O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(João Cabral de Melo Neto, O engenheiro)
1
Três características costumam ser atribuídas à obra de João Cabral de Melo Neto, poeta pernambucano nascido em 1920: a secura, a dobra da palavra e o lirismo contido, esta como um desdobramento daquela primeira. Isso porque o elemento que corta toda sua produção poética não é outro senão a pedra; a pedra em seu estágio pétreo. Citemos dois marcos, Pedra sono (1942), livro de estreia, e A educação pela pedra (1966), como exemplos, em que o substantivo apresenta-se já prenhe de sentidos aos olhos do leitor ainda no título da obra. A pedra é o elemento na construção arquitetônica de João, uma construção devidamente medida, esquadrinhada, na sua secura, na sua dobra, no seu estado condensado. A pedra é a palavra, também seca, dobrada, condensada, um instrumento de corte, a peça ajustada de uma máquina chamada linguagem.
Tomando de sua frase “Nenhum nordestino é indiferente ao meio em que vive, em que se criou”, entendemos, se não o motivo, mas a possibilidade dele, dessa poesia se apresentar nesse estágio bruto, de lapidação mineral, bem como certos “gênios” que povoaram a vida do poeta maior (o de sua aversão à música é o mais conhecido deles). É que ninguém mais do que ele foi sertão e o som que lhe agrada o ouvido é o som do rumorejo das pedras, que é o som do deslizamento das palavras no ventre do poema. Se Guimarães Rosa certa vez afirmou que o sertão está em toda parte, em João Cabral, o sertão ocupa territórios de dentro e fora do sujeito; o sertão é uma corporeidade – sisuda e transbordante em estágio pleno de poesia. O substantivo que alimenta diretamente o fazer poético é uma pedra intermitente que se forma da aridez geográfica e humana do sertão, tornando-se também a poesia, um corpo-objeto seco, delineado, arquitetado. Isso dá forma a uma poesia cujo primor reside na objetividade – que é uma forma muito particular de engenhar o ventre poético, um ventre dobrado sobre si, o de engenhar o esqueleto do poema na maleabilidade pura da palavra. “É mineral o papel/ onde escrever/ o verso; o verso/ que é possível não fazer. // São minerais/ as flores e as plantas,/ as frutas, os bichos/ quando em estado de palavra./ É mineral/ a linha do horizonte,/ nossos nomes, essas coisas/ feitas de palavras.”
De modo que, ler João Cabral de Melo Neto é sentir por através dos poros da palavra uma aragem sem aquela piedade fajuta ou barata de outras vozes poéticas que leram o sertão; é uma poesia como o sertão, cortante – “igual ao de um relógio/ submerso em algum corpo,/ ao de um relógio vivo e também revoltoso” – profundamente cortante – “relógio que tivesse/ o gume de uma faca/ e toda a impiedade/ de lâmina azulada” –, mas um corte que não sangra, porque sangrar seria um consolo, uma saída, e poesia cabralina não nos oferece saídas ou mesmo nada que amenize a dor do corte, que alivie – “assim como uma faca/ que sem bolso ou bainha/ se transformasse em parte/ de vossa anatomia// qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno,/ habitando num corpo/ como o próprio esqueleto// […]// porque nenhum indica/ essa ausência tão ávida/ como a imagem da faca/ que só tivesse lâmina”. É como a seca no sertão: daquela que marca a terra – “nenhum melhor indica/ aquela ausência sôfrega/ que a imagem de uma faca/ reduzido à sua boca// que a imagem de uma faca/ entregue inteiramente/ à fome pelas coisas/ que nas facas se sente”. Dessa particularidade estética nada se conhece ou se pode conhecer de verdade sem ter vivido a escassez, o fatalismo, o silêncio prenhe desse rumorejar outro – a lição da pedra, a pedra ordenada, estável e muda capaz de se impor com a força e com a simplicidade, presenças que mais ensinam ao homem que o palavreado sem utilidade, a poluição do excesso de som.
A poesia de João fala das coisas com uma contenção exemplar, áspera e rude, necessariamente rude; é como uma espécie de voz monótona. Transforma o sertão engenhosamente em estética e sua matéria é o falar de seu fazer poético, mesmo quando essa presença metapoética se apresenta na própria tinta arquitetada do verso. Trata-se de um poeta que resistiu aos sentimentalismos e nunca precisou de outra linguagem que não aquela que gravita em torno de si própria.
2
Sem reduzir-se a tanto, sua poesia é antes de tudo estética; resiste em si o império da magreza necessária a fim de dar ao poema uma estabilidade, uma ponderabilidade – o poema de João respeita no seu limite as máximas poéticas propostas em Ítalo Calvino, como as de leveza-dureza: “pesado sólido/que ao fluido vence,/que sempre ao fundo/das coisas desce./[…]//Procura a ordem/desse silêncio/que imóvel fala:/silêncio puro,/[…]//de pura espécie,/voz de silêncio,/mais do que a ausência/que as vozes ferem.”
Se na poesia a linguagem é-nos apresentada em seu estágio de depuração, no poeta de O engenheiro (de 1945) é a linguagem o estágio supremo, interligada por vigas de aço vocabular capaz de resistir a aridez de si própria ou de reproduzir aquilo que tem forma bruta e seca na natureza das coisas. O concretismo da palavra e das figuras por ela evocadas têm, à medida que vão sendo apresentadas, o caráter de nos mostrar que o sentido e a própria existência do sentir deságua na materialidade. É a corporeidade da palavra, lâmina de dois gumes, o pilar de sustento, ainda assim, para o mundo.
