O Pequeno e o Grande na “Segunda Consideração Intempestiva” de Friedrich Nietzsche – Número 70 – 09/2012 – [220-228]

O

Este Breviário em PDF

Eu bem sabia que a nossa visão é um ato
poético do olhar.
Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta
nas margens do rio.
Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra
na beira do rio.
Depois eu quisera também que a minha palavra
fosse desaberta na margem do rio.
Eu queria mesmo que as minhas palavras
fizessem parte do chão como os lagartos
fazem.
Eu queria que minhas palavras de joelhos
no chão pudessem ouvir as origens da terra.

(Manoel de Barros, em “Menino do Mato”)

I

A epígrafe com que abro este ensaio estabelece o aspecto central da argumentação que pretendo desenvolver e que consiste em contrapor a uma voz que brada, que se funda em termos grandiloquentes, uma voz que fala baixo, que se dirige às coisas pequenas. No texto de Nietzsche a que este ensaio se dedica a palavra “intempestiva” não possui apenas o significado de “extemporânea”, ela conota também uma intensidade. O modo brusco pelo qual suas considerações se desenvolvem se opõe claramente ao racionalismo moderno, mas também se destina ao desprezo pelo medíocre e pelo pequeno. Ao estabelecer o contraste, invocando um texto cuja linguagem se aproxima da fala do homem comum, pretendo dar realce às passagens do texto de Nietzsche nas quais a fala grandiloquente expressa o desprezo pelo médio, pelo pequeno. Esse contraste possibilita que três questões sejam exploradas. Em primeiro lugar, não existe relação necessária entre o rompimento com o modo moderno (ou melhor, do século XIX) de lidar com a história e o discurso grandiloquente. Essa fala que despreza o pequeno e se dirige ao grandioso possui, em segundo lugar, consequências que, se no campo da estética são sedutoras, ou mesmo, legítimas, no que diz respeito à política são terríveis. Por último, a meta e o discurso grandioso resultam, em alguma medida, numa contradição em relação à crítica da modernidade por conter e ser movida por uma noção subjacente de progresso.

O modo de fazer e lidar com a história no século XIX, segundo a crítica de Nietzsche, estava impregnado de uma adoração pelo conhecimento que se opunha a toda atividade vital. Como se o conhecimento da história, do passado, tivesse se sobreposto à necessidade de agir no presente. No seguinte trecho Nietzsche expõe um dos pontos fundamentais de suas considerações:

Um fenômeno histórico, conhecido pura e completamente e dissolvido em um fenômeno do conhecimento, está morto para aquele que o concebeu: pois ele reconheceu nele a ilusão, a injustiça, a paixão cega e em geral todo o horizonte profano envolto na obscuridade desse fenômeno, e, ao mesmo tempo, justamente aí o poder seu poder histórico. Para o que detém o saber, este poder tornou-se impotente – mas talvez ainda não para o vivente. (2003: 17)

Ele se opõe, neste sentido, a uma história como conhecimento puro e procura definir a necessidade da história a serviço da vida. Um de seus adversários é, portanto, Hegel (como fica claro nos trechos do item 9, que vão da página 75 a 78 da edição que utilizo). Nietzsche identifica que uma das fontes do esvaziamento do significado das vidas de seus contemporâneos consiste na crença na descoberta racional do sentido histórico da vida humana. Isso inviabilizaria o presente o que faz com que Nietzsche, além de mostrar os cabimentos das diferentes formas de história (monumental, antiquaria e crítica), afirme a necessidade de um sentido a-histórico para a experiência humana.

É sabido que esta oposição ao racionalismo o ao modo pelo qual ele lida com a história teve grande fortuna crítica ao longo do século XX e seus desdobramentos ainda estão em aberto. Após as grandes contradições da modernidade que foram experimentadas e vividas de modo, ora cômico, ora trágico, ao longo do século passado pelo mundo ocidental, as reflexões que procuravam se opor ao império da razão beberam fartamente na fonte nietzscheana. Nietzsche foi inspirador de críticas que questionaram a ideia de progresso e a objetividade racionalista, sendo uma das principais referências das filosofias de inclinação pós-moderna.

