O que é Abstração Real, Mesmo? – Número 67 – 06/2012 – [201-209]

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Continuamos aqui nossa investigação da noção de laço social na teoria žižekiana da ideologia. Apresentaremos um outro recorte desse estudo, dando prosseguimento ao texto anterior (Breviário, 03/2012)

As ideias…, as ideias, confesso, interessam-me mais do que os homens; interessam-me acima de tudo. Elas vivem; combatem; agonizam como os homens. Naturalmente pode-se dizer que só as conhecemos pelos homens, assim como só temos conhecimento do vento pelos caniços que ele inclina; mas mesmo assim o vento importa mais do que os caniços.

–  O vento existe independentemente dos caniços – arriscou Bernard.

Sua intervenção fez saltar Édouard, que a esperava havia muito tempo.

– Sim, eu sei: as ideias não existem senão pelos homens; mas é aí mesmo que está o patético: elas vivem às custas deles”

(André Gide, Les Faux-Monnayeurs)

Em nossas elaborações anteriores, tentamos entender de que maneira o conceito de abstração real, tal como desenvolvido por Alfred Sohn-Rethel, contribui para a análise marxista da forma da mercadoria. Partindo do problema da autonomização das formas sociais – aspecto fundamental da estrutura dos novos artigos financeiros que guiam a economia contemporânea – retornamos aos primeiros capítulos de O Capital e tentamos esclarecer a estrutura da forma-valor apresentada por Marx de modo a torná-la compatível com sua radical autonomização do valor contabilizável como capital real.

A introdução da abstração real como dimensão constitutiva da forma do valor nos levou a considerar um outra figura que não a famosa “folha de papel” saussureana como modelo dessa estrutura. Se a tensão entre o valor de uso e o valor de troca se oferece ao pensamento à maneira de uma superfície com dois lados que nunca se encontram, mas coexistem, a contradição mais fundamental entre o ato de uso e o ato de troca demanda, para tornar-se pensável, um exercício de visualização bastante diferente. Sob a rubrica de ‘uma superfície de dois versos mas somente um lado’, sugerimos que a figura topológica conhecida como a banda de Moebius poderia servir de modelo para essa nova concepção da forma de valor, em que a abstração real ocupa precisamente o lugar paradoxal de um ponto cuja ausência torna possível a passagem contínua do concreto para o abstrato. Eis aqui nossa proposta:

Descrevemos esse modelo da seguinte maneira:

Onde o desaparecimento da abstração real, implicada no ato de troca (1), permite que a referência ao valor de uso (4) seja “construída na própria estrutura” do valor de troca (3), sem que, por isso, seja articulada como um outro verso da superfície – existente e “lastreado”. Vemos também que o valor-de-uso formal (2), suporte das operações da forma da mercadoria, não precisa mais ser pensado como inclusão da mercadoria na forma da equivalência, mas como correlato ideal do desaparecimento da abstração real. (TUPINAMBÁ, 2012)

No entanto, não iremos longe em nossa investigação se não formos capazes de relacionar a problemática econômica, através da qual abordamos a abstração real, à questão que levou o próprio filósofo ao conceito – a saber, o famoso problema kantiano das condições do conhecimento obtido através do trabalho puramente intelectual (SOHN-RETHEL, 1978: 30). Se quisermos estudar, como foi proposto ao final do nosso texto anterior, qual é a invariante que permite o emprego do termo “trabalho” tanto em termos de produções do espírito quanto do corpo, precisamos não só entender qual é a “anatomia” da forma de valor, mas também quais as relações que essa estabelece com pensamento formal por excelência. No presente esforço, tentaremos traçar o percurso de Sohn-Rethel rumo à “liquidação do apriorismo kantiano” (SOHN-RETHEL, 1989) e, com isso, aproximar a questão da ciência moderna daquela da forma do valor no capitalismo. Para tal, focaremos nosso trabalho em um capítulo fundamental de seu livro Trabalho Espiritual e Corporal, intitulado “O Intelecto Independente” (Ibid: 67-79).

