A Mais Absurda das Contradições: (Variações a partir de um tema de Pierre Clastres) – Número 62 – 05/2012 – [142-150]

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No mundo, há coisas; e dentre as coisas do mundo, havemos, nós. Não menosprezemos estas duas afirmações, pois delas derivam os maiores problemas da existência. Não há problema no mundo sem o Ser, pois tudo o que pode haver não o pode senão para nós. E o “para nós” sempre há de ser um problema anterior aos que podemos achar ter encontrado. A essência das coisas pode existir na realidade, mas o que nos importa sempre serão as instituições que inventamos a partir das várias impressões que delas – das coisas – podemos ter.

Este tipo de pensamento não esgota as questões de essência por que não se preocupa com elas. Os embates filosóficos entre os defensores do Ser e da Aparência hão de sempre ser embates pela aparência; pois quando penso em defender o que é, defendo o que acredito que conheço, sem saber. E sem nunca saber, acredito. A força das crenças não deve jamais ser subjugada; ao passo que antes de crer em algo que se conhece, crê-se que se sabe – que se detém o Saber.

Ciência nenhuma jamais poderá fugir do fato de que somos homens, e que, portanto, não importa com quantos microscópios conviveremos, sempre há de haver um de nós por detrás de suas lentes. Ainda tentamos descobrir se o ovo de galinha faz bem ou mal à nossa saúde, mas não fazemos ideia das consequências de uma dieta baseada em formigas. Seremos sempre nós, a promover questões e aceitar provas. Não descobrimos verdades, mas concordamos com elas. Os microscópios são instrumentos que agem em favor da concordância, são a retórica do nosso tempo. A retórica do cientificismo atinge o auge do incontestável por driblar o que atesta a deficiência da verdade humana. A interpretação e o lapso existente entre a contemplação e o enunciado têm sua importância diminuída em favor das provas do microscópio.

Uma teoria da verdade que trate das diversas formas de ciência que conhecemos pode levantar diversos problemas, que naturalmente não são objetos das questões que vos trago agora. Aqui não caberia falar das verdades em qualquer outra ciência se não da que se tem inventado para os assuntos da política. Parece ser plausível inferir que se podemos encontrar espaço para questionar a produção de verdade na mais exata de todas as disciplinas, devemos tratar com bastante cautela a tentativa de transposição das suas formas quanto ao conhecimento da nossa essência. A demonstração de conhecimento da Natureza Humana é o nosso mais difícil intento, por sermos nós, simultaneamente, o objeto e o investigador. Somos a essência que, por sermos, nos é vedada conhecer.

Se concordamos que as divergências quanto às verdades existentes no mundo não partem de lugar algum senão do esmaecimento de impressões no entendimento humano, devemos supor que uma ciência destinada à política está fadada ao fracasso. Diferente das outras formas de ciência, a responsabilidade da interpretação na produção de verdades sobre nós mesmos é consideravelmente maior. Interpretamo-nos para construirmo-nos a partir do constructo que somos. De fato, seria muito interessante estudar a moralidade humana despido de qualquer moral humana; entretanto, se ainda não conhecemos a existência de um homem que não é homem, ainda teremos de nos ver com nossos próprios olhos. A existência de um mundo sensível não deve nunca ser descartada. Entretanto, os principais enunciados de filosofia política, ainda que derivados em última instância de impressões simples, habitam o mundo inteligível. A verdade de tais enunciados depende da qualidade das provas que os podem fazer vir a ser verdade.

A prova como instrumento incontestável da verdade tem a sua força relativizada de acordo com o lugar que ocupa. As verdades aceitas variam o grau de contestabilidade de acordo com a força da prova da qual dependem. E tal força só pode ser medida por nós através do seu reconhecimento. A prova de veracidade de uma sentença matemática simples se põe em um lugar de grande força quando conhecemos a sua lógica, e em outro, fragilíssimo, quando não. Se a reescrevêssemos em outros símbolos que não conhecemos, é provável que não a aceitássemos com a rapidez da vez anterior. A matemática nos surge como um bom exemplo pois pode ser considerada como um chão a partir do qual podemos erguer uma árvore de objetos e contestabilidades; imagem na qual se nem o chão é o lugar de uma força absoluta da prova, nas folhas que se fazem copa, ela é tão frágil que para fazer aceita uma verdade, é necessário que seja ajudada por outras. Sem sair do exemplo matemático, suponho que seja plausível imaginar sentenças de cálculos tão complexos que dependam de mais de uma prova.