Deleuze utiliza Nietzsche para defender “um certo direito ao contra-senso” (s/d: 9) e para buscar uma filosofia que se oponha ao impulso codificador do racionalismo. Nietzsche, junto com Kafka, compõe uma “máquina de guerra” que opera decodificações e estabelece algo que permanece não codificado. Essa forma de pensamento, que Deleuze chama de “pensamento nômade” se opõe ao despotismo administrativo e codificador. Ele opera, portanto, como uma “máquina de guerra” contra uma forma de estado tal qual o defendido por Hegel.

Outro discípulo de Nietzsche, Pierre Klossowski, ao tratar do eterno retorno, dá à noção de “esquecimento” um valor característico daquela necessidade de uma experiência a-histórica como forma de retirar o Ocidente (ou o povo alemão) de sua situação de convalescência histórica. Klossowski afirma, nesse sentido, que “o esquecimento recobre o eterno devir e a absorção de todas as identidades do ser” (s/d: 31).

O tema da dissolução é apropriado de Nietzsche por Gianni Vattimo quando ele abre seu livro sobre “O Fim da Modernidade” (1996). Lá estão em jogo as mesmas questões: fragilidade da racionalidade como fonte da experiência ocidental, questionamento da objetividade, percepção de que a noção de progresso, além de vazia, é perigosa, etc. Vattimo indica que a dissolução da história não significa seu fim, mas a ruptura de sua unidade e sua diluição num modo narrativo fundamentalmente retórico e, por isso ficcional (1996: XIV).

Carlos Ginzburg, em seu ensaio intitulado “Relações de Força” (2002), ao investigar as relações entra prova e retórica, apresenta um argumento que contraria a consideração de Vattimo sobre o caráter da história como narrativa ficcional, como “estória”. Ginzburg nos mostra que o fato da história possuir uma base discursiva fundamentalmente retórica não significa que seus vínculos com a verdade e com a objetividade tenham sido rompidos. Ao identificar que na retórica aristotélica a noção de prova possui um caráter central e constitutivo, Ginzburg apresenta uma tradição na qual retórica e verdade, retórica e objetividade, estão fundamentalmente vinculadas. Ele defende uma historiografia que, mesmo distante da unidade contra a qual Nietzsche e seus seguidores se confrontam e, por isso, operando em termos retóricos, não se torna idêntica à ficção.

Ao lermos um grande retórico seissentista como o padre Antônio Vieira argumentando em um contexto distinto do teatro sacro de seus sermões, como ocorreu na disputatio sobre as Lágrimas de Heráclito, em 1674, fica clara a vinculação entre as provas e o discurso retórico. O que está em jogo ali não é qual discurso é mais eloquente, mas qual o mais verdadeiro. Os equívocos relacionados à compreensão da retórica como alheia à verdade provavelmente também se relacionam com o esquecimento dos significados de termos como “artifício” e “invenção”, que no século XVII nada tinham a ver com ficção ou com algo contrário ao verdadeiro (ver Pécora e Hansen, s/d).

Da mesma maneira que Ginzburg identifica que não há relação entre retórica e ficção no contexto do questionamento da unidade e da objetividade características do racionalismo moderno, pretendo mostrar aqui que o tom grandiloquente é problemático em relação à crítica que Nietzsche leva a cabo em sua “Segunda Consideração Intempestiva”. Estou interessado não em me contrapor ao tema da dissolução, mas em questionar em qual aguarrás Nietzsche pretende dissolver a história.

