Após um período de calmaria do histórico de golpes de Estado na América Latina, a derrubada do presidente Manuel Zelaya em Honduras em 28 de junho de 2009 apareceu como um indigesto ponto fora da curva, mas acontecimento recente mostrou que deveria ter sido entendido como um sinal amarelo.
O sinal vermelho foi aceso com o golpe de Estado do vice-presidente Federico Franco, em 22 de junho de 2012, contra o presidente constitucional Fernando Lugo, no Paraguai, sacramentando uma nova roupagem para os golpes de Estado latino-americanos. Sai o verde-oliva dos militares anticomunistas, entram o terno dos políticos tradicionais e mesmo a toga dos membros do Judiciário. A modalidade travestida com o manto da legalidade vem sendo chamada de “neogolpismo” ou “golpe branco”, branco como a lã das ovelhas, talvez pelo fato de se evitar derramamento de sangue.
A versão defendida pelos golpistas e repercutida pelos meios de comunicação paraguaios, controlados por eles mesmos, e também pela mídia brasileira – em geral nada simpática a Lugo, a Zelaya ou a qualquer presidente que adote políticas alinhadas à esquerda e que ela classifique como “marionete de Hugo Chávez” – é a de que se tratou de um procedimento legal, previsto na Constituição.
Os golpistas consideram que Lugo foi destituído por impeachment, seguindo-se todos os procedimentos legais. Grande parte dos opositores ao golpe concentra suas críticas no fato de que todo o processo tenha durado menos de 48 horas, impedindo-se, assim, a plena defesa de Lugo e um julgamento justo. Efetivamente, qualquer julgamento em um regime não tirânico requer o direito de defesa do réu. Contra-argumentou-se, com alguma propriedade, que o ocorrido foi um julgamento político, e não criminal, o que obviamente leva a procedimentos distintos.
Pois é justamente sobre a questão do julgamento político impeachment – antes mesmo de se debater se é possível que ele ocorra tão rapidamente – que repousa a razão central para que não se possa considerar a destituição de Lugo como algo diferente de um golpe de Estado. Boas análises sobre a seqüência de fatos que desencadeou o golpe e sobre os interesses por trás da destituição, inclusive dos Estados Unidos, podem ser encontrados no dossiê produzido pelo Observatório Político Sul-americano e em outros artigos[1]. Centrarei minhas críticas mais especificamente à ilegalidade/ilegitimidade do processo de julgamento político realizado contra Lugo e aos recorrentes argumentos pseudolegalistas pronunciados favoravelmente ao processo.
O Paraguai é uma república presidencialista. No presidencialismo, o presidente acumula as funções de chefe de Estado e de chefe de governo, e é eleito popularmente. Nas repúblicas parlamentaristas, por sua vez, o presidente é apenas o chefe de Estado, geralmente sendo o responsável por atividades de caráter puramente simbólico, sendo o primeiro-ministro o chefe de governo. O primeiro-ministro não é eleito popularmente, mas sim pelo próprio parlamento – este sim eleito pelo voto popular – e aquele que é o responsável pela sua escolha tem um mecanismo para destituí-lo quando considerar conveniente: o voto ou moção de desconfiança. O voto de desconfiança não tem relação com crise ou crime, é um instrumento ordinário do parlamentarismo. Os parlamentares podem destituir o primeiro-ministro se quiserem mudar os partidos que compõem a coalizão de governo, se estiverem em desacordo com as práticas ou as políticas adotadas pelo premier, se ele tiver cometido alguma irregularidade ou se considerarem que ele é pouco simpático. Não importa o critério, o parlamento tem legitimidade para destituir o primeiro-ministro.
No presidencialismo isso não existe, o único meio legal de destituir o chefe de governo, que no caso é o presidente, é o impeachment, cuja aplicação é muito mais restrita. Abuso de poder, corrupção e malversação dos recursos públicos, desrespeito pela Constituição são motivos suficientes para dar início a um pedido de impedimento. Desacordo com as políticas adotadas, falta de harmonia entre Executivo e Legislativo, diferenças pessoais ou ideológicas entre os dois poderes, nada disso justifica um impeachment. Por essa razão a maior flexibilidade do parlamentarismo é apontada como uma vantagem pelos defensores desse sistema de governo, por permitir facilmente a exclusão de um governante impopular, incompetente ou sem sustentação legislativa, ao mesmo tempo em que é considerada como fator de instabilidade pelos adeptos do presidencialismo, por possibilitar quedas constantes dos gabinetes, prejudicando planejamentos de longo prazo.
