Viveremos e Venceremos! Quando a razão populista visitou Caracas – Número 88 – 03/2013 – [08-18]

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Este Breviário em PDF

Quem nunca leu um livro e passou pela mágica experiência de reconhecer nele um espelho para o mundo ? O delicioso momento em que o universo irredutível, caótico e amorfo é amarrado por uma cadeia causal que o domestica e torna cristalino, simples e previsível. Que alívio sentimos nesse instante em que um conjunto infinito de significados e possibilidades se reduzem a uma explicação cabal. Infelizmente, ele dura pouco, sendo sucedido por um sentimento de torpor provocado pelo desabamento acachapante da realidade, que passa a parecer ainda mais insondável. Em seguida, voltamos a sentir, a princípio ainda com mais intensidade, a dor da ignorância, da incompreensão e da dúvida, que volta a dar o tom de nossas comezinhas reflexões.

O caráter passageiro deste episódio, todavia, não lhe retira o valor. Ao contrário, ele fica na memória para nos lembrar de nossa própria estupidez e ingenuidade. Fica na mente a suspeição de que quando as coisas parecem fazer muito sentido, é por que, provavelmente, você as está vendo de um modo errado.

Pois bem, tive um desses lindos momentos quando, após um período de clausura e intensa pesquisa bibliográfica, voltada ao hediondo e  inócuo propósito de reconciliar um objeto a uma teoria, fui acometida por uma epifania. O objeto em questão: os autodenominados ‘procesos de cambio’, ocorridos na última década do século XX, que culminaram na Venezuela, no Equador e na Bolívia,  com a promulgação de novas Constituições, respectivamente, em 1999, 2008 e 2009. Sendo nos três casos a figura dos líderes, Hugo Chávez, Rafael Correia e Evo Morales, crucial para o sucesso dos anseios de ruptura com os regimes precedentes. Dedicada ao estudo desses eventos, e de suas implicações para o conceito de democracia, eis que, ainda na clausura, me deparo com o livro A Razão Populista, de Ernesto Laclau. Dada a prévia afinidade com a reflexão schmittiana, incorporada pelo autor, o livro foi sorvido com ávido interesse.

O texto tem uma estrutura relativamente simples. Consiste em uma reformulação da reformulação, isto é, um aggiornamento politicamente correto da recuperação, operada por Carl Schmitt, da teoria hobbesiana da representação, salpicado de algum marxismo, em particular, gramsciano. Talvez tenha sido exatamente a falta de inovação, e consequente facilidade de entendimento, que tenha incentivado a escolha da obra para a abordagem dos casos escolhidos. Sem muita animação dou continuidade à pesquisa, amealhando leituras afins.

Um sobressalto, vívido e fugaz, irrompe nessa modorrenta existência intelectual-burocrática. Eis que, após abandonar o claustro e me lançar em uma epopeia de ilógicas escalas por vários países, finalmente, chego em Caracas. Sou recebida por um imenso cartaz das Forças Armadas venezuelanas, cujos atípicos dizeres determinam minha primeira impressão nessa incursão pela capital sul-americana do socialismo: Independencia y patria socialista. Viveremos y venceremos!

Na manhã seguinte, caminho pela cidade e confirmo que esta não seria uma impressão isolada. São inúmeros os cartazes de propaganda governamental e, em quase todos eles, aparece o termo socialismo sem a exótica adjetivação a respeito do “século XXI”, que acompanha a maioria das análises sobre o modelo bolivariano. A remissão ao herói da independência, ao contrário, é recorrente em diversos lugares, sobretudo no centro, onde se concentram a grande parte dos monumentos históricos de Caracas. Em geral, é ressaltada a ideia de continuidade entre o atual governo de Hugo Chávez e o projeto emancipador de Simon Bolívar. Em especial, vale mencionar a placa de inauguração do Museu Bolivariano, antigo Museu Nacional, que explicita seus objetivos de modo literal logo na entrada do edifício: “fortalecer e estimular o espírito libertário do povo venezuelano, sua consciência para a transformação social e seu apego à memória histórica que nos particulariza como nação livre e soberana”.