Vejamos a seguinte passagem na qual Nietzsche questiona o caráter pretensioso dos usos da história como reveladora do sentido racional da vida:

Aquele que não consegue suportar a ironia busca refúgio no bem-estar de um tal cinismo; além disso, ele [Hegel] ofereceu como presente na última década uma de suas mais belas invenções, uma frase perfeita e acabada para aquele cinismo: ele chama o seu modo de viver de acordo com o seu tempo e completamente sem a reflexão de “a entrega total da personalidade ao processo do mundo”. A personalidade da pulga terrena! Se ao menos não tivéssemos de ouvir eternamente a hipérbole de todas as hipérboles, a palavra: mundo, mundo, mundo; enquanto cada um, sinceramente, só deveria falar homem, homem, homem! (2003: 76)

Ele se opõe à hipérbole pretensiosa de desvendamento do significado do processo do mundo, mas sua argumentação não abandona o tom hiperbólico, como se verifica na seguinte passagem: “Com uma centena de tais homens educados de maneira não moderna, isto é, amadurecidos e habituados ao heróico, toda a subcultura barulhenta desse tempo poderia ser eternamente silenciada” (2003: 58).

Há outro trecho em que este desprezo ao pequeno se manifesta de modo mais radical quando ele tece considerações sobre as massas:

Para preparar o caminho destas criações, continua-se escrevendo a história desde o ponto de vista das massas, para procurar nessa história aquelas leis que são deduzidas das suas necessidades, ou seja, as leis do movimento das camadas mais baixas de lama e argila da sociedade. As massas me parecem dignas de consideração apenas em três aspectos: primeiro, como cópias esmaecidas dos grandes homens, produzidas com um papel ruim e com chapas gastas; em seguida, como obstáculo aos grandes e, por fim, como ferramenta dos grandes; no resto, que o diabo e a estatística as carreguem! Como, a estatística não demonstrou que haveria leis na história?!? Leis?!? Sim, ela demonstrou o quão vulgar e repugnante é a massa na sua uniformidade: deve-se denominar o efeito das forças gravitacionais lei da estupidez, do macaquear, do amor e da fome?!? (84-85)

Seria esta a única alternativa para a crítica da história e da racionalidade cientificista? Nietzsche dispunha de antecessores filosóficos cujas mesmas críticas resultaram no abandono do discurso grandioso e resultaram num procedimento de aproximação com o cotidiano e da vida do homem comum. Montaigne e grande parte da tradição cética tiveram essa postura e se abaixaram aos assuntos rasteiros assim como o poeta que epigrafa o presente ensaio. O problema de Manoel de Barros é o mesmo de Nietzsche, reconhecer a insuficiência e abandonar a racionalidade em busca de uma forma de expressão que resulta numa experiência a-histórica. O velho Manoel de Barros escreve sempre como menino, fala pela boca da criança. Ele também borra as fronteiras entre exterior e interior e se iguala aos musgos, às margens dos rios, experimentando um esquecimento, que ele chama de abandono (“o abandono do lugar me abraçou com / força.”, “Eu sustento com palavras o silêncio do meu abandono”, “O menino que recebera o privilégio do / abandono.” etc). Tal abandono equivale à experiência que Zaratustra descreve em “O Convalescente” quando diz “Com é agradável podermos esquecer!” Mas a questão permanece: por que o menino de Manoel de Barros fala baixo e para baixo e o jovem de Nietzsche (é à juventude que sua consideração se dirige, ver p. 87) fala alto e para o alto? Se o problema da pretensão racionalista é a hipérbole, por que Nietzsche descobre outras hipérboles para se contrapor a elas? Obviamente ele bradaria e se utilizaria do tom brusco porque quer desafiar seus contemporâneos. Seu motivo mais explícito para o grito, entretanto, é o desprezo (o nojo) do medíocre, do comum. Isso indica uma postura política específica cujos deslocamentos entre os domínios da arte e da política nem sempre são problematizados por seus leitores.