Figuro que a prova, além disso, dependa de outras variáveis para se fazer eficaz. Como dito, creio que as verdades só nos sejam importantes se aceitas. Ainda que não encontremos verdades absolutas nas coisas do mundo. Ainda que aceitemos falácias crendo encontrar verdades, são elas que mais nos afetarão enquanto verdades forem. De certo, a vontade daquele que aceita a verdade pode variar de acordo com seus interesses, variando a importância da prova, da mesma forma que provas simples podem iludir o espectador e torna-lo crente. São, de fato, interessantes as buscas pelas verdades absolutas, mas, na política, sempre serão mais importantes as verdades aceitas.

A verdade política, portanto, está necessariamente condicionada à aceitação daqueles que são políticos.  A verdadeira essência humana estará sempre condicionada aos olhos dos que a perseguem, e mudará tanto quanto puderem mudar os olhos. Esta verdade só pode ser encontrada a partir de um princípio; que afirma que, tudo o que é só pode ser enquanto for reconhecido. Quero dizer que enquanto as essências das coisas não forem, por nós, reconhecidas, elas repousarão no reino do absoluto. Para nós, portanto, enquanto não conseguirmos mapear completamente o funcionamento do nosso cérebro – evento que devemos adiar tanto quanto possível por motivos óbvios –, disporemos somente de formas de compartilhamento de percepção, e reconhecimento de verdades.

Desta forma, podemos concluir que a distinção entre um enunciado filosófico e outro proposto por um louco, depende somente aceitação de quem os contempla, assim como loucos e normais reconhecem seus opostos como tais. Enunciados verdadeiros são, sobretudo, aqueles que nos fazem sentido; e o sentido só parece poder existir quando há, de nossa parte, algum reconhecimento. Reconhecer algo é perceber algo que já se é conhecido. Isto implica dizer que se conhecemos o modo através do qual são representados os números e os símbolos das operações matemáticas, ao percebê-los, podemos acompanhar argumentos de prova. Do contrário, não.

Feito este abrupto esforço em busca de uma teoria da verdade, podemos voltar-nos para a proposta primeira deste ensaio – a de especular sobre o modo através do qual nos fazemos Ser verdadeiros entre nós, e sobre as implicações políticas que podem derivar disto.

David Hume, já envolto aos movimentos da mente, no primeiro livro de seu Tratado da Natureza Humana, afirma o que para ele seria a mais absurda das contradições – a possibilidade de algo ser e não ser. De certo, remetia-se aos antigos, que tanto se ocuparam desta ordem de questões e nos deixaram belíssimos enunciados. Hume foi um filósofo da moral, e sobretudo, do entendimento. O conjunto de seus pensamentos, voltado para a distinção entre impressões e ideias, nos permite, ao especular sobre como cremos que somos algo, façamos a seguinte digressão: que no mundo sensível, tal qual as impressões sensíveis, o Ser é mais vivaz; enquanto no mundo inteligível, tal qual as ideias, o Ser é mais fosco. Não teremos problemas em aceitar proposições baseadas em ideias gerais de nossas características físicas; enquanto isso, escreveremos imensos tratados sobre a bondade humana. Disto é possível imaginar as coisas que podemos, para nós, ser e não ser. Enfim, é ou não, o homem, bom? É e não é. Resposta plausível, e, se a vontade de descobrir do espectador é pouca, pode vir a ser uma verdade aceita. As construções acerca do Ser humano parecem abrigar uma espécie de ambiguidade de identidade e permeiam até o fim este laborioso intento de transformar em linguagem uma intuição surgida da leitura de textos de Pierre Clastres.

