i-
Em 1345, quando Petrarca descobriu na Biblioteca Capitular de Verona um manuscrito, até então ‘perdido’, de Cícero com as obras ‘Epistulae ad Atticum, ad Quintum fratrem e ad Brutum’, sua euforia foi imensurável, mas ainda assim, apesar das palavras lhe fugirem, o poeta e humanista italiano esforçou-se para expressar a satisfação de ter encontrado tais textos em uma carta dirigida ao próprio Cícero[1].
Esse evento, longe de ser excêntrico, serve para ilustrar o desejo ardente dos humanistas renascentistas por recuperar o passado Clássico e também tentar dialogar com os grandes homens de outrora. Claro, nada disso seria possível se não houvesse ocorrido a redescoberta dos manuscritos gregos e latinos, uma boa parte deles chegada à Europa somente após os sucessivos saques à Constantinopla, quando da primeira de suas duas ‘tomadas’, em 1204, pelas mãos dos Cruzados Cristãos Romanos[2]. Assim, os humanistas italianos dos sécs. XIV e XV puderam aumentar imensamente o corpus de textos clássicos disponíveis no Ocidente: Petrarca e Poggio redescobriram cerca de metade das obras de Cícero disponíveis hoje, Boccaccio encontrou partes substanciais de Tácito, Salutati construiu uma biblioteca particular em Florença com cerca de oitocentas obras clássicas que foram disponibilizadas para o público em geral, cujas interpretações eram ajudadas por Manuel Chrysoloras de Constantinopla, que ensinava grego[3]. Conforme crescia o contato com obras em língua original, também crescia a necessidade de traduzi-las, primeiramente para o latim, a língua culta européia à época, em seguida para as línguas vernáculas. Ademais, sobre Constantinopla, vale lembrar que desde 1204, mesmo após a retomada bizantina de 1261, o Império estava completamente depauperado e, em 1453, finalmente caiu diante das hostes de Maomé II, propiciando um êxodo ainda maior de bibliotecários, sábios, estudiosos e religiosos bizantinos com destino a Veneza, principalmente mas não somente[4].
ii-
Se tentássemos escalonar ‘graus’ de recepção das filosofias helenísticas no período Moderno, poderíamos dizer que, de longe, a filosofia mais desconhecida e mais impactante redescoberta nesse período foi o ceticismo (tanto de modalidade Pirrônica quanto Acadêmica), não há sequer vestígios contundentes de leitura ou recepção do ceticismo no período Medieval, exceto o diálogo de Agostinho em três livros, ‘Contra os Acadêmicos’ e uma pouca leitura de Cícero[5]. Em segundo lugar está o Epicurismo, que não era totalmente desconhecido, tendo em vista que o poema de Lucrécio, ‘De Rerum Natura’ teve alguma, embora não muita, circulação mesmo na Idade Média européia, contudo, uma retomada efetiva de leitura de Epicuro e de sua doutrina começou a ganhar corpo somente após o Renascimento[6]. Diferentemente das outras filosofias helenísticas, o Estoicismo sempre foi lido e considerado na Idade Média, ainda assim, foi no período Renascentista que houve uma verdadeira explosão editorial de publicações de filósofos da Stoá, notadamente da fase Imperial Romana[7].
Sêneca e Epicteto causaram fascínio pela figura do sábio que domina suas paixões, mesmo (e sobretudo) entre seus adversários, a doutrina da Stoá se impôs como uma leitura obrigatória antes, no período helenístico, considerando o enorme conhecimento que Sexto Empírico, por exemplo, possuia do Estoicismo, mas também no Renascimento ou na Modernidade. Montaigne, Descartes, Leibniz e Spinoza são só alguns entre aqueles cujos debates sobre temas como a verdade, a providência ou a necessidade remontam a argumentos Estóicos de cerca de dois mil anos.
Se, de fato, a doutrina do Pórtico ganhou uma abordagem mais vigorosa nos sécs. XVI e XVII, mesmo assim, podemos rastrear um crescendum de sua influência que remonta ao já citado Petrarca, mas também a Alberti e Valla. Dessa forma, mesmo que alguns pensadores medievais já tivessem contato com Sêneca, a explosão de sua leitura ocorre após a publicação da edição de Erasmo de Rotterdam, em 1529, e do comentário do jovem Calvino de ‘De Clementia’, em 1532. Ainda há a edição de Marc-Antoine Muret, de 1585, e a grande edição de Justo Lipsio, de 1605. Quanto a Cícero, que é mais um expositor e uma fonte para o Estoicismo do que um filósofo Estóico, tem-se a edição parisiense de ‘De Finibus’, em 1537 por Petrus Johannes Olivarius, um volume de 1560 que reunia comentários de Erasmo de Rotterdam, Birck, Amerbach e Mutaranzio ao ‘De Officiis’. Em 1569, Hieronymus Wolf editou seu próprio comentário ao ‘De Officiis’ e, datando de 1581, há a tradução para o francês de ’De Natura Deorum’ de Le Fèvre. Por sua vez, traduções e edições das fontes gregas do Estoicismo começam mesmo no séc. XV com a primeira tradução latina de Epicteto por Perotti, em 1450, seguida pela tradução de Politiano, publicada em 1498, muitas outras se seguirão, notadamente a de Hieronymus Wolf e a francesa de Du Vair, em 1594, e a espanhola de Sanchez. De Marco Aurélio, Xylander edita as ‘Meditações’ em 1559. Finalmente, Diógenes Laércio aparece traduzido para o latim entre 1424 e 1453, por Traversari.
iii-
Mas, dados o vigor, a abrangência e a contundência dos temas Estóicos que ressurgiam com mais energia após os quattrocento e cinquecento, seria inocência nossa supor uma uniformidade de abordagens desses temas que, de fato, podem ser divididas em duas[8]:
a- Estoicismo como atitude moral:
A interpretação da doutrina da Stoá como atitude moral é majoritária do séc. XIV ao XVI e, assim, se pode entender o retorno dessa doutrina nesses séculos específicos como uma etapa peculiar caracterizada por um viés temático ético presente entre humanistas italianos e claramente distinto daqueles vieses dos séculos posteriores.