Em seu interior, por sua vez, encontra-se uma mostra permanente dos restos mortais do Libertador, exumados em julho de 2007, a pedido de Chávez. Esta conta com uma mórbida ata, de 1843, detalhando o estado e o tratamento dado ao cadáver de Bolívar. Há, também, duas outras exposições que se destacam. A primeira denominada: Bolívar – Raiz de Pueblos Soberanos e, a segunda, Libertários y Libertárias Nuestroamericanos – Los imprescindibles. Nesta última, aparecem enfileirados: Augustino Nicolás Sandino, Victor Jara, Sub Comandante Marcos e, até mesmo, Paulo Freire, dentre outros.

Da clássica maratona turística pela cidade, culminada pela mostra Arte e Política, do Museu de Belas Artes, sobressai a sensação de que boa parte da curadoria, e das próprias obras de arte, demonstram uma forte conotação política. Ao longo dos dias, entretanto, vou percebendo que esta é uma marcação que não se limita ao circuito cultural, invadindo o cotidiano e determinando as relações sociais em quase todos os aspectos. Vários foram os episódios que ensejaram esta sensação. Era como se a minha própria pesquisa estivesse ganhando vida.

Ainda no primeiro dia, ao comprar o jornal, escolho o mais barato – afinal, a vida intelectual-proletária não permite luxos. Além disso, tudo em Caracas é absurdamente caro, exceto o que é subsidiado pelo governo, como era o caso do periódico em questão. Prontamente, a senhora que realizava a venda responde: “já vi que é chavista”. Penso, então, que, talvez, as nefastas consequências da viagem para meu módico orçamento poderiam ser compensadas pela possibilidade de ver de perto como funciona um país radicalmente polarizado e supostamente socialista. Pois, como fui confirmando ao longo dos dias, o antagonismo, em torno da figura de Hugo Chávez e seu projeto socialista, estrutura boa parte da dinâmica social da sociedade venezuelana. Para mim, foi como se a tese de Laclau se vivificasse.

No microcosmo da Assembleia Legislativa, onde passei a maior parte do tempo, essa polarização determinava as relações entre os funcionários. De modo geral, os poucos chavistas do lugar eram excluídos das interações extraprofissionais realizadas pela maioria, composta por opositores ao governo. Mesmo quando ocupavam posições de chefia, eles não eram convidados para o chope de fim de expediente e, nem mesmo, para almoçar com os colegas. Ao observar que até o puxa-saquismo, enquanto lógica inerente aos espaços profissionais, estava suspenso, imediatamente reconheci na situação a definição schmittiana do político. Nesta um antagonismo, oriundo de qualquer esfera de valor, atinge um tal grau de intensidade que transborda e inunda contamina todas as outras. Toda a complexidade das relações entre as inúmeras camadas da complexa sociedade caraqueña, reduziam-se ao antagonismo entre chavistas e oposição.

– Aí está a razão populista deslindando modus operandi, simplificador e totalizante, me lembrava Laclau.

Em diversas ocasiões, vi nos restaurantes, em mesas distintas, grupos chavistas e oposicionistas, que, embora trabalhassem lado a lado, não almoçavam juntos. Ademais, sempre que sozinhos, aqueles que se identificavam com a oposição (ou melhor, que não se identificavam com Chávez), aproveitavam a oportunidade para confidenciar o quão prejudicial era a empreitada socialista do governo. Ou, no caso dos chavistas, o quanto eram sabotados pelos funcionários e técnicos remanescentes da ‘IV República[1]’ –  que representariam mais de 80% da folha salarial da Assembleia. No caso dos primeiros, no entanto, sobressai o grau abertamente racista e demofóbico das críticas dirigidas ao “populacho chavista”.