A figura de Pierre Clastres nos vem através das construções da ordem de filosofia política presentes em sua obra. Os dois artigos nos quais estão presentes tais construções entrelaçam-se profundamente com a obra do filósofo Etiénne de LaBoétie. O discurso de LaBoétie possui dois títulos que referem-se aos principais temas discursados e com os dois artigos de Clastres. O Discurso de Todos Contra o Um nos ajuda a compreender A Sociedade Contra o Estado, da mesma forma que o Discurso Sobre a Servidão Voluntária seria o pano de fundo de Liberdade, Mau Encontro, Inominável.

O primeiro título de LaBoétie tem caráter panfletário e busca respostas para a seguinte pergunta: Por que nos subordinamos a um soberano? Para responder a pergunta, LaBoétie cria dois polos antagônicos, extremos, e inalcançáveis. O homem oscila entre eles, e por vezes acredita senti-los, sem saber que, como sugeriu Rousseau – com mais força para um dos polos – a nossa existência neles só é possível se imaginada, de modo semelhante ao que nos acontece antes de afirmarmos a existência de unicórnios. Da mesma forma que o homem pode produzir alucinações futuras, presentes, e passadas, pode fazer surgir aquelas que não são dadas no tempo, e por isso, podem visitar-nos sincronicamente. Desta forma nos afetam as alucinações de LaBoétie – a Liberdade e a Servidão.

A liberdade, especula-se, só é plena quando o homem não reconhece nenhuma instituição ao seu redor. Não se reconhece, portanto; e age livremente. Só assim pode ser livre no seu mais absoluto sentido. O reconhecimento de instituições políticas, ao passo que condiciona a ação humana e força a imaginação de um ponto futuro, o torna servil. A servidão absoluta ocupa o mesmo lugar imagético da liberdade, embora sejam invenções antagônicas por essência. Materializar o conceito abstrato de servidão só é possível quando pensamos em robôs, que agem única e exclusivamente a partir de configurações pré-estabelecidas. Como ainda não nos parece que os avanços tecnológicos poderão nos transformar em algo do tipo, decretamos a impossibilidade de servidão absoluta na cidade dos homens.

Percebemos que a servidão voluntária a uma autoridade é uma servidão de segunda grandeza quando concordamos que antes dela há de sempre existir a servidão voluntária às instituições humanas. O homem se torna um servo da humanidade no momento em que pensa ser homem. Da servidão à humanidade, daquilo que nos faz homens, depende qualquer tipo de servidão política posterior. É neste momento, o qual Clastres chama de mau encontro, que nos vemos homens por reconhecermo-nos. Penso que desta ideia possam derivar tantas outras, que me sinto frustrado por não ainda não poder imaginá-las. Deixemos a servidão política, da submissão a uma autoridade de lado por um momento em prol do desenvolvimento da servidão de primeira ordem. Tratemos do reconhecimento.

O homem só, com a ajuda de um espelho, reconhece-se. Ao mover-se para um lado e para o outro e perceber que a imagem refletida se comporta da mesma forma, percebe-se representado. Tal qual Pirandello, que fez o caminho inverso ao descobrir um novo nariz; o homem que se vê pela primeira vez conhece melhor seus aspectos físicos. A imagem do homem é o Ser mais forte, que permite a primeira distinção entre nós e todas as outras coisas que estão no mundo. Mas antes do espelho, o homem já se conhece. Possui uma ideia geral de homem que é composta pela forma que se percebe. O homem que vê outro se reconhece nele, e passa a crer em uma reciprocidade de sentimentos. Está fadado a nunca mais agir no outro sem levar em consideração o que lhe aconteceria. O reconhecimento do homem como tal é composto por uma verdade de baixíssimo grau de contestabilidade, o homem que vê outro e considera apenas a forma da ideia geral de homem dificilmente negará o reconhecimento. Bastasse esse tipo, e se ele fosse tão forte quanto a prova que lhe acompanha, os homens viveriam em simpatia. Há outros, no entanto, que embora não livrem os homens da servidão à humanidade, os tornam capazes de negar a simpatia. O reconhecimento de si no outro envolve outras verdades nossas. Verdades já aceitas que nos compõem, e que podem ser diferenciadas em crenças; emoções; paixões; e no que é, em geral, por nós, instituído. Antes destas, parece haver outras mais imediatas, que nos despertam sentimentos tais como a pena e a compaixão; que só são possíveis a partir de reconhecimentos de sensações mais fortes como a dor, que de tão fortes, independem do reconhecimento primeiro que torna o homem servil à humanidade.