No contexto específico do fim do Medievo, o Estoicismo sofreu uma indistinção temática com relação às outras filosofias. Contudo, com o crescimento da consciência histórica na e da Renascença isso se inverteu, e essa filosofia revestiu-se de uma marca distintiva própria que remontava à própria Stoá helenística: um apelo à busca da verdade como soberano bem. Em franca oposição, dessa forma, ao Epicurismo e ao Aristotelismo, cujas marcas distintivas seriam, respectivamente, a busca pelo prazer e a busca pela verdade complementada pelas circunstâncias exteriores. Com isso, ressurge a querela helenística entre as três filosofias supracitadas, que chegou a retomar o debate entre defensores do Liceu ou do Pórtico sobre se as paixões deveriam ser dominadas, utilizadas ou suprimidas.
Paradigmático disso é o fato de que Petrarca, que enaltece o Estoicismo no séc. XIV, sabe distinguir perfeitamente essa filosofia das outras, conhecedor que era de Cícero, Sêneca e provavelmente Epicteto, bem como dos temas Estóicos em geral e, apesar de não ler grego, poderia contar com o auxílio de Leôncio Pilatos, um monge do sul da Itália de cultura bizantina que ajudara outrora o poeta a criar um códice latino de Homero[9].
Em seu primeiro diálogo ‘Secretum’, onde o poeta do trecento descreve-se em discussão com Agostinho que, por sua vez, evoca as mazelas humanas na perseguição da virtude, Petrarca lista as moléstias do povo: pobreza, dor, vergonha, doença e morte. Mas o filósofo de Hipona assere, citando as ‘Disputas Tusculanas’ de Cícero, que “ninguém pode tornar-se mau por causa dos males que acabam de ser mencionados”, e prossegue identificando a felicidade com a verdade, passo que Petrarca identifica como sendo uma espécie de proposta moral Estóica e que elogia, embora considere inviável na prática, dada a grandiosidade dos ideais de sabedoria e de virtude atinentes ao sábio do Pórtico.
A postura dúbia de Petrarca, que sabe identificar que a filosofia da Stoá tem uma finalidade moral valorosa e respeitável, mas que não pode ser atingida na prática, representando tão somente um norte ético, antes de ser anômala, é paradigmática e recorrente, aparecendo também em Salutati, le Pogge e Bruni, por exemplo. Dessa forma, há a admiração do Estoicismo como filosofia prática, associada à admiração dos grandes Estóicos da fase Imperial da escola: Cícero, Catão, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio[10]. Por outro lado, parece evidente quão inalacançável é seu ideal moral que, ademais, quando comparado ao cristianismo, encerra contradições desconcertantes: a verdade como soberano bem ao invés de Deus (e quiçá da fé); a rédea deveras curta do destino ao invés do livre-arbítrio; a condenação das paixões, ao passo que mesmo Cristo teve suas paixões. Assim, começam aqui a desenhar-se duas características que se tornarão predominantes na retomada do Estoicismo, qual sejam, a preterição de seu norte moral, em prol da moral cristã, e, por outro lado, o deslocamento da busca da verdade do âmbito ético para o âmbito epistemológico e físico.
b- O Estoicismo como sistema:
O séc. XVI herdou as querelas éticas quanto a possibilidade de aproximar Estoicismo e cristianismo e também a ênfase nas teorias Estóicas do conhecimento e da natureza. Quanto ao primeiro ponto, a posição de Calvino é o estalão em que, apesar dele ter persistido nas mesmas críticas já conhecidas (e que citei acima), ao comparar as filosofias helenísticas entre si, considerou a doutrina da Stoá mais próxima do cristianismo do que a de Epicuro (e parece desconsiderar os ceticismos de modalidade Acadêmica ou Pirrônica, bem como o Cinismo). Além disso, dadas as insurreições que ameaçavam a tradição Católica Romana e a cisão entre várias confissões rivais, era decisivo demarcar de qual lado as doutrinas filosóficas estariam, mesmos as antigas, verificando se elas serviam ou não como argumento pró ou contra Reforma. O Estoicismo não fugiu a regra, nesse contexto surgem os argumentos que ressaltam a origem semítica de Zenão de Cítio, as aproximações possíveis entre Paulo de Tarso e Sêneca e entre o ideal Estóico de endurecimento diante das adversidades com as provações de Jó, por exemplo, e também a postura de Calvino, tão dúbia quanto outrora fora a de Petrarca, mas em diferente sentido. Outra marca distintiva da Stoá do séc. XVI é seu ecletismo, em que pensadores que aderiam parcialmente a certos posicionamentos morais Estóicos, aderiam também a outras filosofias, assim foram Montaigne e Charron com o ceticismo e Quevedo com o Epicurismo, por exemplo.
Agora, quanto à ênfase na teoria do conhecimento, ela vem acompanhada, na verdade, por uma preferência pela física Estóica em detrimento da física aristotélica quase oficial. Desse modo, Pena, Paracelso ou Giordano Bruno parecem aderir à física da Stoá ao repudiarem a física do Peripatos, em seguida, todo um aparato Cosmológico Estóico parece ser ressurgido a partir de seus pressupostos físicos iniciais, para os quais evocar-se-ia a peculiar Epistemologia do Pórtico como método para o conhecimento.
Para Paracelso, por exemplo, todo o Cosmos é corpóreo e mesmo o ar é um fluido, mais sutil que os líquidos, mas de propriedades semelhantes. O Universo é inteligível e inteligente, embora haja cadeias causais quase imperscrutáveis, tendo em vista que os corpóreos são tradicionalmente definidos como capazes de agir e sofrer ações simultaneamente, de modo que tudo é causa ativa de tudo e sofre passivamente ação de tudo. Conjuga-se, assim, sua justificativa para seu tipo de medicina, a simpatia, onde haveria objetos que mesmo ao longe poderiam operar causas em outros objetos a ele simpáticos, por estarem unidos in natura, considerando a noção fluídica da natureza, onde simples gestos poderiam reverberar ao longe conduzindo encantamentos curativos. Nesse caso, poder-se-ia conhecer as causas operadas, e também os agentes passivos e ativos, embora seu modus operandi seja incognoscível. Sem falar no onipresente tema alquímico / Estóico do fogo criativo, regenerativo, princípio da vida e do movimento, que se opõe ao fogo mundano e destrutivo[11].