O tom grandioso que atravessa todo o texto intempestivo de Nietzsche também se manifesta em passagens de seus discípulos. É difícil passar pelo seguinte trecho escrito por Klossowski sem problematizarmos, em termos políticos, a relação entre grandes e pequenos na filosofia nietzscheana:

Em suma, encontra-se aí exatamente o comentário do conceito, aliás o critério da Vontade de Potência. Toda dominação deve fornecer uma criação que converte a violência pura em prazer tanto dos que praticam violência – e isto, tanto sobre o plano moral quanto sobre o plano material, não se daria senão pelo fato de comunicar o qual Nietzsche sempre identificou com um ato violento – quanto dos que sofrem esta violência. A exploração afetiva e material qualquer que seja o plano, só se pratica no espaço de tempo necessário de se fazer explorar. A necessidade de transformar os valores resulta do fato de que as fontes morais de uma exploração estão esgotadas; portanto é preciso encontrar entre os seres um novo patamar onde o desejo de se fazer explorar sua procura o beneficie com um prazer. Uma dominação se acaba desde que ela desconheça este princípio de criar instrumentos de prazer que constitua um valor. Violência e prazer carecem de fundamento desde que a criação desapareça. A violência do absurdo não pode senão cair no grau da absurdidade na violência. (s/d: 46)

O prazer de ser explorado e violentado apresentado por Klossowski a propósito da noção de vontade de potência compartilha do caráter não problemático que a dominação do pequeno pelo grande possui em Nietzsche: os pequenos, os comuns, os medíocres são desprezíveis e têm que servir aos grandes. Nisso se encontra valor e mesmo prazer, como indica Klossowski. Não há outra maneira de traduzir este tipo de afirmação em termos políticos a não ser associá-la ao despotismo. Aquilo que em Deleuze é uma máquina de guerra contra o despotismo administrativo da codificação pode ser libertador quando figuramos no terreno da criação estética, mas quando se trata de política resulta em outra forma de despotismo.

II

A filosofia de Nietzsche tenta restituir uma força criadora à experiência moderna que fora acachapada pela racionalidade e suas codificações. É frequente, portanto, em sua filosofia a figura de um criador absoluto, uma criança, liberta das amarras do Deus credor. Em seu livro de estreia, “Origem da Tragédia”, ele identifica essa força criadora na tensão entre o apolíneo e o dionisíaco. Essa talvez seja a característica de seu pensamento que o torna mais atraente para artistas contemporâneos, cujas consciências encontram-se igualmente oprimidas pela mesma cisão entre interior e exterior contra a qual Nietzsche se debate. Outros pensadores definiram esse tema a partir de considerações como a separação radical entre o mundo público e o privado ou entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva (Simmel, 1971) [1]. Ao se opor à história, ou à “doença da história” (2003: 94-95), Nietzsche pretende criar terreno para que esse criador absoluto floresça, esse grande homem que manifestará o grande nojo do medíocre.

Mas como esse grande homem pode viver junto com os demais, grandes e pequenos? No limite, esse criador absoluto não se mede com ninguém o que tornaria impossível, inclusive, que vivesse com os outros sem dominá-los. Todas as vozes no plural, então, devem se calar. Se quisermos que a filosofia nietzscheana sobreviva à pergunta fundadora da política, (ou seja: qual a melhor maneira de vivermos juntos?), devemos aceitar que o criador absoluto domine a todos, e aceitar, portanto, que seu despotismo se justifique por sua excelência criadora. A alternativa a isso é considerarmos que Nietzsche se opõe a própria política. Se levarmos em conta a “Segunda Consideração Intempestiva”, verificamos que o próprio Nietzsche define essa tensão na medida em que afirma que “Todo filosofar moderno [a que ele se opõe] é político e policialesco, limitado à aparência erudita pelos governos, igrejas, academias, hábitos, e pela pusilanimidade dos homens.” (2003: 43-44, grifo meu).

A mesma tensão com a política se manifesta em outro aspecto do texto da “Segunda Consideração Intempestiva”: o modo não problemático a partir do qual Nietzsche extrapola suas considerações como válidas para escalas distintas como um indivíduo, um povo e uma cultura. Tal trânsito de escalas aparece em diversas passagens do texto, mas podem ser vistas de modo claro em trechos que se encontram na página 10, na qual ele trata da “força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura” [2]. Esse problema de escalas ocorre de modo análogo aos contrastes entre o domínio da estética e da política. Dizer que seus juízos implicados na liberação de uma vontade absoluta possuem igual validade para um indivíduo, para um povo e uma cultura é desprezar a pergunta sobre como vivermos juntos.

