A Jangada – Número 92 – 03/2013 – [23-25]

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Talvez jamais tenha sido tão apropriada a metáfora da jangada de pedra do Saramago a se despregar a partir dos Pirineus, rumando brutal na direção dos Açores. Lá se ia a península feita de embarcação. É improvável, entretanto, que a Europa mande suas betoneiras em fila para cimentar a jangada ao continente, como ocorreu no romance do escritor português. Pedro Orce, a essa altura já estaria a sentir o chão tremer. Há rumores de que no Chiado e no Castelo de São Jorge já é possível sentir trepidação similar. Mas desta vez nem Joana Carda riscou o chão, nem os cães de Cerbère ladraram, nem Joaquim Sassa atirou uma pedra pesadíssima ao mar. É de uma ilhota mediterrânea que vêm os indícios de que a jangada partirá.

Na última semana o noticiário europeu teve os olhos voltados para o Chipre, um paraíso fiscal para russos e ingleses ricos, que recorreu à ajuda dos fundos internacionais para evitar a insolvência de seus bancos e do seu sistema financeiro. Ocorreu que a ajuda pretendida pelo governo cipriota era de 17 bilhões de Euros – o que equivale ao PIB do país – e o FMI e a União Europeia se dispuseram a liberar apenas 10 bilhões de empréstimo, sugerindo que os outros sete fossem obtidos através da taxação de depósitos acima de 100 mil Euros. A Rússia, que não foi consultada acerca de tal recomendação, subiu nas tamancas, tendo em vista que são os russos que detêm a maior fatia dos depósitos em bancos cipriotas (depósitos estes que equivalem a 800% do PIB do Chipre!). À reação russa todos se esquivaram (o FMI disse que não foi ideia sua, da mesma forma alegou o fundo europeu) e o governo cipriota fincou suas âncoras em Moscou com o pires à mão e promete não sair de lá sem algum aceno russo. O presidente cipriota ameaça se demitir e há analistas que dizem que a saída da pequena ilha do Euro passa a não ser mais uma alternativa, mas uma necessidade. Empresas cipriotas já consideram a possibilidade de trazerem dinheiro do exterior em malas para pagar seus funcionários e se espera nos próximos dias uma corrida aos bancos. Até mesmo o Arcebispo da Igreja Ortodoxa do Chipre promete implorar, de olhos vermelhos, aos russos que não tirem seu dinheiro dos bancos da ilha.

Ao que parece o cão Cérbero está agora a farejar as paragens mediterrâneas, já tendo feito estragos na Grécia, na Espanha, em Portugal e na Itália. Esses quatro países são os que têm de modo mais agudo em suas agendas a duríssima tarefa de conciliar arrochos fiscais com as pressões – justas e necessárias, é preciso dizer – pela garantia de direitos. A aposta mais provável é que não será possível fechar essa equação: ou se banca a conta de fazer parte da Zona do Euro, em tempos em que o bolo murchou e a desigualdade entre os países se fez mais saliente, ou se assume o compromisso com as políticas sociais e com a agenda de direitos. Por essas e outras que a crise do Euro não é somente uma crise econômica ou financeira. Para além da deterioração fiscal, tal crise desencadeia, em toda parte, uma corrosão da política. Na Grécia, nas ruínas metafóricas e geográficas da política no ocidente, o povo foi às ruas contra o governo, resistindo aos cortes orçamentários. Por ali também se animam nacionalismos deletérios, com o partido de extrema direita tendo alcançando votação expressiva no último escrutínio. Em Portugal, o governo acabou de divulgar resultados abaixo das metas estabelecidas pela ajuda internacional e diversos setores da administração pública já sofrem com os cortes. Há protestos frequentes e o Partido Socialista, da oposição, promete para a primeira semana de abril uma moção de censura ao governo, instrumento pelo qual o Parlamento manifesta seu desacordo com o Executivo e o pressiona a renunciar (ou a demitir-se, termo mais adequado). Na Itália, as últimas eleições resultaram num cenário em que não se sabe como haverá governo. Destaque-se neste caso o êxito do comediante Beppe Grillo obtido através do discurso que se ergue contra tudo que aí está.

É comum a todos estes casos a desconfiança e o descrédito dos governos diante da população. Mas só isso não define o que aqui está sendo chamado de corrosão da política. A crítica e a desconfiança dos cidadãos em relação aos governos, afinal, pode ser um sintoma de vigor político e não de corrosão. A ausência de horizontes, entretanto, é corrosiva. A jangada se desprega dos Pirineus, mas suas velas invisíveis parecem não saber contra quais Açores se projetarem. Os países europeus mais afetados pela crise parecem não saber para onde ir, só sabem o que têm a perder. O problema tampouco está nas incertezas de um mar bravio, mas na certeza de que não há nada diante do nariz. Os trabalhadores temem por seus empregos e por suas condições de sustento. As elites parecem temer que a Europa se torne cada vez mais parecida com o restante do mundo.

Diante desse cenário, há duas carências que impedem que quaisquer outros horizontes se desvelem. Em primeiro lugar, não parece haver reflexões com boa ossatura que pensem a Europa para fora de seus próprios termos, ou seja, que a reflita em relação com o restante do mundo, que incorpore experiências de outras bandas do globo. Pelo menos não parece haver discursos desse tipo que sejam encampados por quaisquer forças políticas de relevo. O rosto que mira, à proa da jangada, parece refém de um olhar míope e vacilante. Estão em falta, portanto, outras narrativas geopolíticas alternativas àquela na qual a Europa está sempre se contorcendo em torno do próprio umbigo. Em segundo lugar, não foi ainda ouvida nenhuma voz, em alto e bom som, que anuncie terra à vista em timbre democrático e cosmopolita. Só há a multidão, às ruas, a resistir e lutar por dias melhores. A França garantiu apenas uma contenção provisória dos discursos de extrema direita, mas Hollande só ganhou os holofotes internacionais para fazer a velha política na intervenção militar na África, nos conflitos do Mali: o ocidente “ensinando” aos não civilizados o que é uma república. A Alemanha segura as pontas do lençol curto e dita as regras a quem quiser caber debaixo dele. Nos países mais pobres e também mais frontalmente atingidos pela crise os governos se resignam com as contas da austeridade e dos dias em que ainda seguirão sem terem que se demitir.

Permanecendo assim as coisas como estão, haverá outros Chipres a fragilizar o dique da retórica de que o Euro (e a Europa) ficará de pé sem se repensar. O pior legado que o Velho Mundo pode obter dos tempos que seguem são os nacionalismos ultra-direitistas. Evitá-los é fundamental. Mas isso só será possível se houver retóricas políticas que operem por horizontes democráticos e cosmopolitas que se contraponham os provincianismos dos estados nacionais. O discurso de extrema direita só precisa do que já aí está: a crise e o chão a tremer sob os pés europeus. A política contra tudo o que está aí, à la Grillo, é só uma outra face da mesma moeda do extremo conservadorismo. Talvez já esteja em tempo da Europa se lembrar da descoberta do cônego Nicolau Copérnico que em 1514 já sabia que a Terra era redonda e que girava em torno do Sol. Quanto mais eurocentrismo e quanto mais os estados nacionais se ensimesmarem, pior. E Cérbero está à espreita.

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André Rodrigues

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.