O olhar do poeta é a aridez de seu chão, o seu estágio de constante ruir. A afirmativa não é vaga. É proveniente dos ecos de poemas como Morte e vida severina, o de maior popularidade do poeta, em que pulsa um movimento de consciência que, sobretudo, o tempo todo se pergunta o porquê de que as coisas são o que são – é fácil lembrar aqui do diálogo daquele retirante com os encomendadores do primeiro defunto com que ele topa na sua via crucis do sertão rumo à cidade grande (— E o que havia ele feito,/ irmãos das almas,/ e o que havia ele feito/ contra a tal pássara?/ — Ter um hectares de terra,/ irmão das almas,/ de pedra e areia lavada/ que cultivava./ — Mas que roças que ele tinha,/ irmãos das almas,/ que podia ele plantar/ na pedra avara?/ — Nos magros lábios de areia,/ irmão das almas,/ os intervalos das pedras,/ plantava palha./ — E era grande sua lavoura,/ irmãos das almas,/ lavoura de muitas covas,/ tão cobiçada?/ […]/ — Mais campo tem para soltar,/irmão das almas,/tem mais onde fazer voaras filhas-bala./ — Tinha somente dez quadras,/ irmão das almas,/ todas nos ombros da serra,/ nenhuma várzea./ — Mas então por que o mataram,/ irmãos das almas,/ mas então por que o mataram/ com espingarda?/ — Queria mais espalhar-se,/ irmão das almas,/ queria voar mais livre/ essa ave-bala. /— E agora o que passará,/ irmãos das almas,/ o que é que acontecerá/ contra a espingarda?). Severino que ao tempo todo se pergunta sobre a real razão dessa morte por “ave-bala” se depara com a certeza de que a sorte humana é precária. Isso claro está na ironia com que João Cabral dota, sobretudo, no desfecho desse trecho, numa inversão de ordem da culpa, que migra do matador por através da bala que “queria voar mais livre” e colocando-se no defunto que se pôs no trajeto de voo. Aliás, a grandeza dessa obra reside justamente no caráter de fatalidade a que o homem é reduzido desde que é gerado; não há Deus e nada que o livre disso, Deus aqui é coisa fútil e covarde, restando ao homem a fuga de seu desfecho trágico pelo corredor da angústia, que mais que a aspereza do espaço em que está inserido, é algo que o aniquila até reduzi-lo à palha semeada entre as pedras.
Não é à toa, pois, que João Cabral é o expoente literário que é. Construiu uma arquitetura de plena visualidade e plasticidade tátil que até hoje é mal inscrita no espaço da literatura brasileira, afinal reduzi-lo à crítica meramente sociológica, como fizeram a outros escritores da época, como Graciliano Ramos, o autor de Vidas secas, parece ser um fracasso total, assim como parece fracasso reduzi-lo ao mero esteticismo hermético, se sua estética composta da maturidade elevada do que há de mais simples no mundo do poeta – a existência. João Cabral fala, acima de tudo, da engenharia da vida, da engenharia do homem, com suas massas concretas riscadas pela lâmina do tempo e do espaço do qual emergem a vida, o homem e o poeta. (“Os vazios do homem não sentem ao nada/ do vazio qualquer: do casaco vazio,/ do da saca vazia (que não ficam de pé/ quando vazios, ou o homem com vazios);/ os vazios do homem sentem a um cheio/ de uma coisa que inchasse já inchada;/ ou ao que deve sentir, quando cheia,/ uma saca de rebites; nem têm o pulso […]// Os vazios do homem, ainda que sintam/ a uma plenitude (gora mas presença)/ contêm nadas, contêm apenas vazios:/ o que a esponja, de ar vazio,/ e dela copiam certamente a estrutura:/ toda em grutas ou em gotas de vazio;/ postas em cachos de bolha, de não-uva./ Esse cheio vazio sente ao que uma saca/ mas cheia de esponjas cheias de vazio;/ os vazios do homem ou o vazio inchado:/ ou vazio que inchou por estar vazio.”
Se se pode falar de um projeto poético em João Cabral, esse projeto se pauta na elaboração de um estudo, cujo conteúdo é poema, cuja uma das cartilha é a pedra, cuja educação se palmilha pela ordem da sensatez da palavra, esquadrinhada, desenhada a lápis, um risco na pedra; nisso parece residir sua grandeza, sem tanto, entretanto, a isso reduzir-se. “Uma educação pela pedra: por lições;/ para aprender da pedra, freqüentá-la;/ captar sua voz inenfática, impessoal/ (pela de dicção ela começa as aulas)./ A lição de moral, sua resistência fria/ ao que flui e a fluir, a ser maleada;/ a de poética, sua carnadura concreta;/ a de economia, seu adensar-se compacta:/ lições de pedra (de fora para dentro,/cartilha muda), para quem soletrá-la.// Outra educação pela pedra: no Sertão/ (de dentro para fora, e pré-didática)./ No Sertão a pedra não sabe lecionar,/ e se lecionasse não ensinaria nada;/lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/uma pedra de nascença, entranha a alma.”
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Pedro Fernandes
Referências
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único; Organização de Marly de
Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
MELO NETO, João Cabral de. Pedra do sono. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. 34 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.