Contudo, apesar da larga difusão, paradoxalmente, poucos são os autores que, como Montaigne e Petrarca, se referem explicitamente ao Estoicismo, mas o silêncio é, na verdade, deveras eloquente e demonstra uma infiltração da filosofia do Pórtico que é tão contundente quanto invisível, e que não pode ser evidenciada pelos próprios pensadores por ela influenciados, posto que não possuem o distanciamento para tal, ao invés, têm nas doutrinas internas do sistema da Stoá pressupostos inolvidáveis, e irrecusáveis[12], portanto.
iv-
Assim, de todas as filosofias antigas retomadas a partir do Renascimento, o Estoicismo foi provavelmente a mais difundida, nenhum livro secular foi mais lido pelos humanistas do que ‘De Officiis’ de Cícero, as Cartas e Diálogos de Sêneca e o manual de Epicteto, mas, mesmo assim, a filosofia da Stoá foi também a menos explícita e adequadamente conhecida. Tendo isso em vista, para classificar os sistemas que foram, conscientemente ou não, influenciados pelo Pórtico, cunhou-se mais tarde o termo ‘neo-Estoicismo’, referindo-se de modo geral às correntes de pensamento que, sequiosas, vieram a beber da fonte da Stoá, de 1500 a 1750, mas principalmente entre 1600 e 1750[13].
Não obstante, há, entre o ‘neo-Estoicismo’ e a sua matriz helenística, muitas diferenças notáveis originadas, em parte, nas dificuldades em se ler e interpretar a doutrina do Estoicismo antigo, porque ela talvez seja muito menos acessível em sua forma original do que as filosofias de Platão, Aristóteles e Epicuro. Chegaram até nós — e vale ressaltar que temos, hoje, muito mais conhecimento dessa filosofia do que se tinha na Modernidade — apenas fragmentos dos Estóicos gregos que nos oferecem tão somente vislumbres inconclusos (e por vezes incoerentes) do que poderiam ter sido a física e a lógica do Pórtico, além do sumário apresentado por Diógenes Laércio e a obra do eclético Cícero. Pensadores do Renascimento e da Modernidade tinham contato com um Estoicismo romano que fora responsável pelos desenvolvimentos e arremates éticos da escola, com Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio e, a despeito do grande contato que os modernos puderam ter com esse viés moral, dificilmente poderiam, por outro lado, compreender a física e a lógica da escola, partes importantes que compunham seu ideal de filosofia como sistema tripartite.
Sob Crisipo, a Stoá antiga entrou em sua fase mais sistemática, holística e formal em sua metodologia[14]. Esse aspecto sistemático foi perdido durante os sécs. XIV a XVI, na retomada da filosofia do Pórtico, só retornando no séc. XVII, com Spinoza. E é justamente na abordagem sistêmica da Stoá antiga que vemos, apesar da inviolável importância da moral para Crisipo, a submissão do alcance da excelência, que é sabedoria, ao conhecimento da natureza através de rigores lógicos e epistemológicos internos à doutrina da escola, ou seja, a Stoá crisipeana é um todo sistemático arranjado em que cada asserção serve de base para uma outra, sem perder, contudo, a finalidade moral[15].
Embora o Estoicismo nunca tenha tido o rigor geométrico da filosofia de Spinoza, suas ambições racionalistas são similares. Nenhum filósofo moderno jamais levou tão a sério os clamores Estóicos de uma completa coerência sistêmica quanto a concepções filosóficas como o vitalismo e racionalidade de um mundo causalmente determinado por um Deus providente e completamente imanente, por exemplo. Assim, enfatizo, se por um lado houve, do séc. XIV ao XVI, o predomínio de uma interpretação ética da filosofia do Pórtico, onde se percebia e reconhecia o valor dos ditames morais da escola, por outro lado, houve também a percepção de suas discrepâncias quando comparada com o cristianismo que a sobrepujou, em parte acentuando uma assimilação das doutrinas da Stoá que já havia ocorrido no passado, com Fílon de Alexandria e Agostinho, por exemplo. Como alternativa à assimilação, a última esperança do Estoicismo no período Moderno foi tornar-se proveitoso, não mais no âmbito moral, mas nos âmbitos físico e epistemológico, passo dado por Spinoza e que serve como marco de um novo viés interpretativo onde a filosofia do Pórtico é reconsiderada em seu aparato sistêmico, mas sem a finalidade moral helenística.
v-
Foi Leibniz quem primeiro acusou Spinoza e Descartes de serem líderes do “secto dos novos Estóicos”, mas entre os especialistas em Spinoza isso não é um ponto pacífico, e alguns omitem o Estoicismo como possível influência enquanto outros admitem. Ainda assim, apesar das aporias, não é possível deixar de notar as similaridades conceituas entre os dois sistemas, o spinozano e o Estóico. Vejamos abaixo um pequeno resumo que Alexandre de Afrodisias faz da cosmologia Estóica em um fragmento que Spinoza muito provavelmente não conheceu (Cícero, De fato 191,30 Bruns = SVF 2.945. Apud: ‘LONG, A. A. Stoicism in the Philosophical Tradition: Spinoza, Lipsius, Butler. In: MILLER, J; INWOOD, B. (eds.). Hellenistic and Early Modern Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003’):
Eles [os Estóicos] dizem que este mundo é uno e contém em si todos os seres; é organizado por natureza, vivo, racional e inteligente, e possui a organização dos seres, uma organização que é eterna e progressiva de acordo com determinadas sequência e ordem. As coisas que vêm a ser primeiras são causas daquelas suas posteriores, e assim todas as coisas são ligadas umas as outras. Nada no mundo vem a ser de tal modo que haja algo que não se siga a outro algo, alternativamente e interligados como causas; tampouco pode, por outro lado, das coisas que vêm a ser subsequentemente, que sejam desconectadas das coisas que vieram a ser previamente, como se não se seguissem a elas como se fossem amarradas… Pois nada é ou vem a ser no mundo sem uma causa, porque nada é tal que seja separado e desconectado de todas as coisas precedentes. Pois nesse caso, o mundo seria dilacerado e dividido e não permaneceria uno para sempre, organizado de acordo com uma ordem e arranjo se nenhum motor causal fosse introduzido… A organização do Universo, que assim é, segue de infinito a infinito ativa e incessantemente… O próprio destino, a natureza e a razão de acordo com os quais o Universo é organizado eles chamam de deus; ele está presente em todas os seres e devires, e dessa forma, ele usa a natureza individual dos seres para a organização do Universo.