– É a inimizade, asseverava Carl Schmitt.

No tocante aos restaurantes, outras duas particularidades me chamaram atenção. A primeira foi (a infeliz) constatação de que poucos vendiam bebidas alcoólicas, cuja comercialização seria condicionada a uma custosa licença.  A segunda, diz respeito à clara segmentação socioeconômica. Poucos eram aqueles com preços intermediários, ou frequentados por grupos heterogêneos de pessoas. Nos mais caros, os empregados visivelmente se irritavam diante de qualquer questionamento relativo ao preço. Em alguns deles, coexistiam dois salões com decoração e preços distintos. Certa vez, diante de um questionamento acerca do motivo da separação entre os dois ambientes, não poderia ser mais significativa a resposta do garçom, que em outras situações já havia declarado sua adesão ao projeto chavista: “esse é o revolucionário, aquele é o burguês”.

O caráter monotemático da mídia local também é digno de nota. Para o bem ou, sobretudo, para o mal, a menção a Hugo Chávez é onipresente. Como no Brasil, a maioria dos veículos é de oposição, porém, se destacam pelo formato agressivo e rústico de seus programas, quase sempre em beligerante tom de denúncia. O clima é de guerra.

Senti falta do entretenimento alienante e de conversas fúteis, afinal, boa parte das pessoas com quem travei contato era politizada, quando não militante. De todo modo, visível em quase toda a cidade, está a garrafal inscrição 4 F. Em vermelho, situada no alto de um morro, ela relembra a fracassada tentativa de derrubar o então presidente Carlos Andrés Pérez, levada a cabo, em fevereiro de 1992, pelo Movimento Bolivariano Revolucionário 200, formado por um grupo de militares insatisfeitos com a política nacional e liderados pelo tenente-coronel Hugo Chávez Frias. Em Caracas, é impossível esquecer da política e de seu mais notório símbolo.

Nunca fizeram tanto sentido as teorias acerca do papel do líder na formação identitária das comunidades políticas. A “Razão Populista” pareceu traduzida em realidade empírica, corroborando a percepção – formada a partir de qualquer leitura apressada do livro de Ernesto Laclau – de que a sociedade venezuelana é o seu sujeito oculto. Este foi meu momento de epifania. Sua tese de que o líder é o elemento catalizador na formação de uma unidade política, condensando as identidades em torno de sua figura, fez-se viva no contato com os caraqueños.

Poucos conceitos são tão vagos e criticáveis como o de populismo, em geral usado como xingamento para referir-se a governos que conquistam apoio popular, mas gozam de antipatia por parte de elites nacionais e internacionais. Na maioria das vezes, ele é apropriado por seus membros, quando incapazes de elaborar reflexões mais interessantes e profícuas. O termo também é utilizado para se referir a políticas públicas e decisões tomadas com o objetivo de agradar a população, de cuja satisfação seria retirada sua legitimidade. Essa acepção é mobilizada, sobretudo, por aqueles que acreditam na existência de critérios menos precários de legitimidade, passíveis de prover uma medida correta e exata para a distinção entre o certo e o errado. Tal medida, universal e incontestável deveria guiar os líderes no momento da tomada de decisões, sendo ambos, os líderes e as decisões, reduzidos a meras formalidades. A doxofobia[2] aniquila a política na tentativa de aproximá-la quer da ciência, quer da moral.

É fundamental ressaltar que a proposta de Laclau é recompor o vínculo entre política e ética, evitando recair em uma filosofia moral. A distinção entre ética e moral é estabelecida pelo autor pela remissão ao hiato entre público e privado, cidadão e indivíduo, esculpido durante o processo de secularização e racionalização que configurariam a modernidade. Por este motivo, a investigação do autor, assim como aquela desenvolvida ao longo da pesquisa aqui mencionada, se insere no campo da filosofia política, uma vez que não se limita ao plano individual. Ambas vislumbram uma dinâmica própria da esfera política, responsável por determinar a ação coletiva e o pertencimento a uma comunidade de cidadãos. O conceito de razão populista, surge, então como hipótese explicativa de tal dinâmica.