Encontramo-nos aqui em um momento fundamental da exposição de Sohn-Rethel. Munidos da construção completa do conceito de abstração real – isso é, do discernimento de seus vários aspectos (pura quantidade, abstração do tempo, do espaço, etc) e da operação de conversão que lhe é intrínseca – passamos então à análise daquilo que resulta do processo de síntese social que tem essa abstração como pivô: o aparecimento no intelecto de um lugar ou índice de pensamento que não se refere a nada a não ser a si mesmo. É assim que Sohn-Rethel inicia sua análise:

Somente ao final conclusivo da identificação [em que invertemos abstração real e ideal] encontramos os conceitos resultantes separados de sua origem; somente a essa altura pode ser dito que o pensamento abstrato é engendrado, separado de sua raiz, pela sua raiz, em sua raiz. Isso se dá porque a abstração real da troca tem como sua marca distintiva a total exclusão do conteúdo empírico. Sua abstração é não-empírica. Portanto, se um ou mais de seus elementos forem propriamente identificados, isso resultará na formação de conceitos tão não-empíricos quanto a abstração de troca ela mesma. E, sendo não-empíricos, eles não carregarão nenhum traço da localidade, data ou qualquer outra circunstância de sua origem. Estarão fora do campo da percepção sensível sem que, portanto, tenham que abandonar sua reivindicação de realidade. (SOHN-RETHEL, 1978: 67)

Ou seja, é no momento em que a abstração real se converte em abstração ideal – quando os postulados abstratos implicados no ato de troca se refletem no intelecto como puras abstrações, sem referente empírico algum – que podemos falar de pensamento abstrato como tal. O mais importante aqui é notar que é a própria apreensão do pensamento puro que simultaneamente mascara a sua origem: a repetição da forma do pensamento abstrato no pensamento abstrato formal opera o desaparecimento da base social que caracteriza a abstração de troca. O que o processo de conversão da abstração real em abstração ideal descreve é justamente a maneira como postulados “não-empíricos”, porém abstraídos de relações reais de troca, resultam em conceitos igualmente não-empíricos, porém agora abstraídos de qualquer referência à causalidade – de modo a não carregar “nenhum traço da localidade, data ou qualquer outra circunstância de sua origem”. O processo de conversão é, portanto, uma operação um tanto enigmática, pois superpõe uma hiância (entre “ser social” e consciência) e um nexo causal (da abstração real à abstração ideal) de modo a explicar a separação da raiz do pensamento “pela sua raiz, em sua raiz”. Essa superposição – que, em “hegelianês”, pode ser entendida como uma identidade entre a identidade e a diferença – é justamente o que justifica o nosso modelo da banda de Moebius.

Ora, uma coisa é propor que há uma afinidade entre as formas sociais e o pensamento científico, outra é postular uma relação causal entre os dois. O primeiro projeto – representado especialmente pela “teoria das generalidades” de Althusser (ALTHUSSER, 1969: 167-177) – visa traçar a diferença entre ideologia e teoria, entre os pressupostos da prática irrefletida e o pensamento que exercita a apreensão do que é concreto. Por se tratar de uma correlação, o horizonte dessa tarefa é acima de tudo uma “luta de classes n campo teórico” (ALTHUSSER, 1974: 105): seu trabalho é discernir o pensamento consequente do inconseqüente. Por outro lado, o projeto de Sohn-Rethel precisa dar conta de um problema anterior e fundante da ciência enquanto tal: se a abstração real é condição da forma pura que, uma vez apreendida pelo pensamento, se torna a base da ciência moderna e matematizada, então é preciso mostrar que há uma relação direta entre a abstração real enquanto postulado da troca e a capacidade do pensamento formal de produzir consequências. Em outras palavras, é preciso articular de que maneira a condição principal da ciência matematizada galileana – o próprio pilar da efetividade real dos “caracteres geométricos” – está presente, e de maneira “transferível”, nos processos sociais. O evidente paradoxo dessa tarefa é que Sohn-Rethel convoca uma realidade que depende do homem para dar conta da autonomia de abstrações capazes de explicar o mundo que independe de nós. Como associar a circulação de abstrações ou ficções entre homens com a efetividade científica sem ter que optar pela crítica cética ou por um transcendentalismo nos moldes kantianos?

Com esse enigma em mãos, sigamos em frente.