O contexto dessa passagem é o determinismo Estóico, e nela também estão incluídas quatro doutrinas Estóicas fundamentais. Primeiramente, o mundo é um sistema uno que contém todos os seres; segundo, o mundo é eterno; terceiro, o mundo possui em si deus ou natureza nele presentes através de um princípio organizador; quarto, deus ou natureza são equivalentes entre si e também à causalidade, ou destino, ou razão. As afinidades superficiais entre o excerto de Alexandre de Afrodisias e a metafísica de Spinoza são gritantes, assim como os Estóicos, Spinoza identifica deus com a natureza. Assim como eles, Spinoza toma deus como causa eterna e imanente de todas as coisas (Spinoza, ‘Ética’ I- Proposições 18–19)[16], de fato, ele insiste, como fizeram outrora os filósofos do Pórtico, em uma causalidade estrita: “Nada existe na natureza que não se siga a um efeito” (E, I-P 36). Além disso, ele faz de deus o fundamento da causalidade (E, I-P 29): “Na natureza não há nada contingente, mas tudo fora determinado à partir da necessidade da natureza divina de existir e produzir um efeito de uma maneira determinada”. Assim, Spinoza e os Estóicos parecem ter concepções bastante similares quanto aos poderes causais de Deus sive Natura, e também quanto à relação disso (deus, natureza, causalidade) com a necessidade, a dependência de tudo da natureza (ou deus), e a presença de ambos na realidade.
Ademais, apesar de haver uma concordância entre Spinoza e o Estoicismo no âmbito moral — porque para ambos o comportamento humano é inteiramente determinado — e também haver uma concepção de filosofia como ‘terapia’ — porque, apesar do determinismo forte, seria possível entender como as coisas ocorrem de acordo com a necessidade, levando à felicidade — ainda assim, Spinoza difere do Estoicismo porque ele rejeita a noção de que a razão poderia sobrepujar as emoções. De fato, para o filósofo holandês, uma emoção somente poderia ser excedida por uma outra mais forte, e a distinção chave entre as diferentes emoções residiria entre ativas e passivas, as primeiras passíveis de entendimento racional e as últimas não[17].
Tendo ilustrado desse modo como, com Spinoza, o Estoicismo, ou melhor,[18] emanações de doutrinas Estóicas que não se perderam de todo pelos meandros e encruzilhadas da história da filosofia perdem, sim, sua finalidade moral original: que a razão deve sobrepor-se às emoções para propiciar um entendimento claro da natureza que serve, por seu turno, como derradeiro critério para a ação correta, podendo, assim, conduzir à virtude, que é a felicidade. Podemos, finalmente, passar adiante portando conosco as seguintes asserções histórico-filosóficas: que o Estoicismo, em sua retomada mais vigorosa a partir do Renascimento, começa a ser apreciado como doutrina moral, mas, dadas as incoerências com o cristianismo, admite-se somente uma ou outra característica da concepção de virtude do Pórtico (a resignação e a abstinência, por exemplo), incorporadas à concepção cristã dominante de virtude. Seguindo-se à assimilação do aspecto ético que, sendo preciso, ocorre mesmo na Idade Média, tem-se a nova aurora das facetas física e cosmológica e epistemológica da Stoá, que culminam em Spinoza, a despeito das dúvidas acerca de sua recepção do Pórtico, embora haja, simultaneamente, também com Spinoza, um ocaso do Estoicismo como doutrina ética.
Tendo isso em vista, nas linhas seguintes tentaremos reaver o aspecto moral da Stoá, coisa de fato já feita e nada original. Contudo, em nossa abordagem pretenderemos demonstrar que é possível entender a ética Estóica como um conjunto de máximas, no sentido kantiano, de acordo com a interpretação de Rüdiger Bittner[19]. Ressalto que nossa aproximação de Kant é ainda incipiente e, por isso, há brechas no argumento que, mesmo indesejadas, são inevitáveis.
vi-
Bittner nos aponta que há em Kant basicamente três definições expressas de máximas:
1- “Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é, aquele que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão tivesse completo domínio sobre a faculdade de apetição) é a lei prática.” (Kant, ‘Fundamentação da Metafísica dos Costumes’ 400)[20]
2- “Máxima é o princípio subjetivo do agir, e tem de ser distinguida do princípio objetivo, a saber, da lei prática. Aquela contém a regra prática determinada pela razão de acordo com as condições do sujeito (muitas vezes de acordo com a sua ignorância ou suas inclinações), e é, portanto, o princípio de acordo com o qual o sujeito age; a lei, porém, é o princípio objetivo, válido para todo ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir, isto é, um imperativo.” (GSM 421)
3- “Proposições fundamentais práticas são proposições que contêm uma determinação universal da vontade, [determinação] que tem sob si diversas regras práticas. Essas proposições são subjetivas, ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida somente para a vontade dele; mas elas são objetivas, ou leis práticas, se a condição for conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional.” (Kant, ‘Crítica da Razão Prática’ 35)[21]
Das três definições supracitadas podem ser imediatamente depreendidas três marcas distintivas das máximas, a saber, são princípios ou proposições fundamentais, determinam o querer e o agir, e são subjetivas. Por sua vez, sua subjetividade faz com que sejam princípios que determinam tão somente o querer subjetivo de um indivíduo, e não de outro. Contudo, seguindo os passos de Bittner, que se remete a uma investigação empírica do comportamento empreendida por Lewis White Beck[22], pode haver alguém que possua como apotegma[23] “não tolerar impunemente nenhum insulto”[24], que não é uma máxima, apesar de dar uma determinação universal às ações e ser subjetiva. Porque deve haver a clareza racional da máxima, ou seja, deve-se saber que se adotou determinado princípio como uma máxima e, no exemplo supracitado da vingança, pode-se se vingar de um insulto de maneira meramente reativa e irracional. Além disso, mesmo que haja tal clareza racional, pode ser que o indivíduo insultado não queira agir constantemente de acordo com esse apotegma, desse modo, deve haver também a regularidade da ação escolhida, como se seguisse causalmente a um ato mais anterior. Contudo, não basta querer agir de determinada maneira, é preciso fazê-lo, para não se incorrer em akrasia. Da mesma forma, não basta que as ações sigam-se causalmente e regularmente à outras, esse caso poderia ser, justamente, o da observância de uma lei do querer, mas não de uma máxima, porque não fiz dessa lei uma regra. Assim, devemos conjugar o querer agir de determinada maneira com o agir de fato dessa maneira para obtermos mais uma marca distintiva das máximas. Desse modo, “não tolerar impunemente nenhum insulto” só pode ser entendido como máxima no sentido kantiano se houver adesão racional e observância regular desse princípio, em suma, se ele for tomado por máxima, porque uma “ação que quero como minha não tem nada mais que meu agir como domínio de validade”[25].
