de sua obrigatoriedade. Já que são de mentirinha, tornemo-los inexistentes.

Outra faceta da mesma moeda é a interpretação de que o Congresso é “inteiramente dominado pelo Executivo”, porque não teria iniciativa. Novamente, o problema dos partidos é que eles não se comportam partidariamente, o que não significa que sejam de mentirinha. Surpreende que ainda cause espanto a constatação de que os partidos queiram o poder pelo poder. Que parte dessa história não está clara?

Desde os marcadores essenciais da antiguidade greco-romana se debate a divisão de poderes e separação de funções. Do governo misto aristotélico à separação de funções em Políbio, chegando à unidade dada por Montesquieu, não sem antes dezenas de outros se posicionarem, o limite da ação de cada um dos três poderes ainda é tema de debate. Das duas, uma: ou o Congresso é ineficiente porque não tem representatividade, ou porque os partidos não se comportam como partidos. O fato de essas duas características poderem ser constatadas em nosso parlamento não significa que sejam interdependentes. Afinal, regressões não estabelecem relações causais.

A mentirinha pressupõe que exista algum lugar no universo onde os partidos sejam de verdade, mesmo que a verdade resida apenas no logos. Na responsabilização dos partidos pela fragilidade da divisão de poderes e separação de funções precisar-se-ia, como explica a nota do ministro, admitir uma “perspectiva do funcionamento ideal das instituições”. Ora, se os homens fossem anjos, não se precisaria de governos. Justamente porque não são, que a divisão dos poderes e separação das funções, tortas e distorcidas, são necessárias.

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Luís Falcão

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.