O que faz, portanto, considerarem que era possível – ou melhor, legal – destituir Lugo por impeachment? Ele não tinha apoio no Legislativo – dominado por colorados, pela União Nacional de Cidadãos Éticos (UNACE) do general Lino Oviedo e pelo Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) de Federico Franco, todos conservadores – e sua coalizão de esquerda, a Frente Guasú, tinha participação diminuta. Mas isso não é, como foi apontado, uma justificativa para derrubar o presidente. Ou não deveria ser.
Simpatizantes do golpe buscaram apresentar o evento como um procedimento constitucional, ao melhor estilo do “Ministério da Verdade” da Oceania no livro 1984 de George Orwell. O argumento aponta dois fatos verídicos mas mal interpretados: 1) a Carta Magna de 1992 diz, no artigo 225, que o presidente da República, o vice-presidente, além de ministros do Executivo e alguns membros de altos postos do Judiciário, podem ser submetidos a juízo político, em acusação formulada pela Câmara dos Deputados e julgada pelo Senado, por mau desempenho de suas funciones, por delitos cometidos no exercício de seus cargos ou por delitos comuns; 2) o próprio Judiciário apoiou a destituição de Lugo e a posse de Franco, o vice-presidente que há tempos havia passado para a oposição.
Quanto ao Judiciário, não há por que considerá-lo como constituído por indivíduos neutros e com um julgamento superior, tal como os filósofos do mundo imaginado – um tanto conservadoramente – por Platão. Os fatos de estar contaminado por interesses alheios ao de fazer cumprir a lei e de não estar sujeito a um controle real o tornam, inclusive, uma ameaça à democracia, como se pôde constatar. Lugo moveu uma ação de inconstitucionalidade contra o processo para sua destituição e a Suprema Corte rejeitou o pedido sem sequer analisá-lo. Como observa André Luiz Coelho (2012, p. 20) [2], os próprios membros da Corte Suprema estão sendo processados há mais tempo, mas, diferentemente do “processo expresso” contra Lugo, nunca foram a julgamento.
No que se refere à indicação do texto constitucional, chama a atenção seu caráter nada objetivo. Na falta de “delitos comuns” ou de “delito cometido no exercício do cargo”, os parlamentares aproveitaram a possibilidade de realizar um impeachment por “mau desempenho” do presidente. O expediente constitucional, criado em 1992 por um parlamento amplamente dominado por colorados, aparenta ter se tratado mesmo de uma brecha para remover um eventual presidente que adotasse políticas indesejáveis, tais como a repressão ao narcotráfico e movimentações para uma futura reforma agrária. Não apenas “mau desempenho das funções” não é, se há uma espécie de “jurisprudência” presidencialista, um motivo aceitável para instaurar um processo de impedimento, como se trata de algo demasiadamente subjetivo para que haja a tranqüilidade de que injustiças antidemocráticas não sejam cometidas.
Em 1797, Joseph de Maistre [3], revoltado pela agressão à sua admirada França totalitária causada pelos revolucionários, queria destruir tudo o que o século XVIII construiu e que tinha a ver com a recente Revolução Francesa, inclusive a democracia. Ele acreditava que, para o bom funcionamento da sociedade, não poderia haver razão, e sim medo e reverência, de modo que o fundamento das instituições deveria ser misterioso e ininteligível, para intimidar e levar à obediência. Assim, defendia que a Constituição não devia ter tudo escrito nela e que algumas coisas deveriam mesmo estar obscuras. Quanto mais leis, mais humano e mais frágil seria o trabalho legislativo, e quanto mais detalhada a Constituição, mais fraca ela seria. De acordo com seu argumento, os direitos são escritos onde eles são atacados, e se há muitos escritos, é porque estão em perigo.