Mas, parece não ser suficiente que a máxima seja uma “regra querida pelo meu próprio querer”. Quanto a esse ponto, a objeção apresentada por Bittner recorre ao seguinte apotegma: “Eu quero jantar todas as segundas-feiras na casa dos meus amigos”, por que, feita lei geral, contradiz-se e todos jantarão na casa de todos e de ninguém ao mesmo tempo, posto que todos estariam fora. Nesse caso, esse apotegma é tão somente um propósito e distingue-se das máximas por sua especificidade, as máximas são mais gerais e pode-se esperar delas uma universalidade. Todavia, a generalidade da máxima não reside em uma magnitude de ordem cronológica (ela não tem que valer por mais tempo), e tampouco na exigência de que deva abarcar uma quantidade maior de casos.
A generalidade da máxima está no fato de que as máximas devem orientar a vida do sujeito como um todo:
Um fato bem particular e exterior pode, portanto, sob a condição de eu ter determinada preferência, ser suficiente para a mudança de um propósito. No caso da máxima, isso não é possível. Percebo, talvez, que a permanente atividade para aumentar a minha riqueza me consome muito ou me faz malquisto entre os meus semelhantes, e o desejo de ser saudável ou amado faz-me mudar de regra. Mas aqui reconheço que tipo de vida levo, que tipo de ser humano serei ou já me tornei (…) Motivos desse tipo são característicos do abandono de máximas: nenhum fato tão particular quanto o horário de exibição do filme policial pode decidir a respeito de uma máxima. Naturalmente, podem ocorrer fatos totalmente exteriores que podem me levar, em situações especiais, a ser infiel à minha máxima; mas isso não é o mesmo que abandoná-la duradouramente. Ou poder-se-ia imaginar o contra-exemplo de um homem que, depois de uma revolução socialista, abandona sua avareza porque a considera fora de lugar nesse novo mundo. Contudo, que todo seu mundo lhe seja novo significa que ele compreende também sua própria vida totalmente de outro modo, e não é o tomar conhecimento de um fato exterior particular que o determina.
Desse modo, resulta que temos uma marca distintiva de máximas em relação a meros propósitos.[26] (BITTNER, Rüdiger. Máximas. In: Studia Kantiana, n° 5, novembro de 2003.)
Por outro lado, um apotegma não será uma máxima se for muito universal, porque poderia incluir sob si diversos modos de vida distintos. “Viver de acordo com a natureza”, o exemplo citado por Bittner, não é uma máxima, por que natureza pode ser entendida, exemplificando, de um modo Estóico ou Epicurista, e então esse apotegma não poderia ser uma máxima, dada sua vagueza: “A ascensão a proposições ainda mais gerais perde de vista, ao mesmo tempo, o propósito das máximas, a saber, ser princípio determinante de uma vida”. Na medida em que se relacionam com o modo que se deseja viver uma vida, as máximas se relacionam com a experiência, e também os propósitos, embora a ‘experiência’ tenha diferentes sentidos. Assim, os propósitos se relacionam com as experiências entendidas como a experimentação de fatos exteriores, ao passo que as máximas relacionam-se com as experiências que dizem respeito à totalidade da existência do sujeito e, portanto, com a experiência de vida.
Tendo isso em vista, podemos enumerar os seguintes critérios como aqueles que definem uma máxima em sentido kantiano, segundo Bittner:
1- As máximas devem ser princípios ou proposições fundamentais.
2- Enquanto princípios, devem determinar o querer e o agir.
3- Determinam, o querer e o agir em um âmbito estritamente subjetivo.
4- Deve-se não só querer agir de uma determinada maneira, mas, de fato, deve-se agir dessa maneira.
5- Por outro lado, apesar da subjetividade da máxima, ela deve poder ser generalizada, e a sua generalidade deve estar no fato de que elas devem orientar a vida do sujeito em sua totalidade.
6- Não obstante, um apotegma não poderá ser uma máxima se for deveras universal, porque poderia incluir sob si diversos modos de vida distintos e contraditórios.
7- O corolário disso é que as máximas são alimentadas e alimentam a própria experiência de vida do sujeito.
Finalmente, viver verdadeiramente de acordo com suas máximas e submeter a compreensão de sua própria experiência de vida à luz das máximas adotadas consciente e subjetivamente é ter caráter, por sua vez, “o derradeiro fundamento subjetivo da adoção das máximas” (Kant, ‘A Religião dentro dos limites da simples razão’, p. 25, p. 20), escolhido livremente, embora não se possa saber o motivo.
Ora, tendo considerado esses aspectos das máximas, devemos agora passar à verificação da possibilidade do Estoicismo de Epicteto ser entendido como um sistema de máximas, mas antes façamos um breve interlúdio sobre a Stoá Antiga.
vii-
A fundação da filosofia do Pórtico é usualmente atribuída a Zenão de Cítio que foi, antes de escolarca da Stoá, um ávido ouvinte dos círculos socráticos, aos quais prestou sua filiação filosófica. Assim, tem-se que o primeiro professor de Zenão foi o Cínico Crates, possivelmente, o que lhe interessou no Cinismo fossem as respostas práticas e imediatas oferecidas por eles em resposta às leis da cidade, tendo em vista que eles, para quem a excelência dos sábios é auto-suficiente, rejeitavam como supérfluas todas as convenções sociais e procuravam um estilo de vida indiferente, chegando mesmo a ser escandaloso. De fato, a influência da sua doutrina ética em que a excelência (aretê) era a auto-suficiência (autarkeia)[27] é bastante profunda sobre as escolas helenísticas, contudo em nenhuma outra escola se faz sentir mais do que no Estoicismo, de modo que o primeiro e mais controverso dos vinte e sete livros atribuídos a Zenão (a República) era uma proposta de reformulação da cidade em que se deveria abolir a maior parte das instituições cívicas, como templos, moedagem, tribunais, casamentos e diferenças entre os sexos[28]. Ainda assim, Zenão nunca chegou a propor um estilo de vida inteiramente Cínico, homem reservado que era[29], ele acabou por tomar a indiferença Cínica como austeridade, ou seja, um princípio muito mais sociável do que o preconizado pelos Cínicos e que posteriormente se tornaria elogiável por sua conformidade com os costumes da cidade, enquanto que, de fato, os Cínicos se tornariam reprováveis justamente por seu inconformismo, tendo em vista que preferiam viver ‘sem cidade, sem lar, banido[s] da pátria, mendigo[s], errante[s], na busca diuturna por um pedaço de pão’[30].