Um homem mau é aquele no qual não reconhecemos o nosso conceito de bondade. Um homem imoral é aquele no qual não reconhecemos os aspectos que compõem a nossa moralidade. Um homem sem caráter é aquele no qual não reconhecemos ações de nossa ética. Um homem vicioso é aquele no qual não reconhecemos nossos conceitos de virtude. Não nos reconheceríamos neste homem, senão pelo fato de ser homem; e para nós, quando só isso resta, a simpatia última que sobra é muito pouca. Seria só mais um homem, não fosse a possibilidade inversa do reconhecimento. Reconhecemos nossa maldade, reconhecemos nossa parte antiética, reconhecemos nossos vícios; e vemos a simpatia se transformar em antipatia. O não reconhecimento não gera política. Se não nos conhecemos, não nos reconhecemos, e não nos sobra nada. Se nos conhecemos, mas não nos reconhecemos, por apenas nos conhecermos, não nos sobra quase nada. Se não nos reconhecemos, somos livres para praticar a crueldade sem sequer imaginá-la. Não fosse o reconhecimento, andaríamos livres pelo mundo, agindo somente de acordo com nossos interesses. Esta parece ser uma boa diferenciação entre grupo e multidão.

A multidão, amórfica em si, é experimentada na ausência de reconhecimentos geradores de simpatia. Dada a dificuldade do próximo argumento, penso que seja mais interessante fabular uma situação. Aí vai:

Imaginemos homens nossos, do mundo que conhecemos. Melhor que isso, imaginemos que pudéssemos sortear pouco mais de vinte humanos no mundo e leva-los imediatamente para um sítio no qual estariam dispostos bens necessários a tais humanos na mesma proporção vista na Terra como um todo. Caem como multidão e assim permanecem até que se dá o mau encontro. Neste instante acontece o primeiro reconhecimento. Sabem-se todos como homens por assim se conhecerem, e assim podem reconhecer-se nos outros. Somente o reconhecimento de homens como tais parece não ser suficiente para findar a multidão. O mais forte dos reconhecimentos gera a mais fraca simpatia. Neste momento eles saberão que estão na companhia de semelhantes, e mais nada. Todos se olham e se reconhecem até que um homem fala. Aqueles que reconhecem a sua linguagem logo se aproximam. Formam-se grupos que se reconhecem pela linguagem e são mais simpáticos uns aos outros. O homem não fala, em primeiro lugar, para se impor, mas para ser reconhecido. Percebamos que a situação proposta é singular o suficiente para que não confundamos a fala de tais homens com o primeiro urro de Rousseau. Voltemos às elucubrações. Uma vez que uma língua comum é estabelecida, este tipo de reconhecimento perde importância frente aos que continuarão a surgir. Daí em diante, a proximidade ou o distanciamento dos homens depende da simpatia ou antipatia surgidas dos reconhecimentos que se seguirão.

Há um outro movimento interessante percebido do fato de que o reconhecimento parte de si. Sabendo-se que a contenção das atitudes destrutivas existe pelo surgimento da simpatia proveniente do reconhecimento de si no outro, inferimos a existência de uma supremacia do sentimento íntimo sobre o da sua possibilidade no outro. Quando este sentimento íntimo está ameaçado não se leva em consideração o outro. No momento que sinto dor, geralmente não tenho pena daquele que também a sente. A primeira exceção que nos vem à mente é a promovida pela emoção que chamamos de amor. O amor mesmo é uma emoção que se faz reconhecida muitas vezes e talvez seja o grande representante dos reconhecimentos de emoção. Tal tipo de reconhecimento aparece como um dos grandes distintivos da humanidade. Destarte, podemos criar simpatia por um homem no qual reconhecemos aspectos desprezíveis ao conhecermos o fato de que ele está perdidamente enamorado, e reconhecermo-nos na mais bela das emoções humanas.