A defesa de brechas jurídicas para que haja maior poder discricionário de acordo com as conveniências já representava o atraso, o reacionarismo naquela época, o que dirá mais de dois séculos depois. Esse tipo de “regulamento massinha”, que é livremente moldável, em função de sua falta de objetividade, de acordo com o gosto de quem tem o objeto da manipulação nas mãos, já foi muito recorrente em campeonatos de futebol no Brasil; o curioso é ser agora elevado a estandarte da legalidade em uma república democrática.
O processo foi iniciado na Câmara de Deputados em 20 de junho e aprovado no Senado dois dias depois. As acusações de mau desempenho não continham provas e não foi concedido a Lugo tempo suficiente para preparar sua defesa, estando claro que o veredito dependia mais da vontade do Parlamento do que dos fatos, e que havia pressa: nem puderam esperar o fim do mandato, que duraria ainda menos de um ano.
A condenação por “mau desempenho” ocorreu a partir de cinco acusações formais de deputados de diferentes partidos de direita, nenhuma delas efetivamente respaldada por provas. Apontou-se que Lugo teria apoiado uma manifestação de jovens de esquerda no Comando de Engenharia das Forças Armada em 2009, inclusive com recursos da hidrelétrica de Yaciretá. Afirmou-se ainda que em seu governo, enquanto terras de fazendeiros eram medidas, militares teriam sido submetidos a ordens dos sem-terra (“carperos”) no distrito de Ñacunday no começo de 2012. Lugo foi acusado ainda de ser responsável por um aumento da “onda de violência”, devido a sua suposta incapacidade para enfrentar a delinqüência e falta de vontade política para combater os guerrilheiros do Exército do Povo Paraguaio (EPP), culminando na emboscada de policiais por franco-atiradores misturados aos sem-terra que terminou com 17 mortes (seis de policiais e 11 de camponeses) e dezenas de feridos ocorrida em 15 de junho de 2012, durante a reintegração de posse de uma fazenda na cidade de Curuguaty, no departamento de Canindeyú, fronteiriço com o Brasil, evento que teria sido a gota d’água para o impeachment. Outra acusação foi a de violação à Constituição por ratificar – assim como os demais presidentes do Mercosul – o protocolo de Ushuaia 2, em dezembro de 2011, que deve substituir o de Ushuaia 1 e que prevê intervenção externa caso uma democracia esteja em perigo, o que eles afirmam ser uma ameaça à soberania paraguaia. Ironicamente, se o protocolo de Ushuaia 2 estivesse vigendo, provavelmente Lugo teria sido reconduzido ao poder.
Assim como acusações não comprovadas foram utilizadas pelo Congresso paraguaio para derrubar Lugo, situações equivalentes podem ser apontadas no continente recentemente. O então presidente equatoriano Abdalá Bucaram foi derrubado em 1997 também por um golpe do próprio Congresso Nacional, que alegava insanidade mental do governante. Os parlamentares sequer julgaram necessária a realização de um exame médico para comprovar a acusação. No Brasil, a onda de golpismo contra Lula por parte da Imprensa e da oposição, que também pediam impeachment, chegou ao ponto de acusar o então presidente de ter vínculos com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), pelos quais a organização financiaria campanhas eleitorais do Partido dos trabalhadores (PT). A democracia brasileira, no entanto, deu provas de fortalecimento institucional ao resistir à pressão pela substituição dos resultados consagrados nas urnas por aquele que desejavam os derrotados.
Outro ponto que os simpatizantes do golpe têm destacado é o do princípio da autodeterminação do Paraguai. Ao Brasil, como maior potência regional, não caberia desrespeitar a soberania dos vizinhos e intervir imperialistamente em suas decisões. Além de ignorarem as cláusulas democráticas do Mercosul e da Unasul, que – mesmo que sob pele de cordeiro – foram desrespeitadas, os simpatizantes do golpe estão considerando ser o Paraguai o seu Parlamento e seu Judiciário. A queda de Lugo não foi decidida pela população que o elegeu democraticamente, dando fim a 61 anos de governo de partido hegemônico dos colorados – 35 deles sob a sangrenta ditadura de Alfredo Stroessner (entre 1954 e 1989) –, nem por vontade própria do presidente. São o destronado Partido Colorado, o ex-golpista Lino Oviedo e o PLRA do novo golpista Federico Franco melhores representantes da autodeterminação paraguaia do que o eleitorado e o presidente escolhido por ele?