Como citado acima, Sohn-Rethel afirma que o nascimento do sujeito transcendental, entendido como pivô pontual e irredutível do trabalho intelectual puramente abstrato, é o principal resultado da conversão da abstração real em abstração ideal (SOHN-RETHEL, 1978: 77). Os postulados implicados no ato de troca de mercadorias – e que tornam-se manifestos com o advento da cunhagem (Ibid: 58-60) – dão origem no pensamento aos diferentes aspectos do Um parmenidiano (Ibid: 64-66): indivisibilidade, abstração do tempo e do espaço, causalidade estrita, etc (Ibid: 35-56). No entanto, o processo de conversão faz mais do que “transferir” os aspectos fundamentais do ato de troca para a consciência dos homens, pois se a abstração real consiste precisamente na “depuração” in situ dos traços mínimos da estética transcendental – isso é, se o ato de troca concretamente implica a sua separação do universo de uso – então a sua apreensão ideal necessariamente se dá como uma separação da separação, como o desaparecimento final de qualquer marca de sua origem social. O intelecto abstrato “emerge com um senso normativo peculiar só seu, servindo só a sua ‘lógica’ própria”:

[No caso do conceito de Parmênides]. a abstração conceitual não-empírica, quando emerge claramente, atesta estar conectada desde o início com seu próprio senso de verdade e inverdade e com um tipo de raciocínio caracterizado pelo argumento lógico. Essas são as propriedades que os Gregos entendiam como sendo as do poder da dialética. Dessa maneira, a conversão envolve tanto auto-alienação como auto-direção. (SOHN-RETHEL, 1978: 68)

Auto-alienação, porque a repetição de um processo de separação das qualidades sensíveis não reterá, em seu segundo momento, nem mesmo a oposição, que definia a primeira abstração, entre as propriedades sensíveis e o caráter pontual e não-empírico do postulado da troca. A abstração ideal é a apreensão intelectual de uma forma cuja propriedade é ser “desinformada” de sua origem. Auto-direção, porque essa separação da origem produz as leis de sua própria reprodução, seu próprio princípio normativo de desenvolvimento – o raciocínio puramente dedutivo, cuja consistência deriva exclusivamente daquilo que o pensamento puro pode produzir a partir de sua própria coerência.

Encontramos aqui um problema fundamental, que toca diretamente na questão da efetividade material da matemática pura. Afinal, como comparar as funções normativas que encontramos tanto no ato de troca quanto no argumento lógico?

Retomando alguns dos pontos básicos que articulamos em O que é a abstração real?, relembramos aqui que o que é abstrato, e ainda assim real, no ato de troca é aquilo que ele implica em sua própria atualidade: trata-se de um ato realmente existente, um momento discernível no tempo e localizável no espaço, mas que, paradoxalmente, existe como se estivesse fora do tempo e fora do espaço. Ora, é claro que não há matéria nenhuma ali que não seja concreta e real e o caráter abstrato da troca de mercadorias não é da ordem daquilo que compõe a “cena” e os “atores” da troca – mas nem por isso deve ser considerado uma mera abstração mental: o que é realmente abstrato no ato de troca é a ação dos homens, que só há um ato de troca na medida em que esse não é um ato de uso – isso é, na medida em que não é um ato que considera as qualidades sensíveis, consumíveis, da matéria:

Toda a abstração de troca é fundada sobre um postulado social e não sobre um fato. Trata-se do postulado de que o uso das mercadorias tem de permanecer suspenso até que a troca tenha acontecido; é o postulado de que nenhuma alteração física deve ocorrer na mercadoria e isso se aplica até mesmo contra os fatos;(…). Nenhum dessas formas-de-conceito [form-concepts] implicam proposições de fatos. São todos normas que a troca de mercadorias precisa obedecer para ser possível e para permitir a sobrevivência da  sociedade anárquica através das regras da reificação. (SOHN-RETHEL, 1978: 68)

A questão que nos interessa aqui é a seguinte: essa ação, trata-se, por assim dizer, de uma abstração de facto ou de jure? Quando dizemos que os agentes da troca atuam “como se” as mercadorias estivessem fora do tempo e fora do espaço, reduzidas à pontualidade da pura quantidade contabilizável, etc, estamos dizendo que há uma separação de jure do sensível, mas que, de facto, essa é uma ação essencialmente material como qualquer outra[1]? Mas o que fazer, então, da colocação de Sohn-Rethel de que “na troca de mercadorias, (…) só a ação é abstrata, a consciência dos atores não é” já que “a dimensão abstrata de suas ações está oculta dos agentes que as realizam” (SOHN-RETHEL, 1978: 30)?