Uma outra notável diferença da filosofia de Zenão com relação à dos Cínicos é que para os últimos tudo o que se situava entre a excelência e a deficiência era indiferente, ao passo que para Zenão havia bens (e males) corporais externos que poderiam ajudar (ou dificultar) a obtenção da sabedoria e da felicidade, embora não fossem por si sós fins morais (télous). A adesão de Zenão a essa concepção e a rejeição da concepção ética Cínica que alega que esses bens são indiferentes foi-lhe incutida por Pólemon e é a maior contribuição da filosofia da Academia ao seu pensamento.
Em seguida, talvez buscando uma fundamentação teórica mais forte, coisa rejeitada pelos Cínicos para quem, seguindo o modelo de Sócrates, a filosofia era estritamente uma forma de vida, Zenão rompeu com os Cínicos e passou a ouvir preleções de Estilpo de Megara. Os filósofos Megáricos também viam a filosofia como forma de vida e concordavam com a idéia de excelência como auto-suficiência embora não fossem tão radicais como os Cínicos. Além disso, os Megáricos não rejeitavam e, pelo contrário, incentivavam a necessidade de um amplo amparo teórico, notadamente acerca de técnicas discursivas para aumentar a capacidade dialética dos adeptos. E também, Estilpo possuía alguns argumentos metafísicos que o levaram a rejeitar os universais e[31], por ser um professor afamado e de vasta audiência[32], fez com esses argumentos se tornassem bastante influentes sobre a epistemologia helenística, notadamente amplificando a predileção por teorias empiristas.
A outra filiação de Zenão era à Escola Dialética, um círculo de especialização em lógica e modos de argumentação bastante popular no período helenístico. Lá, Zenão foi aluno de Diodoro Cronus que popularizou uma coleção de quebra-cabeças que se tornariam centrais na dialética helenista e, ao mesmo tempo, ele e seus pupilos desenvolveram a lógica proposicional com tanto sucesso que ela se tornou, na mão dos Estóicos, unânime como a lógica da era helenista, rapidamente eclipsando a lógica de termos do Peripatos.
Vindo de Cítio com vinte e dois anos para Atenas em torno de 312 a.C., Zenão buscara uma orientação filosófica de matriz socrática e, após cerca de doze anos perambulando pelas escolas Cínica, Megárica, Dialética e Acadêmica, passou a fazer suas próprias preleções na colunata pintada (stoá poikilé) do pórtico da cidade ateniense, onde viveu até sua morte em 262 a.C. Portanto, é a ele que se atribui a fundação da escola Estóica.
Contudo, não houve de fato a fundação de uma escola da parte de Zenão, antes, houve a formação de um grupo de pensadores em Atenas na virada do século IV para o III a.C. que veio a ser inicialmente apelidado de ‘zenonianos’. Não obstante, esse apelido reflete muito mais o predomínio de Zenão nos debates e palestras que ocorreram na stoá poikilé do que a institucionalização e a criação de estruturas formais e oficiais do Estoicismo por sua parte, sobre isso há um silêncio deveras eloqüente das fontes. Além disso, as concepções dos pensadores que compunham o círculo zenoniano eram divergentes e os debates eram mais constantes do que hoje comumente se imagina entre os membros de uma escola ou doutrina qualquer. Será, então, percorrendo as divergências que entenderemos a solidificação gradual do núcleo da filosofia Estóica que, sem graves distorções, perdurou até Sexto Empírico (cerca de cinco séculos posterior a Zenão) que apesar de não ter sido Estóico tinha uma vasta consciência dessa doutrina.
Desse modo, começamos pela querela com Herilo que
…nasceu em Cartago. Sustentava que o fim moral supremo é o conhecimento, isto é, viver sempre de maneira a fazer da vida conforme ao conhecimento o padrão em tudo e não se deixar enganar pela ignorância. Definia o conhecimento como a faculdade de acolher as apresentações, sem ceder a argumentos; às vezes Herilo dizia que não existe um fim supremo único, mas que este muda de acordo com as circunstâncias e objetivos, da mesma forma que o bronze pode tornar-se uma estátua de Alexandre, o Grande, ou de Sócrates. Distinguia ainda o fim principal do fim secundário; este último pode ser atingido pelos não-sábios e o outro somente pelo sábio. O que não é excelência nem deficiência é indiferente. (D.L. VII 165).
Em suma, Herilo não concordava com Zenão quanto ao fim moral, tendo chegado, inclusive, a fazer-lhe críticas diretas. Outro caso é o do conterrâneo e companheiro de Zenão, Perseu de Cítio, que escreveu diálogos em que os personagens principais eram ele e Zenão representados em fervorosa discussão. Todavia, a discrepância mais notável foi a que envolveu Aristón de Quíos que rejeitava todas as partes da filosofia, exceto a ética e, além disso, alinhava-se explicitamente aos Cínicos, rejeitando assim a noção de que bens corporais externos poderiam ser “vantajosos” (ou, em oposição, “desvantajosos”) de acordo com suas capacidades de dirigir as pessoas à virtude[33]. Mas, apesar das discordâncias, houve defensores aguerridos da filosofia do próprio Zenão, o mais notável deles foi seu discípulo Cleanto de Assos que, quando da morte de seu mestre, assumiu a liderança dos zenonianos, agora definitivamente Estóicos. Com a morte de Zenão e a assunção de Cleanto da liderança do movimento coincidem o rechaço e expulsão de Aristón para o Cinosarges, local de reunião dos Cínicos. Portanto, couberam a Cleanto a construção da rigidez doutrinal em torno da filosofia de Zenão e a rejeição das filosofias que lhe eram opostas quando Zenão ainda vivia.
As primeiras divergências podem, assim, nos indicar elementos da doutrina de Zenão que seriam canonizados por Cleanto:
1- Da divergência com Herilo, que dizia que não existe um fim supremo único, podemos concluir que Zenão defendia que havia tão-somente um télous moral, a aretê que, apesar de sua unicidade, poderia adquirir diferentes formas.
2- Da divergência com Aristón, que defendia a rigorosa indiferença de todos os bens corporais externos e uma única forma de aretê, e que também exaltava a ética em detrimento da lógica e da física, podemos concluir que Zenão, por sua vez, conferia uma certa importância aos bens corporais externos e que também afirmava que a excelência, fim supremo único, poderia adquirir diferentes formas. Além disso, ele pensava que a filosofia era composta por três partes, a saber, física, lógica e ética.