Em seu livro, Laclau apresenta como argumento introdutório a ideia de que a animosidade para com o populismo estaria associada à rejeição da política, enquanto reino da doxa, impermeável a qualquer certeza e verdade transcendente. Por outro lado, a problemática traduz a dificuldade inerente à proposta de explicar como alguns agentes conseguiriam ‘totalizar’ o conjunto de experiências que os cercam, sendo capazes de representá-las perante os sujeitos que delas partilham. Ademais, a querela acerca do conceito e sua vagueza refletiriam a recusa da teoria política em lidar com a questão da agência, da subjetividade e da vontade, que caracterizariam o plano político, diferenciando-o do social em sua suposta efervescência criativa e espontânea.

Nessa perspectiva, a unidade política do grupo não pode ser vista como uma simples soma das demandas sociais. Para o autor, esta agregação pressupõe uma assimetria essencial entre a comunidade como um todo (o populus) e suas partes constitutivas, particularmente, os governados ou os oprimidos (a plebe). A unidade, portanto, depende de um processo de catacrese[3], na qual uma das partes identificar-se-á com o todo (LACLAU, 2005, p.24).

Uma vez que incapaz de ser apreendido per si dada a sua natureza abstrata e amorfa, Para Laclau, esse processo é essencial para que o todo (populus) se torne, primeiramente, compreensível e, depois, um sujeito político capaz de agir (povo). Em suas palavras:

é nesta contaminação da unidade do populus pela parcialidade da “plebe” que repousa a peculiaridade do povo enquanto sujeito político e ator histório. A lógica de sua construção é o que eu chamei de ‘razão populista[4].(LACLAU, 2005, p. 224 – tradução minha).

Talvez esta dificuldade em lidar com essa “razão simplificadora e imprecisa, porém intrínseca à dimensão política, seja a causa da recente atração da ciência política por temas estatísticos e econométricos e, da filosofia, por temas morais. Nesse sentido, é interessante resgatar a argumentação de Laclau de que o populismo, por ser uma manifestação fenomênica que apresenta uma lógica interna, reveladora da própria essência do político, é um objeto de estudo passível de estimular uma proximidade entre as abordagens teóricas e as análises empíricas – contribuindo para superar essa separação reducionista (e ilusória) entre ambas.

Deste modo, o populismo é entendido como forma de identificação que tem no conceito de soberania popular o seu corolário inevitável e elemento discursivamente construído. A “razão populista” seria, então, o mecanismo de constituição de uma identidade popular, por meio da afirmação de um grupo que se vê como elo frágil em uma relação de antagonismo com a ordem estabelecida. Em termos fenomênicos, a categoria é particularmente útil para dar conta de movimentos que invocam o nome do povo em uma oposição ao status quo. Este é certamente o caso do bolivarianismo, que desde seu momento seminal, advoga ser o representante das parcelas excluídas da população, insatisfeitas com a IV República.

Esta forma de conceitualizar o populismo, portanto, está estruturada em função de uma caracterização do político como dimensão marcada pelo conflito, por isso, resulta em uma noção de soberania popular que invoca seu momento constituinte, e não apenas a expressão de uma vontade geral pré-formada. E, assim como na caracterização schmittiana, esse é o momento do desenho de uma fronteira de exclusão entre dois grupos.

Porém, há aqui um elemento de singularidade. Sem pretender solucionar uma controvérsia que remete à própria origem do demos como categoria de entendimento, basta ressaltar, como o faz Finley, no clássico Democracia antiga e moderna, que o termo era versátil, com diversos significados; entre eles, o de ‘o povo como um todo’ (ou o corpo de cidadãos) e de ‘as pessoas comuns’ (as classes mais baixas). (FINLEY, 2008, p.25).

