A Política como Transformação – Número 49 – 02/2012 – [15-25]

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A ciência política moderna tem uma detestável tendência ao conservadorismo. As opiniões que freqüentemente exprimem muitos de seus especialistas contrariam o senso comum não por ultrapassá-lo, enxergando aquilo que os leigos não percebem, mas sim por realizarem malabarismos conceituais para situar-se aquém dele no que se refere ao ser progressismo. Por exemplo, para que serve um sistema eleitoral? Um leigo provavelmente responderá, de forma mais ou menos elaborada, que serve para converter a vontade popular em poder, para que aqueles escolhidos pelos eleitores por meio do voto sejam quem tem poder para governar e legislar. Para boa parte dos cientistas políticos, no entanto, o sistema eleitoral serve para levar a um governo estável e à governabilidade, mesmo que a própria vontade popular tenha que ser restringida para que isso ocorra.

Não se trata de um problema de metodologia utilizada por esses cientistas políticos, mas de princípios, de uma questão normativa. Mesmo que freqüentemente alegando estarem livres de normatividade e aptos a seguir o mais puro e asséptico caminho científico neutro, politólogos, como qualquer cientista social, baseiam-se em grande parte em seu sistema de crenças. Este, por sua vez, constantemente está mais próximo a virtudes do status quo do que à necessidade de transformação.

É claro que a Ciência Política não é um bloco ideologicamente homogêneo e que não são os mesmos autores-ícones que influenciam a todos os pesquisadores. Entretanto, se é feita aqui certa caricatura do cientista político, não se pode apontar que seja ela absurda, dadas as referências que aqui serão mencionadas. São figuras canônicas, como o austríaco Joseph Schumpeter, o estadunidense William H. Riker, o italiano Giovanni Sartori, e mesmo, talvez em menor medida, o argentino Guillermo O’Donnell. A explicação da forma como eles defendem a estabilidade em detrimento da vontade popular será a base do presente texto.

A defesa do status quo na Ciência Política se dá, claramente, pelo menos de duas formas distintas. Uma é a adoção de premissas que levem logicamente a uma conclusão contrária à transformação. Por melhor que seja o seu método, a sua técnica, o resultado será impreciso se a premissa não estiver correta. A outra forma pela qual politólogos defendem o status quo, bem mais fácil de se desconstruir e deslegitimar, é pela adoção de dois pesos e duas medidas. Assim, uma mesma característica pode ser positiva para aquilo que se defende, mas condenável quando encontrada naquilo que se ataca.

O problema, portanto, não está nas ferramentas. Não se trata de condenar o rigor científico. O problema está na intenção. Muda-se o objetivo, põe-se o interesse público como primordial, assumem-se explicitamente as premissas adotadas, e adotam-se princípios normativos tais como o da justiça social não meritocrática, o da solidariedade em detrimento do individualismo egoísta, e o da necessidade acima de uma futilidade travestida de liberdade. Feito isso, a própria ciência política se transforma, e passa a cumprir uma função social em vez de servir como âncora, como técnica legitimadora da manutenção de um status quo indesejável.

É problemático o recorrente discurso de que estudar instituições é ser conservador. Urbinati (2006), por exemplo, faz uma clara separação entre concepções não-minimalistas e concepções minimalistas de democracia. Estas seriam dominantes e defenderiam um conceito puramente procedimental, a mera votação em representantes em intervalos regulares. É verdade que é comum na ciência política este reducionismo que ela critica, mas é um erro apresentar a questão na forma dicotômica. Isso elimina a possibilidade de discutir modificações democratizantes nas próprias instituições. Associar o debate sobre eleição a um suposto desinteresse pela participação e pela representação ignora que estas não se resumem àquela mas têm nela um lócus importante. O aperfeiçoamento do método da eleição é um pólo relevante para a democratização da representação, ainda que não o único.

Ao se apresentar o debate sobre os elementos extra-eleitoras ou mesmo extra-institucionais da democracia como o único legítimo e apresentar os estudiosos da questão eleitoral como homogêneos, presta-se o desserviço de excluí-la como um dos locais de luta pela democratização. Com isso, os prejudicados são justamente os estudiosos de instituições que desejam uma democratização, uma ampliação do poder popular, uma priorização da justiça social sobre o lucro e o mercado, uma transformação. Os defensores do status quo, que são o alvo da autora e dos demais adeptos dessa rationale, agradecem.