Da mesma forma, se nos recordarmos das filiações de Zenão e de como essas viriam a influenciá-lo — o austero Cinismo, com a noção de que o fim supremo moral é exclusivamente a excelência; o Megarismo, com a apologia ao amparo teórico e a rejeição dos universais; a Academia, com a concepção de que há bens e males corporais externos; e os Dialéticos, com os rudimentos da lógica proposicional — podemos reconstruir o funcionamento do sistema da primeira Stoá que se tornou célebre pela concepção da filosofia como tripartida e que recolocava em cena a preocupação com um tema que fora parcialmente marginalizado por Sócrates e o socratismo: a física. Ainda assim, os Estóicos persistiram concordando com os predecessores socráticos ao entenderem que as mais importantes reflexões filosóficas são as que concernem à moral, em que, por seu turno, viver bem e ser feliz é viver virtuosamente e em conformidade com a natureza, propiciando o alcance da excelência.
viii-
Voltemos a Epicteto, que foi um dos grandes nomes do Estoicismo Imperial ou romano, nascido em meados do séc. I, na região da Frígia, e morto por volta de 135 e era filho de uma escrava. Chegando a Roma, Epicteto, servo de Epafrodito (secretário imperial de Nero e Dominiciano), passou a frequentar a escola Estóica de Musônio Rufo. Tornou-se liberto nos anos seguintes, e também um professor renomado por sua vida austera. Entre 89 e 94 o Imperador Domiciano expulsou de Roma todos os filósofos, fazendo com que Epicteto reabrisse sua escola em Nicópolis, onde se tornou ainda mais famosa.
Como Sócrates, [Epicteto] nada escreveu. Seu pensamento nos chegou através de seu aluno Lúcio Flávio Arriano Xenofonte, cidadão romano de origem grega, que compilou (…) suas aulas em oito livros (As Diatribes de Epicteto) dos quais quatro chegaram até nós, e constituiu o Encheirídion, uma síntese das ideias de Epicteto[34].
Para Epicteto, seguindo uma conceituação clássica da Stoá:
Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não. São nossos encargos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa – em suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos – em suma: tudo quanto não seja ação nossa. (Epicteto, ‘Encheirídion’ I, 1-2)[35].
Assim,
Não estão sob o controle dos homens as coisas que os homens consideram bens ou males, (…) as coisas que não dependem de nós são escravas, pois não têm vontade própria nem qualquer poder sobre si mesmas, já que estão submetidas ou às leis do cosmos ou à vontade alheia.
Dessa forma, evitando a inquietação com aquilo que está fora de nosso controle, podemos empenharmo-nos naquilo que está diretamente sob nosso controle e que pode, sim, nos conduzir à felicidade:
o autoconhecimento, a crítica às suas próprias opiniões e às alheias, a conquista de uma noção adequada de piedade e a fruição racional dos prazeres, além da implementação de uma série de práticas que favoreçam a interiorização e o fortalecimento do caráter.
***
Rodrigo Pinto de Brito
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[1] Ver: ‘KIRKHAM, V; MAGGI, A. Petrarch: A Critical Guide to the Complete Works. Chicago: University Of Chicago Press, 2009’.
[2] Ver: ‘LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998’.
[3] Ver: ‘WORTH-STYLIANOU, V. Translatioand translation in the Renaissance: from Italy to France. In: The Cambridge History of Literary Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
[4] Também tiveram como destino Gênova e Florença.
[5] Ver: ‘COX, V; WARD, J. The Rhetoric of Cicero in its Medieval and Early Renaissance Commentary Tradition. Amsterdã: Brill, 2006’.
[6] Ver: ‘CRAVEN, J. B. Dr. Robert Fludd, Mersenne and Gassendi. Montana: Kessinger Publishing, 2010’; ‘DENIS, J-F. Sceptiques ou Libertins De La Première Moitié du Xviie Siècle: Gassendi, Gabriel Naudé, Gui-Patin, Lamothe-Levayer, Cyrano de Bergerac. Charleston: Nabu Press, 2010’; ‘FISCHER, S. Pierre Gassendi’s Philosophy and Science: Atomism for Empiricists. Leiden: Brill Academic Publishers, 2005’; ‘O’ KEEFE, T. Epicureanism. Berkeley: University of California Press, 2010’.
[7] Ver: ‘MOREAU, P-F. Le Stoïcism au XVIe et au XVIIe Siècle. Paris: Éditions Albin Michel S.A., 1999’.
[8] Nos apoiamos na obra de Moreau citada na nota anterior.
[9] Ver: ‘NEPOMUCENO, L. A. Petrarca e o Humanismo. São Paulo: EDUSC, 2008’.
[10] Ver: ‘SELLARS, J. Stoicism. Berkeley: University of California Press, 2006’.
[11] Ver: ‘CLÉRET, N. Paracelse, l’alchimie et les stoïciens. Quelques aspects des conceptions stoïcienne et paracelsienne du feu. In: MOREAU, P-F. Le Stoïcism au XVIe et au XVIIe Siècle. Paris: Éditions Albin Michel S.A., 1999.’
[12] São os casos, por exemplo, do já citado Paracelso e também de Thomas Morus em cuja ‘Utopia’ se define virtude como uma ‘vida vivida de acordo com a natureza’, um lema Estóico.
[13] Ver: ‘LONG, A. A. Stoicism in the Philosophical Tradition: Spinoza, Lipsius, Butler. In: MILLER, J; INWOOD, B. (eds.). Hellenistic and Early Modern Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003’.
[14] Ver: ‘LAÉRCIO, Diógenes. Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres. Brasília: Editora UnB, 1987’.
[15] Ver Sexto Empírico, ‘Contra os Lógicos’ I 16-19: ‘… as abordagens daqueles que dizem que uma parte da filosofia é física, outra ética, e a outra lógica parecem ter sido mais completas. Desse grupo, Platão é, com efeito, o fundador, tendo em vista que ele engajou-se na discussão sobre muitas questões em física, muitas em ética, e não menos em lógica. Mas os mais explícitos aderentes a essa divisão são Xenócrates, os Peripatéticos e os Estóicos. Por isso eles, de maneira implausível, comparam a filosofia com um jardim coberto de frutas, de modo que a parte física pode ser ligada ao cume das árvores, a parte ética à suculência dos frutos, e a parte lógica à força dos muros. Outros dizem que é como um ovo; ora, a ética é como a gema, que algumas pessoas dizem que é o frango, a física é como a clara, que é comida para a gema, e a lógica é como a casca externa. Mas, tendo em vista que as partes da filosofia são inseparáveis umas das outras, enquanto que as plantas são consideradas distintas dos seus frutos e os muros são separados das plantas, Posidônio pensou ser mais apropriado ligar a filosofia a um animal, a parte física sendo ligada ao sangue e à carne, a parte lógica aos ossos e tendões, e a parte ética à alma’.