A formulação de Laclau teria como objeto uma acepção de povo que joga exatamente com essa dualidade. O populismo funciona, pois, como discurso que reduz a complexidade, inerente a qualquer sociedade – em suas inúmeras formas de opressão – à contradição entre o povo (os oprimidos), enquanto categoria que sintetizaria todas as formas de opressão, e os “outros” (os opressores), aqueles que de algum modo se beneficiam, ou partilham do status quo e desta relação de submissão. Nessa dinâmica, o antagonismo funciona como um modo de identificação que fixa um significante (o povo enquanto forma abstrata) a um conteúdo determinado (o povo como significado e realidade histórica). Essa fixação se dá sob a forma de um ato de “nomeação”, que indica (nomeia) quem são os inimigos do povo (PANIZZA, 2005, p. 3-4).

Sendo assim, a razão populista tem, sobretudo, uma função heurística. Ela simplifica o espaço político e, por meio de uma divisão simbólica, torna-o passível de representação. Provavelmente,  é por este atributo que ela torna ainda mais suscetíveis os espíritos fracos que, iludindo-se  com tamanha simplicidade, a confundem com um espelho do real, esquecendo-se de seu caráter insondável e irredutível. Não obstante, ela é ainda mais atraente por apresentar-se como um operador da vontade geral, que a constitui e permite decantar em práticas políticas determinadas. Seu modus operandi tange os planos da agência e da vontade, seduzindo aqueles que se sentem desconfortáveis com argumentos espontaneístas.

Todavia, é necessário ressaltar que, a despeito de seu magnetismo, a escolha do termo razão força-o a um esgarçamento conceitual, pois o conceito é usado em um sentido antitético a qualquer imagem de espontaneidade ou objetividade. A oposição entre ratio e voluntas torna-se turva. Neste tocante, é forte a vinculação com o léxico schmittiano, conciliado à uma linguagem (muito em moda) que invoca um conceito de agência como vetor sem conteúdo prévio. Mais precisamente, a ideia de que a intenção não se expressa pela agência, mas, ao logo dela é descoberta e revelada.

A vontade geral, por conseguinte, para estruturar-se como agente e como expressão da soberania popular, pressupõe algum elemento catalizador que a sintetize, servindo como mecanismo de identificação entre seus membros. Esse elemento pode ser uma imagem, um símbolo, uma narrativa, porém, na formulação de Laclau, é a figura da liderança que ocupa um papel central. É por meio da representação que se formam as identidades políticas, uma vez que o ato de identificação por parte do grupo tem como contrapartida um ato de representação por parte do líder. Por meio dele, o grupo deixa de ser um mero apanhado de indivíduos e passa a ser uma unidade política possuidora de uma vontade geral.

O populismo, enquanto categoria que ajuda na compreensão da ideia de representação, considerada como elemento de transcendência constitutivo das identidades populares, reconduz este tema ao seu lugar de centralidade na reflexão política. De fato, Laclau é ambicioso e confere ao seu conceito uma importância que ultrapassa a mera significação. Em seus termos: “Se a representação ilumina a estrutura interna do populismo, no entanto, podemos dizer que, inversamente, o populismo lança alguma  luz em algo que pertence à essência da representação”(LACLAU, 2005, p. 163- tradução minha).

Não obstante, a razão populista, não pode ser entendida como um atributo de um indivíduo. Ela é um modo de persuasão que reverbera sobre um sujeito coletivo, um ato performativo, cuja racionalidade (discursiva e performática) reduz a diversidade de atributos e relações sociais a uma polaridade. Tal operação implica na formação de um discurso cujos elementos precisam ser ulteriores às próprias demandas, indo além da sua facticidade, inscrevendo-as em uma dimensão de unidade ulterior a sua heterogeneidade fática. Ele é um modo de representação, enquanto mecanismo de condensação necessário à formação de uma vontade geral. Na formulação de Laclau, assim como na de Carl Schmitt, ela não existe previamente, mas é formada pelo próprio processo de representação, enquanto identidade entre representantes e representados, na qual o líder exerce um papel predominante.