Construir uma gradação de forças de tipos de reconhecimento, entretanto, me parece um esforço inútil, tendo em vista que a vivacidade do conhecimento da emoção, da crença, etc., varia de acordo com as individuações, e com os acidentes constituintes das verdades de cada um de nós. Para as relações humanas não importam as verdades absolutas, não importam muito sequer o modo através do qual processamo-las em nossa mente, desde que acreditemos que podemos percebê-las as reconhecendo nos outros. A relação de contradição entre imposição e a aceitação de uma verdade equivalem-se a de opressão e obediência na política.

Para manter as nossas instituições, reprimimo-nos a nós mesmos. As maneiras, os tratos, as regras de agir, nos são impostas por uma espécie de autoridade social. Como exemplo disto, posso mencionar um caso que me acaba de ocorrer. Aqui, na biblioteca na qual escrevo este ensaio, em um espaço destinado à leitura e ao silêncio, entrou um grupo de estudantes que pretendiam debater a feitura de algum trabalho em conjunto. Já entraram falando alto, e foram recebidas com bufadas e olhares repreensivos pelos que se desconcentraram com a entrada libertária do grupo. Ao reconhecer as expressões de repreensão, diminuíram o tom de voz, mas continuaram a atrapalhar. Nos poucos minutos em que ouvíamos a fala das meninas, ouvíamos também livros fechando, sons de descontentamento, e gente que se levantava lançando-as olhares furiosos. Os estudantes do grupo mantinham a resistência da sua própria ética de biblioteca, segundo a qual, parece que falar era permitido, desde que em baixo tom. Atônito com a percepção de como aquela situação se encaixava com as coisas que estava a esboçar, pude observar um homem que dirigiu-se ao grupo de maneira brusca. Disse algo como “Olha só, este espaço é reservado para a leitura, vocês estão atrapalhando. Eu gostaria de pedir que vocês escolham entre se calar ou retirar.” Os estudantes entreolharam-se e decidiram partir, mas não sem antes sussurrar frases de repúdio às maneiras grosseiras como foram tratadas. A historieta não acaba aí. Minutos depois, outro rapaz se levantou e foi em direção do primeiro e com muita polidez, disse: “Boa tarde, amigo, eu sei que você deve estar estudando há muito tempo, deve estar estressado. Sei que o grupo que estava aqui estava errado, que estava atrapalhando. Mas eu não acho que você falou da forma certa com eles. Eu gostaria de pedir ‘do fundo do meu coração’ que você os peça desculpas, e que da próxima vez, leve essas coisas de uma maneira melhor.” Foi nesse instante que eu decidi que precisar pegar o caso como exemplo. Acho que mais ainda quando ouvi a expressão “do fundo do meu coração”. É ou não um dos mais belos argumentos retóricos? Através dele se clama o reconhecimento de si no ser que pede através das mais belas emoções que este pode ter. É quase um grito por compaixão.

Enfim, quando não conhecemos uma instituição e agimos de modo a confrontá-la, conhecemos a consequência deste confrontamento. A servidão às instituições depende do vislumbramento de um ponto futuro, da expectativa de consequência. Depende, portanto, da memória e da imaginação. Respeitamos as instituições que consideramos válidas de acordo com as nossas verdades, ou de acordo com a consequente repressão esperada. Portamo-nos de duas formas possíveis. Seguindo as sequências: Conhecimento, reconhecimento, servidão; ou conhecimento, reconhecimento, insurreição. Só a insurreição à pequenas formas de servidão é capaz de mudar hábitos. É crível que a insurreição derive do lugar do reconhecimento de instituições, pois se as transgredimos por não reconhece-las sem que ninguém nos consiga forçar a obedecer, uma nova instituição é criada. Se ninguém reclamasse do grupo de estudantes na sala de leitura, pode ser que um hábito se instaurasse. E um outro grupo que debatesse algo na sala de leituras respondesse a algum outro leitor incomodado com argumentos do tipo: “sempre pôde se debater aqui, escolha outro lugar você.” A insurreição ocorre, também, quando reconhecemos características ruins na instituição percebida. O reconhecimento de características viciosas em certa instituição é o prelúdio da insurreição contra ela. O mau príncipe de LaBoétie só é mau por não ter suas verdades reconhecidas como boas.