Quando temos em conta apenas o indivíduo abstrato, podemos admitir sem maiores problemas a possibilidade de que ele queira elevar à máxima potência suas capacidades criadoras. Essas potências criadoras dirigidas ao domínio das artes também não parecem problemáticas. Ninguém estaria ameaçado por ser vizinho de um artista genial, de um grande criador. E se a arte e sua potência criadora deixam de ser apenas mais um aspecto da vida e passam a ser uma dimensão totalizante? E se os governos fossem vistos como obras de arte? E se os modos de vivermos juntos permitissem uma vontade que pode se sobrepor a todas as outras? E se a vida política fosse tão somente fruto de uma vontade de poder sobre a qual nada se ergue? Certamente, nestes casos, não estaríamos dispostos a comprar todo o pacote nietzscheano. Isto porque a potência criadora também traz em seu bojo uma potência destruidora de igual tamanho.

A tensão entre as potências criativas e destrutivas está no cerne da arte. Os rascunhos, os estudos, os ensaios, a violência da mão e dos instrumentos sobre a matéria são aspectos constitutivos do fazer das artes. Não me esqueço do modo pelo qual essa tensão se expressava tão intensamente na interpretação que Denise Stoklos dera aos diários de Louise de Bourgeois na qual o estribilho “faço, desfaço, refaço” conduzia a narrativa. Stoklos interpretava esse estribilho como o coração da arte de Bourgeois e arremessava partes do cenário ao chão representando o trabalho de fazer, destruir e refazer suas esculturas. Ainda que a política seja um terreno no qual o experimento e o imponderável são fundamentais, não é tão simples admitir que ela opere de acordo com uma plasticidade característica das artes. Quando se trata da política a destruição possui um preço muito alto, tão alto quanto arriscarmos a própria ideia de humanidade. Essa questão fez com que Hannah Arendt (2008), por exemplo, consciente dos riscos presentes na tensão entre política e criação, procurasse estabelecer uma argumentação que conciliasse de modo menos plástico e menos drástico a força criadora humana, expressa e reinventada no nascimento de cada criança, e na necessidade da reflexão política.

III

Além dos problemas que acarreta para a reflexão sobre a política, a fala para os grandes em Nietzsche possui um problema interno à sua própria crítica: ele compartilha de aspectos constitutivos da noção de progresso. Ao liberar as potências mais nobres do homem, ao pretender que a cultura e o povo alemães atingissem o que é mais alto, manifestando seu nojo pelo medíocre e o comum, ele está engajado em tarefa não muito distinta daquela que Condorcet (1993) pretende levar a cabo ao traçar o esboço dos progressos do espírito humano. Nietzsche quer ficar ombro a ombro com os gregos pré-socráticos. Na comparação com culturas distintas da europeia e mesmo com algumas culturas vizinhas, Nietzsche não se distingue do amante do progresso.

A distância entre o grande e o pequeno que Nietzsche define através de uma postura seletiva traça apenas uma linha distinta do trajeto que mede essa mesma distância para os defensores da noção de progresso. Nesse traçado ele define escalas temporais distintas, mas compartilha da mesma operação de distinção. A diferença entre o grande e o pequeno, entre o alto e o baixo indica uma ideia de progresso latente em Nietzsche, mas que se expressa por uma intervenção intempestiva que busca liberar as potências mais altas de um povo.