[16] Doravante Ética = E, os livros aparecem numerados em romanos, as proposições em P, e sua referência em algarismos arábicos.
[17] Ver: ‘SPINOZA, B. Ética. São Paulo: Editora Autêntica, 2009’.
[18] Melhor por não me fazer tomar parte em uma discussão ainda aporética sobre a recepção do Estoicismo por Spinoza, se ela houve ou não e qual a sua magnitude.
[19] Ver: ‘BITTNER, Rüdiger. Máximas. In: Studia Kantiana, n° 5, novembro de 2003’.
[20] Doravante, GSM.
[21] Doravante, KpV.
[22] ‘BECK, L. W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1960’.
[23] Uso a palavra de origem grega apotegma, apesar de ser sinônimo de máxima, para diferenciar casos em se age de acordo com máximas, que possuem certos critérios que serão descritos mais abaixo (para os quais uso a palavra ‘máxima’, em sentido kantiano), de casos em que se age de acordo com certos princípios, mas que não satisfazem os critérios de definição de ‘máximas’ (para os quais uso o vocábulo ‘apotegma’).
[24] KpV 36.
[25] ‘BITTNER, Rüdiger. Máximas. In: Studia Kantiana, n° 5, novembro de 2003’.
[26] Grifos nossos.
[27] Ver ‘Vidas e doutrinas dos filósofos’ (doravante D.L.) VI 22: ‘Conta Teofrasto em seu Megárico que certa vez Diógenes, vendo um rato correr de um lado para o outro, sem destino, sem procurar um lugar para dormir, sem medo das trevas e não querendo nada do que se considera desejável, descobriu um remédio para suas dificuldades. Segundo alguns autores ele foi o primeiro a dobrar o manto, que tinha de usar também para dormir, e carregava uma sacola onde guardava seu alimento; servia-se indiferentemente de qualquer lugar para satisfazer qualquer necessidade, para o desjejum ou para dormir, ou conversar; sendo assim, costumava dizer, apontando para o pórtico de Zeus e para a Sala de Procissões que os próprios atenienses lhe haviam proporcionado lugares onde podia viver’.
[28] Há uma compilação de todos os fragmentos de Zenão, incluindo os da República. Ver: ‘Von ARNIN, I. I Frammenti degli Stoici Antichi, vol. I: Zenone. Bari: Gius. Laterza & Figli, 1932.’
[29] Ver D.L. VII 3: ‘[Zenão] era muito tímido para adaptar-se ao despudor Cínico. Percebendo essa resistência e querendo superá-la, Crates deu-lhe uma panela cheia de sopa de lentilhas para levar ao longo do Cerameicôs; vendo que ele estava envergonhado e tentava esconder a panela, Crates partiu-a com um golpe de seu bastão. Zenão começou a fugir, enquanto as lentilhas escorriam de suas pernas, e Crates disse-lhe: “Por que foges, meu pequeno fenício? Nada te aconteceu de terrível”.
[30] Citação de um fragmento trágico anônimo (frag. 984, Nauck) usualmente citado pelo Cínico Diógenes, ver D.L. VI 38.
[31] Ver D.L. II 119: ‘Sendo extraordinariamente hábil nas controvérsias, ele negava a validade até dos universais, e dizia que quem afirma a existência do homem não significa os indivíduos, não se referindo a este ou àquele; de fato, porque deveria significar um homem mais que outro? Logo, não quer dizer este homem individualmente. Da mesma forma, “verdura” não é esta verdura em particular, pois a verdura já existia há dez mil anos; logo, “isto” não é verdura’.
[32] Ver D.L. II 113: ‘Pela inventividade em relação a argumentos e pela capacidade sofística [Estilpo] sobrepujou a tal ponto os outros filósofos que quase toda a Hélade tinha os olhos postos nele e aderiu à Escola Megárica. Sobre ele Fílipos de Megara exprimiu-se textualmente com as seguintes palavras: “De Teofrasto Estilpo conquistou para a sua escola o teórico Metrodoro e Timogenes de Gela; de Aristóteles [filósofo Cirenáico], Clêitarcos e Símias; dos próprios dialéticos conquistou Paiônios; de Aristides, Dífilos do Bósforo, filho de Eufantos, e Mírmex, filho de Exaínetos; os dois últimos tinham vindo a ele para refutá-lo, porém tornaram-se seus prosélitos devotados”. Após o trecho citado ainda há uma longa lista de pensadores influenciados por Estilpo.
[33] Ver D.L. VII 160-161: ‘Aristón, o Calvo, nasceu em Quíos, e era chamado de sereia. Afirmava que o fim supremo é viver perfeitamente indiferente a tudo que não é excelência ou deficiência, não admitindo distinção alguma entre coisas indiferentes, pois as considerava todas iguais. Comparava o sábio a um ator talentoso que, devendo pôr a máscara de Tersites ou de Agamenon, representa os dois papéis competentemente. Aristón eliminou a física e a lógica, argumentando que a primeira está acima de nossas forças, e a segunda nada tem a ver conosco; somente a ética nos interessa.
Comparava os discursos dialéticos a teias de aranha, que embora tenham aparentemente algo de artístico, são entretanto inúteis. Não admitia uma pluralidade de formas de excelência, como Zenão, nem a existência de uma só com muitos nomes, como os Megáricos, mas considerava a excelência com relação aos modos de vida. Ensinando essa filosofia e dando suas aulas no Cinosarges, exerceu tanta influência que chegou a ser considerado fundador de escola. De qualquer modo, Miltíades e Dífilos eram chamados aristônicos. Possuía grande força de persuasão e agradava ao gosto do público em geral’.
[34] Essa citação e todas as outras abaixo são extraídas de: ‘DINUCCI, A. Introdução ao manual de Epicteto. São Cristovão, Viva Vox, 2012’.
[35] Doravante Ench.