A despeito de seus riscos, a razão populista explicitamente endossa a tese elitista acerca da incapacidade das massas de se autodeterminarem, ao observar na formação dos grupos sociais elementos exteriores de caráter organizacional e simbólico, em grande parte, ativados pelo narcisismo do líder[5]. Conforme esclarecido acima, a dimensão social tem um papel secundário na formação dos grupos políticos, visto que, em última instância, a identificação entre os membros se estreita a partir do amor comum ao chefe.

Ainda assim, é digna de nota a ressalva de Laclau de que a liderança não pode se estabelecer apenas com base no narcisismo do líder, pois, os membros do grupo precisam compartilhar algo, ulterior ao amor por ele. Será a partir desse elemento comum que o mecanismo da liderança se efetivará enquanto catalizador de atributos previamente disseminados, porém que só se tornam passíveis de representação por meio de uma relação de antagonismo.

No entanto, foi o componente narcisístico do populismo – e em sua caracterização como razão catalisadora de sentimentos de animosidade – que fez  minha experiência em Caracas ecoar como epifania. Afinal, este é o sentido dos apelos de Chávez, cujo discurso provê o elo entre aqueles venezuelanos que, cansados de serem plebe, ambicionaram tornar-se populus. Aliás, esse é o leitmotiv da própria Constituição da República Bolivariana da Venezuela[6], em seu propósito performático de refundar o Estado a partir de uma reafirmação do ‘povo’, sujeito sempre mutável, cujo significado passa a estar atrelado às camadas populares, em especial, àqueles sujeitos que se percebiam excluídos pelo puntofijismo[7].

Passado esse momento de epifania, voltou a ser difícil compor qualquer opinião categórica acerca da conjuntura venezuelana. Todas as denúncias relativas aos arroubos totalitários do governo são sumariamente rechaçadas por seus partidários, que sempre ressaltam, embasados em pertinente argumentação, os consistentes avanços sociais, a liberdade de expressão e a tolerância em relação às atitudes radicais, e muitas vezes golpistas, da oposição.

As considerações de Laclau sobre a possibilidade de interpretar o populismo de um modo não contraditório em relação à democracia, todavia, ainda parecem acertadas. As reservas acerca da sua não coincidência com algumas características da tradição liberal continuam, no entanto, sob crivo. Deixo a Venezuela com mais dúvidas do que quando cheguei.

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Mayra Goulart

Bibliografia:

FINLEY, M.I. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1988

LACLAU, Ernesto. La Razón Populista, Verso, London, 2005.

__________;  MOUFFE Chantal  Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. London – New York: Verso, 1985.

__________  (ed). The Making of the Political Identities. London: Verso, 1994.

__________ . The Populist Reason. London: Verso, 2005.

LISSIDINI, A.; WELP, Y.; ZOVATTO, D. (Eds.). Democracia directa  en Latinoamérica. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008. p. 13-62.

LOPEZ MAYA, Margarita et al. 1989 De Punto Fijo al Pacto Social. Desarrollo y hegemonía en Venezuela (1958-1985) (Caracas: Editorial Acta Científica Venezolana).

__________. (2002). Protesta y cultura em Venezuela – los marcos de acción colectiva en 1999. Caracas: FACES-UCV.

__________; SMILDE, David e STEPHANY, Keta. (2003), “La protesta popular venezolana entonces y ahora: ? câmbios em la política de la calle?” Revista Politeia, nº 30. Instituto de Estúdios Políticos, Universidad Central de Venezuela, pp. 157-181.