Como estudamos anteriormente, para o filósofo, essa ocultação da dimensão abstrata da ação é uma condição necessária da síntese social baseada na troca de mercadorias, e não um desconhecimento acidental de uma norma que, construída pelo pensamento, se conformaria fundamentalmente ao pensamento. O que nos parece mais difícil – e igualmente fundamental – é entender que se trata de uma abstração não só dos dados sensíveis da mercadoria enquanto objeto concreto mas também da abstração da consciência dos agentes envolvidos na troca (Žižek, 1999: 21). A separação entre um ato visto de acordo com a lei das trocas e o mesmo ato visto de acordo com o que “realmente se passa” é insuficiente para dar conta do que – retomando os termos utilizados acima – é de facto na própria dimensão do que é de jure. Esse curto-circuito entre o fatual e o postulado ganha seus contornos quando nos colocamos a seguinte pergunta: sabemos que as idéias são criadas pelos homens, e existem somente em suas cabeças, mas por que é que, ainda assim, uma idéia pode ter não só a aparência de um fenômeno objetivo e autônomo, mas realmente ser capaz de preceder e determinar os caminhos desse mesmo homem? Em suma: o que é que uma ideia partilha com o evento físico, autônomo e objetivo?

Com essa questão em vista, retomemos a análise de Sohn-Rethel:

Temos que ser claros quanto ao conteúdo da abstração de troca. Seu conteúdo não é nada senão os traços básicos do ato físico de transferência de mercadorias entre proprietários privados. Trata-se de um evento físico que é abstrato (é justamente por isso que decidimos chamá-la de ‘abstração real’). A abstração da troca é um composto dos elementos mais fundamentais da natureza, como o espaço, o tempo, a matéria, o movimento, a quantidade, etc. Os conceitos que resultam da identificação desses elementos são, em sua origem, conceitos da natureza. Entre si, compõem no abstrato uma rede ou textura da natureza. Em termos lógicos, podem ser descritos como conceitos não-empíricos, puramente formais, de universalidade atemporal. Além disso, esses conceitos não podem se relacionar a nada além da natureza enquanto mundo-objeto físico, antiteticamente dividido da esfera social do homem e de sua história. (SOHN-RETHEL, 1978: 70)

A abstração real é um evento físico – o lugar, agentes e objetos que a compõe são todos materialmente identificáveis – mas é um evento físico vazio – seu conteúdo, por assim dizer, é o “palco” do evento físico, pois a existência da troca postula a depuração “dos elementos mais fundamentais da natureza” – e a troca de mercadorias, por mais que não prescinda daquilo que a inclui no mundo como uma situação material entre outras, não existe como tal sem implicar, como condição incontornável, a ocorrência de uma pura substituição entre unidades indivisíveis. Sohn-Rethel continua:

A ação de troca se coloca em polaridade antitética em relação à realidade sensível das coisas na mente privada dos indivíduos em sua vida social. Os conceitos não-empíricos extraídos da abstração real descrevem a ação reduzida ao osso da realidade física. É uma realidade que carrega validade social entre todos os agentes da troca. Esses conceitos tem realidade objetiva em sua aplicação à eventos naturais porque eles se relacionam e formam as categorias dos eventos físicos, de modo a formar o que poderia ser descrito como o mínimo absoluto do que constitui um evento natural, pois são eventos que ocorrem enquanto o estado material das coisas permanece inalterado. Eles constituem, assim, o paradigma do pensamento mecanicista. Seus conceitos são, em sua origem, a forma do ato de troca de mercadorias, e, em seu conteúdo, as categorias mais básicas da natureza como mundo-objetivo, em contraste antitético com o mundo social do homem. O conteúdo desses conceitos não faz referência alguma ao dinheiro – o único traço que relaciona-os ao dinheiro é a própria abstração. (SOHN-RETHEL, 1978: 72)

Reconhecemos assim a estrita correspondência entre o processo social que tem a abstração real como pivô e as bases da lógica matemática no que concerne a relação entre natureza e as categorias que a compõe ou organiza: a troca de mercadorias como síntese social postula a abstração das propriedades sensíveis enquanto a matemática trabalha essa abstração como unidade, operação e lei de seu desenvolvimento. No entanto, essa correspondência poderia ser entendida como uma “analogia” ou interpretação do que ocorre no ato de troca a partir das categorias matemáticas – isso é, dado que só nos tornamos cientes da abstração quando apreendemos a abstração como conteúdo ideal, por que não entender a abstração real como uma “metáfora” das categorias da idealidade e que localizamos, impropriamente, no lugar de causa ao invés de efeito? Entendida a relação dessa maneira, resolveríamos o problema da eficácia de determinações sociais sem ter que considerá-las mais do que análogas à determinação de uma lei da natureza tal como descrita pela ciência. Trata-se, portanto, de uma objeção bastante relevante: por que a abstração real precederia a abstração ideal quando só conseguimos pensar a primeira a partir da segunda?