Por acaso quando mencionam a autodeterminação estariam se remetendo à tradição paraguaia de golpes e ditaduras? Em um continente que tanto sangrou com as rupturas democráticas, o Paraguai de fato tem um triste destaque. Como observa José Luis Simón (1998, pp. 355-6), há historicamente no país uma separação entre república e democracia, de modo que, na “tradição ‘constitucional’ paraguaia”, “predominam sistemas como o ‘despotismo republicano’ (regulamentos de 1813 e de 1844, da etapa pré-constitucional), ou como o ‘cesarismo presidencial’ e o ‘presidencialismo autoritário’ (correspondentes respectivamente à Carta de 1940 e à ‘constituição regressiva’ de 1967, que foi reformada em 1977).”
Apesar de ter tido muitas eleições, e mesmo Stroessner participava de fraudados pleitos presidenciais em que obtinha mais de 80% ou 90% dos votos, o Paraguai, independente da Espanha desde 1811, só foi ter um presidente eleito democraticamente, Juan Carlos Wasmosy, em 1993. Simón (1998, p. 287) resume a história paraguaia anterior a Stroessner: “os paraguaios tiveram que suportar a ditadura de Franco e o despotismo dos López”, “prolongadas etapas” concluídas “com a tragédia da Guerra da Tríplice Aliança”, quando “em 1870 os sobreviventes de um país arrasado juraram uma Constituição liberal”, que, no entanto, nunca teve plena vigência, “já que, pelo menos até o começo do século XX, a razão prevalecente no Estado e na sociedade foi a do caudilho da vez, respaldado pela força das armas”. “Entre 1904 e 1936 […] houve os esforços mais sérios da história paraguaia, nem sempre exitosos, para que o país legal coincidisse com o real”. Em 1936, “a crise do mais formal do que real Estado liberal paraguaio” culminou após a Guerra do Chaco com o golpe de Estado da “revolução libertadora” do movimento febrerista em 1936, derrubado, por sua vez, pela “contrarrevolução liberal” de 1937, estabelecendo-se a “autoritária Carta Magna de 1940”, seguindo-se “quase sete anos da ditadura do general Higinio Morínigo”. “Entre 1947 e 1954, sete mandatários (civis e militares) apoiados pelo Partido Colorado (em cujo interior predominavam seus setores mais conservadores e retardatários) se sucederam fugazmente e sem solução de continuidade no Palácio de Governo, até chegar a 4 de maio de 1954. Esse golpe de Estado terminou em um pacto militar-cívico entre o jovem general Alfredo Stroessner e o anarquizado Partido Colorado”.
Essa seqüência de eventos foi sucedida pela longeva ditadura stronista. A própria população paraguaia não merece manter tal nefasta tradição. É positivo que o Brasil use sua influência e pressão para afastar da América do Sul – e ainda mais do Cone Sul – o fantasma dos golpes de Estado. Defender o contrário é saudosismo sádico ou falta de memória.
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Guilherme Simões Reis
[1] Ver, por exemplo: MARTINS, Carlos Eduardo. “O Golpe de Estado no Paraguai e a América do Sul”. Carta Maior, 24/06/2012. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. “Estados Unidos, Venezuela e Paraguai”. Carta Maior, 12/07/2012. GRIMALDI, Idilio Méndez Grimaldi. “¿Por qué derrocaron a Lugo?” Atilio Borón, 22/06/2012. SANTAYANA, Mauro. “A crise no Paraguai e a estabilidade continental”. Jornal do Brasil, 22/06/2012. FREITAS, Janio de. “Quem tirou Lugo”. Folha de S. Paulo, 26/06/2012.
[2] COELHO, André Luiz (2012). “A queda de Lugo e a instabilidade política paraguaia.” Observador On-line, v. 7, n. 6, pp. 12-25.
[3] MAISTRE, Joseph de. (1994). Considerations on France. Cambridge: Cambridge University Press.