O problema número cinco da nona Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM), em 1987, parece interessante não apenas àqueles afeitos à doutrina, como gostava de dizer um senhor do século XVII, das linhas e figuras:
Tem-se um bolo em forma de prisma triangular, cuja base está em um plano horizontal. Dois indivíduos vão dividir o bolo de acordo com a seguinte regra: o primeiro escolhe um ponto na base superior do bolo e o segundo corta o bolo por um plano vertical à sua escolha, passando, porém, por um ponto escolhido e seleciona para si um dos pedaços em que dividiu o bolo. Qual deve ser a estratégia para o primeiro e qual deve ser a fração do volume do bolo que ele espera obter? (OBM, 1987, p. 45)
Um problema de geometria plana que não necessita de nada além de Os Elementos de Euclides para ser resolvido, o que está longe de ser uma tarefa fácil. Colando do gabarito, lemos: “o problema reduz-se a determinar qual deve ser a estratégia do primeiro para obter maior fração possível da base superior do bolo” (OBM, 1987, p. 46). Apenas com a solução oficial é possível saber o objetivo de cada indivíduo.
Não importa, aqui, que a solução seja a escolha do baricentro pelo primeiro e que o segundo, necessariamente, cortará paralelamente a um dos lados. Cabe-nos destacar apenas o pressuposto do problema: os indivíduos desejam a maior parte do bolo. De fato, isso não está exposto no enunciado, os concorrentes devem supor. Admite-se que os geômetras não necessitem conhecer o comportamento humano para solucionar problemas de figuras planas, mas isso não acontece aqui. O pressuposto é necessário para resolver o problema corretamente, caso contrário, a solução seria bem mais simples. “Qual deve ser a estratégia para o primeiro e qual deve ser a fração do volume do bolo que ele espera obter?” Caso ele não queira maximizar, escolheria qualquer ponto para o bolo ser cortado e a fração do volume não poderia ser determinada.
Além do pressuposto que diz respeito a uma teoria da natureza humana, outro ponto chama a atenção. O fato de serem esses indivíduos auto-interessados implica ainda uma tensão entre os dois devido ao objeto sob disputa ser o mesmo. Assim, emerge daí uma relação conflitiva.
A metáfora do bolo para assuntos que vão além da culinária não é original dos matemáticos ou ministros do planejamento brasileiros. Outro senhor do século XVII já havia pensado em bolos, cortes, escolhas e porções, mas agora não como problema de técnica na divisão, mas de consequência política. Longe de pretender demonstrar à maneira dos geômetras, este bolo ensejou uma divisão de poderes e separações de funções, atribuindo legitimidade às instituições. Para matemáticos e pensadores políticos, solução é a mesma: a melhor maneira de maximizar o seu pedaço de bolo é tornar o resultado mais equitativo possível, buscando unidade entre indivíduo e coletivo, típico da tradição republicana.
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Um dos pontos menos destacados do pensamento republicano moderno é o tema da justiça. Quase que completamente dominado por pensadores jusnaturalistas e liberais dos mais diversos matizes e épocas, as teorias da justiça percorrem o contratualismo ao utilitarismo. Uma das identificações mais precisas no surgimento do republicanismo moderno com Maquiavel é sua neutralização de uma das virtudes cardeais ciceronianas: a justiça. A inflexão no conceito de virtude, que se transformou em virtù, transfere a justiça para o campo da moral e não da política. O legado do florentino deixará suas marcas durante a Revolução Puritana.
James Harrington, eminente republicano e seguidor de Maquiavel, parece apontar para uma retomada do conceito, mas apenas parece. Comumente definido como sendo sua teoria da justiça, Harrington explica seu argumento em The Commonwealth of Oceana (1656)[1]: o direito comum (common right) ou o interesse comum (common interest) são conhecidos até mesmo por duas meninas. Juntas, elas confeccionam um bolo, em seguida, uma diz à outra: “eu divido (divide) o bolo e você escolhe (choose) o pedaço ou você divide e eu escolho”. Embutida nessa minúscula narrativa reside a milenar ideia do governo misto acrescida da divisão dos poderes, ambos os temas eminentemente republicanos.
O pressuposto aqui, assim como no problema da OBM, é de que cada menina quer a maior parte do bolo, mas para saborear o maior pedaço, a equidade é requisito necessário. Assim, pelo interesse de cada uma, quem quer que seja, dividirá o bolo em pedaços iguais, de modo que se torna indiferente escolher uma ou outra fatia. Dividir e escolher, em linguagem republicana, significa debater (para propor) e resolver (“Dicinding and choosing, in the language of a commenwealth, is debating and resolving”. Oceana, p. 174). Diferentemente das meninas, que são indivíduos iguais, as instituições políticas devem ser desiguais, são elas o senado e assembleia. Não basta que o poder seja dividido, é necessário ainda que tenha funções distintas. Com isso, chega-se ao direito comum. Nesse ponto, a comparação com os liberais é pertinente.
Foi Benjamin Constant o primeiro a observar a dimensão inócua dos pesos e contrapesos de Montesquieu. Para ele, não é suficiente que os poderes sejam divididos, uma vez que são capazes, voluntariamente, de se unir, é necessário ainda que haja um poder que controle os poderes. Constant nomeou isso de “poder neutro”. A solução para a ineficácia da divisão dos poderes é tipicamente liberal: mais coerção, mais vigília e mais policiamento. Por fim, conclui Constant, a justiça pode ser feita pela limitação do poder por um poder maior ainda. Mas esse não é o caso de Harrington.