Para respondermos a essa questão fundamental só precisamos atentar para a dissimetria essencial entre os lados da conversão. Do lado da abstração real, temos a separação do sensível, o postulado de uma forma sem conteúdo e um processo que ocorre de maneira independente da consciência de seus agentes; do lado da abstração ideal, temos a mesma separação dos fenômenos qualitativos, o manejo regulado de conteúdos formais e um processo cujo lugar na consciência é tão essencial que, para alguns, chega a se confundir com sua própria lógica. No entanto, se considerarmos que a propriedade da abstração real de “ocorrer de maneira independente da consciência de seus agentes” é, na verdade, a característica fundamental do mundo descrito pela ciência matematizada, somos então obrigados, por uma questão da lógica interna à própria ciência, a reconhecer a prioridade da abstração de troca sobre a abstração ideal, já que a primeira é justamente um fato do “mundo-objeto físico” no sentido de existir de maneira independente da correlação que estabelecemos em nossas proposições sobre o mundo entre sujeito e objeto (KOYRÉ, 1968; MEILLASSOUX, 2008).

Ao dar a primazia à ciência só estamos decidindo sobre os critérios que, uma vez adotados, nos forçarão a reconhecer a primazia lógica do postulado social sobre o resultado de sua conversão em idealidade pura. Dessa maneira, a correspondência ou correlação entre o postulado social e a matematização – a substituição pura de um elemento sem qualidades por outro equivalente, fora do espaço, fora do tempo, etc – precisaria ser pensada, ainda que com algum dano para o pensamento, como uma implicação causal. Ainda assim, não podemos nem reduzir essa causalidade àquela produzida pela ciência – pois essa se organiza de acordo com o resultado da conversão, e não é o processo de produção de uma idealidade autônoma, e sim o processo de sua reprodução – nem descartar que há uma causa em jogo, posto que o que está em jogo é precisamente a gênese social da dimensão da causalidade estrita como tal.

Em suma, trata-se do advento material da autonomização de uma forma para além da realidade que a produziu, de maneira que, num instante ulterior, esta produção contingente possa vira se impor sobre essa mesma realidade como uma necessidade absoluta – no caso, o aparecimento da forma do evento físico como categoria do pensamento.

Confrontados aqui com o problema não do contingente, nem do necessário, mas da passagem de um para o outro, somos também convidados a não mais decidir entre ceticismo ou idealismo transcendental, mas, um pouco além, a decidir qual será o lugar de Hegel no pensamento marxista (ZIZEK, 2010: 266-284). Afinal, não é patente que a tensão entre a abstração real e sua contra-parte ideal oferece-nos um novo caminho de entrada para a Ciência da Lógica, a ponto de tornar tentador reabilitarmos a infame crítica hegeliana à externalidade da Idéia na formalização matemática?

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Gabriel Tupinambá

Bibliografia

ALTHUSSER, Louis (1969) For Marx Penguin Press

________________ (1974) Essays in Self-Criticism NLB Press

GIDE, André (1925) Les Faux-Monnayeurs. Gallimard

KARATANI, Kojin (1995) Transcritique: On Kant and Marx. MIT Press

KOYRÉ, Alexandre (1968) Metaphysics and Measurement: Essays in Scientific Revolution. Chapman and Hall

MEILLASSOUX, Quentin (2008) After Finitude. Continuum

SOHN-RETHEL, Alfred (1978) Intellectual and Manual Labour. Humanities Press

___________________(1989) Geistige und körperliche Arbeit. Zur Epistemologie der abendländischen Geschichte. Acta Humaniora  (traduzido por Cesare Guiseppe Galvan, disponível online: http://adorno.planetaclix.pt/sohn-rethel.htm )

TUPINAMBÁ, Gabriel (2012) O que é a abstração real?, (disponível online: http://estudoshumeanos.com/2012/03/26/o-que-e-abstracao-real/ )

ŽIŽEK, Slavoj (1999) The Sublime Object of Ideology. Verso

____________(2010) Viver no Fim dos Tempos. Relógio D’Água


[1] Seria interessante, como um trabalho suplementar, realizar um estudo das relações entre a abstração real e a “filosofia do Als ob” de Hans Vaihinger, pensador em linha “diagonal” com Hume e Bentham.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.