Na multidão não há fortes instituições estabelecidas. Nela a repressão de comportamentos viciosos só ocorre de forma fragmentada, de modo que a pluralidade acentuada das verdades proporciona inúmeros conflitos diretos. O que faz com que, embora quando vista de longe a imagem da multidão pareça única, quando vista de dentro só pode ser representada pela desordem. O conhecimento da desordem pode incomodar, mas não tanto quanto o conhecimento da violência que a caracteriza. A institucionalização da violência faz surgir, do seu reconhecimento, o temor. E como quem teme deseja proteção, vemos surgir o forte. Percebamos que, no lugar da política, o forte não se caracteriza necessariamente pela força física, mas pela força do reconhecimento que pode proporcionar na maioria daqueles que o obedecem. A unicidade e a regularidade de instituições acalmam aqueles que se reconhecem nelas. Assim, estes obedecem, voluntariamente, em favor da ordem que mantem tais instituições.

O fim deste processo nos foi dado historicamente. Houve Estados que, após descobrir tal movimento, se tornaram não só apologistas da unicidade das instituições humanas, mas do seu ditado pela força; que resultou no extermínio daqueles que não as reconheciam. Não é difícil se perceber sempre à beira de Auschwitz, ou até sentir a Inquisição Espanhola bater a porta quando ouvimos as opiniões públicas a respeito do que fazer com criminosos. O reconhecimento dos vícios dos que cometem delitos esmaga a alma humana, e os põe bem longe do que conhecemos como humanos. Temamos as verdades universais que nos são impostas, e apostemos no caráter crítico presente na complexidade dos nossos reconhecimentos, sem deixar de percebê-los sempre longe de qualquer verdade universal.  A beleza da pluralidade de crenças está no movimento proporcionado por elas, e a sua manutenção sempre será fundamental.

A partir da forma como Clastres descreve a sociedade que se opõe ao Estado, podemos supor que os indígenas reconheçam-se, nas múltiplas esferas, de forma mais intensa do que quando pensamos nas descrições da multidão. Não há perfeição, não há servidão ou liberdade completa; mas um arranjo mais harmônico que faça com que os indivíduos que compõem tais sociedades não desejem obediência voluntária a algum soberano. Não há pluralidade em demasiado, e a ordem pode se manter devido a um mais intenso compartilhamento de emoções, crenças, instituições, etc., que os permitam reconhecer-se tanto quanto necessário para criar as suas tão estudadas estruturas de uma forma mais sublime.

A distinção da alucinação apresentada ou a sua tentativa de aplicação em tribos indígenas deve ser feita com bastante cautela. Pierre Clastres, como bom antropólogo que é, busca, no conhecimento de instituições indígenas, provas para argumentos políticos europeus. A antropologia parece ter como fundamento original, o estudo da essência humana, daquela tal que é encontrada todos os dias por quem quer que pense na vida. Da frustração em não encontra-la, são produzidos grandes trabalhos que descrevem maneiras de tais “primitivos” em um esforço final pautado no contraste e no primeiro tipo de reconhecimento aqui mencionado. Índios são homens, e como homens, também expressam a nossa essência. De certo, não há filosofia política sem antropologia, mas é preciso reconhecer que toda construção antropológica deve partir do pressuposto da impossibilidade de definir realmente o que somos.

Penso poder afirmar que somente sabemos o que somos de forma efêmera. Sabemos o que somos somente enquanto duram todos os nossos reconhecimentos nos outros. Penso que somente desta forma podemos duvidar se somos ou não somos ao mesmo tempo. Desta forma podemos acreditar que somos a mais absurda das contradições.

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Hugo Arruda

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.