Não obstante rejeitar o direito natural e a teoria do contrato, formas de pensamento que desencadeiam universalidades, o direito e o interesse comuns são alcançáveis e factíveis com sua teoria. Em outros termos, aquilo que se torna aceitável para o coletivo presente nas instituições políticas não é senão o direito comum. A primeira diferença é que ele fala em direito e interesse, e não em justiça, o que em si mesmo já ratifica sua crítica à formulação metafísica hobbesiana da doutrina das linhas e figuras. Segunda diferença é que o direito não se faz pela limitação do poder por um poder maior, mas pelo controle dos poderes por eles mesmos. A fórmula que encontrou eco em Locke, Montesquieu e foi aprimorada pelos fundadores americanos é distinta em Harrington. A divisão dos poderes carrega consigo a distinção de funções para o mesmo poder, ensejando, assim, resultados equitativos. No caso, o poder legislativo não apenas produz leis, mas, antes, tem suas funções internamente separadas. O senado deve propor, a assembléia, decidir. É justamente da contraposição desses dois interessados que o direito emerge, pois legitima o poder.
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Os sistemas políticos bicamerais contemporâneos estão longe de adotar a iniciativa harringtoniana, as casas legislativas propõem e decidem as leis. A derrota do pensador inglês não invalida sua reflexão. O fato marcante, no Brasil, por exemplo, de serem os parlamentares quase sempre os que julgam seus pares, parte do princípio de que suas funções são as mesmas e de esfera distinta da divisão dos poderes. Qual seria, então, a justificativa de duas casas legislativas?
Com o surgimento do argumento de que câmara alta não serve apenas para contrapor poderes, mas, sobretudo representar os estados na federação, o senado ganhou outro papel. Contudo, permanece incapaz de atribuir justiça, direito ou mesmo legitimidade por si só aos processos políticos. A proeminência de inúmeras comissões de inquérito valida a tese liberal de mais vigília e menos conflito. Desse modo, o bolo de Harrington não chegou ao mundo institucional brasileiro.
O vitorioso Constant se faz mais presente do lado de baixo do equador. Comissões parlamentares e julgamentos nos tribunais são prova de que a justiça, acredita-se, se faz pelo aumento de coerção. O Brasil cumpre, assim, a fórmula liberal que atribui justiça e não direito às instâncias superiores de poder. Do lado oposto, se as casas legislativas tivessem mais clareza de suas funções, e particularmente da diferença entre suas atribuições, poderia ser possível uma contraposição de poderes que independesse de qualquer neutralidade superior, como em sua suposta encarnação no STF, por exemplo. Menos justiça e mais direitos significa determinantes institucionais mais precisos e, inevitavelmente, maior divisão de funções nas casas legislativas. A máxima não é harringtoniana. Parece que foi Cícero o primeiro a reconhecer pertinência à conhecida máxima romana sobre a correlação inversa entre direito e justiça: “Sumo direito, suma injustiça” (Summum ius summa iniuria. De officiis, I. X. 33). Quanto mais regras, mais necessidade de policiamento, menos atividade política e, inevitavelmente, menos cumprimento das regras. Pairando por cima da divisão e da escolha, a injustiça aumenta à medida que o direito aumenta.
Cumpre o senado brasileiro com suas originais atribuições aristocráticas ou com a representação federativa? Ou com nenhuma delas? De fato, a sobreposição da geografia distrital de deputados e senadores aprofunda a confusão das câmaras baixa e alta. A existência de suplência de senadores não apenas reduz as atribuições federativas, mas também insere um caráter plural na eleição majoritária. A câmara, por outro lado, cumpre com sua função plebéia e se contrapõe ao senado? Não se trata aqui de reinvenções institucionais, mas de revisão dos princípios que as animam.
As conhecidas relações promíscuas do setor privado com o poder instituído revelam uma verdadeira inundação de denúncias midiáticas. A constante reafirmação de que o poder legislativo é capaz de, isoladamente, resolver seus problemas é semelhante à frase mais famosa do maior absolutista dos reis. Quando Luís XIV afirmou: “L’État c’est moi”, não estava constatando um fato dado pela situação político-institucional de seu país, mas sim, buscando afirmar seu inexistente poder ilimitado. Do mesmo modo, e a conjuntura atual é mais clara do que nunca, as comissões parlamentares autoenganam-se voluntariamente na tentativa de afirmar sua inexistente capacidade de evitar a corrupção e, com isso, legitimar suas funções. Não é sem sentido, então, que os resultados finais dos julgamentos políticos no legislativo acabam do outro lado daquela famosa Praça em Brasília. Da ótica republicana, no Brasil, a justiça englobou o direito.
A ascensão do utilitarismo e seu ápice no século XIX levaram as teorias da justiça a um cálculo de perdas e ganhos onde os superlativos são vocábulos correntes entre geômetras e microeconomistas. Se os contratualistas foram historicamente superados pela emergência das ciências sociais e do positivismo, mantiveram a proeminência da justiça sobre o direito. Não é difícil encontrar intelectuais que afirmam que o liberalismo respondeu a todas as questões postas pelos republicanos. Um esforço pertinente destes últimos, em suas versões mais recentes, é colocar sua tradição histórica e analiticamente anterior aos liberais, de modo que o liberalismo se torna primogênito do republicanismo. Mesmo que esta interpretação seja correta, não invalida a afirmativa de que o liberalismo foi mais eficaz em oferecer soluções. Se, por um lado, o republicanismo não se mostrou proeminente quanto à justiça, o fez para com os direitos, isto é, foi capaz de imputar garantias legítimas aos Estados modernos. O bolo de Harrington não é uma teoria republicana da justiça (e é até mesmo questionável se existe alguma), mas uma teoria de legitimação do poder. Talvez seja o momento não de apenas rever as teorias da justiça, mas de também valorizar as teorias de legitimação dos poderes.
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Luís Alves Falcão
[1] HARRINGTON, James. The Political Works of Hames Harrington. Pocock (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 1977.