__________;y Luis E. Lander 2000[b] “La popularidad de Chávez: ¿base para un proyecto popular?”, en Cuestiones Políticas (Maracaibo) N° 24, enero-junio.

__________; (2006). “Venezuela 2001-2004: actores y estratégias en la lucha hegemônica”. In CAETANO, Gerardo. Sujetos sociales y nuevas formas de protesta em la historia reciente de América Latina. Buenos Aires: Conselho Latinoamericano de Ciências Sociales – CLACSO.

MAYORGA, Fernando (2008). “El gobierno de Evo Morales: Cambio político y transición estatal en Bolivia”. Discussion Paper 5. Quioto: CIAS. Disponível em: .

MOUFFE, Chantal. The Return of the Political. London – New York: Verso, 1993.

__________ (ed.) The Challenge of Carl Schmitt. London – New York: Verso, 1999.

__________The Democratic Paradox. London – New York: Verso, 2000.

PANIZZA, Francisco (Ed.). Populism and the Mirror of Democracy. Editorial Verso, London/New York 2005.

 


[1] Sistema jurídico-político configurado pela Constituição de 1961, que vigorou na Venezuela até 1999, quando promulgada a nova Carta.

[2] Doxa é o termo usado em grego para denominar opiniões, em oposição àquilo que é tido por verdade (aletheia).

[3] Catacrese é uma figura de linguagem que designa o emprego de uma palavra no sentido figurado por falta de um termo próprio.

[4] No original: “It is in this contamination of the universality of the populus by the partiality of the plebs that the peculiarity of the ‘people’ as a historical actor lies. The logic of its construction is what I have called ‘populist reason’.” (populista, 224)

[5] Nas palavras de Laclau: “Duas psicologias estão envolvidas de modo paralelo, e se aplicam aos dois aspectos diferentes dos vínculos sociais: enquanto o referente aos membros regulares do grupo se enquadram nas categorias da psicologia social, o narcisismo (enquanto terreno da psicologia individual) seria plenamente aplicável apenas ao líder do grupo”(reason 52-53, tradução minha). No original: “Two psychologies have evolved in a parallel way, and apply to different aspects of the social bond: while regular members of the group would fall, as far as their mutual link is concerned, under the label of social psychology, narcissism (as the terrain of individual psychology) would fully apply only to the leader of the group”(reason 52-53).

[6] Em seu preâmbulo a Carta explicita essa pretensão refundante, mas, também, a ênfase na figura simbólica do líder: “O povo da Venezuela, no exercício de seus poderes criadores e evocando a proteção de Deus, o exemplo histórico de nosso Libertador Simón Bolívar e o heroismo e sacrifício de nossos antepassados (…) com o fim supremo de refundar a República para estabelecer uma sociedade democrática, participativa e protagônica, multiétinica e pluricultural (…) no exercício de seu poder originário representado pela Assembléia Nacional Constituinte mediante o voto livre e em referendo democrático, decreta a seguinte CONSTITUIÇÃO.”No original: “El pueblo de Venezuela, en ejercicio de sus poderes creadores e invocando la protección de Dios, el ejemplo histórico de nuestro Libertador Simón Bolívar y el heroísmo y sacrificio de nuestros antepasados aborígenes (…) con el fin supremo de refundar la República para establecer una sociedad democrática, participativa y protagónica, multiétnica y pluricultural (…)en ejercicio de su poder originario representado por la Asamblea Nacional Constituyente mediante el voto libre y en referendo democrático, decreta la siguiente CONSTITUCIÓN”.

[7] O termo remete ao Pacto de Punto Fijo, firmado em 1958 entre os partidos aos Ação Democrática (AD) e Partido Social Cristão da Venezuela (COPEI) com o propósito de estabelecer um sistema de partilha e alternância de poder, que incluía o principal sindicato de trabalhadores do país, a Central Única de Trabalhadores (CTV), e a principal organização de empresários, Fedécamaras.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.