Ao medir ombros com os gregos ele indica uma seletividade histórica na qual o grandioso – em contraste com o baixo, com o pequeno – é a meta. Em vez de ser fruto do processo cumulativo de esclarecimento, tal meta é atingida a partir das forças liberadas pelo esquecimento, mas não deixa de ser uma meta que se estende do menor para o maior. Nietzsche precisa mobilizar sua máquina de guerra contra a ideia do progresso justamente para realizar aquilo que é a meta última do progresso: alçar a humanidade ao seu ponto mais alto de onde os grandes se medem.

Na seguinte frase: “No entanto, como dissemos anteriormente, a época atual não é uma época de personalidades prontas e amadurecidas, de personalidades harmônicas, mas a época do trabalho conjunto mais útil possível.” (2003: 61-62, grifo meu), Nietzsche nos dá mais indício de que não ultrapassa totalmente o ideal iluminista do progresso ao compartilhar da própria linguagem do esclarecimento. Ao apresentar o contraste entre grandes e pequenos pela forma da comparação entre amadurecidos e imaturos, Nietzsche está um terreno francamente iluminista. Ao responder a pergunta “O que é esclarecimento?”, Kant afirma que ele consiste na saída do homem de sua menoridade (1985). Ainda que se contraponha à unidade histórica que alinha todas as experiências humanas na noção de progresso, Nietzsche mantém um fio que conecta os grandes homens e os grandes feitos e que permite seu contraste com os pequenos. É um fio que comporta a seletividade e o esquecimento, mas que indica a medida daquilo que é mais alto.

Essa forma específica do progresso se expressa pela voz grandiloquente daquele que ao condenar os pecados hiperbólicos da consciência racional moderna ergue sobre tais hipérboles figuras mais altas ainda. O incômodo diante de uma postura política de natureza deliberadamente despótica manifestado no início desse ensaio é também uma pista para a percepção de contradições que aproxima Nietzsche de seus adversários.

***
André Rodrigues

[1] Naturalmente, não há uma equivalência direta entre essas reflexões e as de Nietzsche, mas os temas se aproximam.
[2] Na página 28, ele acrescenta a essas escala a noção de “município”.

Referências bibliográficas

ARENDT, H. (2008), “Compreensão e Política (As Dificuldades da Compreensão)” in Compreender: Formação, Exílio e Totalitarismo – Ensaios. São Paulo, Companhia das Letras.
BARROS, M. (2010), Menino do Mato. São Paulo, Leya.
CONDORCET. (1993), Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas: Editora da UNICAMP.
DELEUZE, G. (s/d), “Pensamento Nômade” in Por que Nietzsche?. Rio de Janeiro, Achiamé.
GINZBURG, C. (2002), Relações de Força: História, Retórica, Prova. São Paulo Companhia das Letras.
HANSEN, J. A. & PÉCORA, A. Glossário de Categorias do SÉCULO XVII. [http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scieloOrg/php/reflinks.php?refpid=S0103-9989200700020001500006&lng=pt&pid=S0103-99892007000200015]
KANT, Immanuel. (1985), “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’?”, in Textos seletos. Petrópolis: Vozes (trad. Floriano de Sousa Fernandes).
KLOSSOWSKI, P. (s/d), “Esquecimento e Anamnésia na Experiência Vivida do Eterno Retorno do Mesmo” in Por que Nietzsche?. Rio de Janeiro, Achiamé.
______________. (s/d), “Circulus Vitiosus” in Por que Nietzsche?. Rio de Janeiro, Achiamé.
NIETZSCHE, F. (1976), A Genealogia da Moral. Lisboa, Guimarães e Companhia Editores.
_____________. (1982), Origem da Tragédia. Lisboa, Guimarães e Companhia Editores.
_____________. (2003), Segunda Consideração Intempestiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
_____________. (2011), Assim Falou Zaratustra. São Paulo, Companhia das Letras.
SIMMEL, Georg. (1971), On Individuality and Social Forms. Chicago, The University of Chicago Press.
VATTIMO, G. (1996), O Fim da Modenidade – Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna. São Paulo, Martins Fontes.
VIEIRA, A. (2003), “As Lágrimas de Heráclito” in Sermões. São Paulo, Hedra, vols. I e II.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.