O objetivo aqui, no entanto, não é o de atacar os antagonistas do estudo das instituições, mas sim, uma vez argumentado o quanto o estudo das instituições não significa necessariamente a defesa do status quo, apontar o problema realmente existente em parte considerável da ciência política mais interessada nas instituições, especificamente a partir da crítica a alguns de seus cânones.

Schumpeter: ataque a uma “doutrina clássica da democracia”

Joseph Schumpeter critica em seu “Capitalismo, socialismo e democracia” a doutrina clássica da democracia, que teria por base o racionalismo utilitário, e apresenta a democracia como mero método, como um arranjo institucional, tendo uma importância puramente instrumental. A democracia, para Schumpeter, é o sistema em que as pessoas têm a oportunidade de aceitar ou rejeitar os líderes graças a um processo eleitoral competitivo, em que estes são votados em intervalos regulares.

A tal “doutrina clássica da democracia” atacada por Schumpeter é, nas palavras de Miguel (2005), uma “mistura pouco criteriosa de senso comum e autores clássicos, capaz de juntar vozes tão dissonantes quanto Rousseau e os utilitaristas, para criar um adversário mais adequado”. Ainda assim, essa concepção influenciou profundamente outros autores canônicos da ciência política, como Sartori e Riker.

Conforme Miguel (2002) já havia observado antes, Schumpeter redefine a democracia para adequá-la à suposta realidade apresentada pelas antidemocráticas teorias das elites de Pareto, Mosca e Michels. O objetivo era a defesa do capitalismo, e o ataque ao socialismo, mas as conseqüências vão além, pois serve ainda para deslegitimar qualquer tentativa de interferência popular. À maneira de Pareto (1966), para Schumpeter a democracia se resume a uma disputa entre elites.

Schumpeter (1961) define democracia como um método institucional para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire a liderança, o poder de decidir, mediante uma luta competitiva entre possíveis líderes pelos votos do eleitor – uma concorrência livre pelo voto livre –, sendo, portanto, o governo dos políticos. Seria irreal atribuir ao eleitorado um grau elevado de iniciativa, já que esta dependeria do candidato que se apresentaria à eleição e do apoio que pudesse despertar: o eleitor apenas aceitaria como a preferida uma das candidaturas disponíveis, ou rejeitaria todas.

À semelhança de Pareto (1966), Schumpeter diz que os líderes e grupos políticos explorariam a ausência de racionalidade dos indivíduos (que desceriam para um nível inferior de rendimento mental quando tratassem de política) modelando artificialmente suas ideias preconcebidas, que não seriam suficientemente definidas, para manufaturar a vontade do povo – que, portanto, não seria genuína, e seria justamente a “vontade geral” da doutrina clássica da democracia. Desse modo, a vontade popular seria resultado e não causa do processo político, com ela e os fatos sendo manipulados pelos mesmos métodos da publicidade, em que se torcem as premissas em uma forma particular, casuísta, em vez de ajudarem o indivíduo a formar uma opinião. Como as decisões do povo seriam de curto prazo e manipuladas, ele não seria ator do curso da história, e outros decidiriam em seu nome, de forma oportunista. Tal como anteriormente argumentou o elitista italiano, o economista austríaco considera que o apoio à democracia, portanto, não seria racional, e sim, como uma religião.

É justamente a falta de racionalidade na política que Schumpeter – e também Pareto – usa como argumento para defender o insulamento da economia em relação a ela. A inconsistência da ideia de que há racionalidade na economia mas caos na política é corretamente apontada por Mackie (2003, pp. 432-440). É por isso que Mackie (2003) denominou a teoria política schumpeteriana como “doutrina do irracionalismo democrático”: não existiria governo do povo e sim governo eleito pelo povo. Para Schumpeter, a democracia é necessariamente cheia de defeitos e não tem qualidades racionalmente apontáveis. Por isso mesmo, ele não tem qualquer preocupação normativa com a qualidade da democracia, pretendendo apenas formar um conceito aplicável a todas as democracias que existem.

Tal objetivo não é algo conservador em si mesmo, quando a intenção é, por exemplo, realizar uma comparação empírica entre um número grande de países com regimes não-autoritários – O’Donnell (1999) menciona esta utilidade das “teorias realistas” de democracia –, mas é profundamente problemático se modelos assim são defendidos para serem implementados. Por isso, ele adota uma explicação minimalista, para que qualquer governo com a mais leve aparência de democracia possa ser incluído, e desdenha de medidas que possam, ainda que não atingir o ideal das doutrinas do passado incapazes de explicar a realidade atual, ao menos se aproximar delas, por meio de algo mais semelhante à representação efetiva, ou à interferência popular, ou ao engajamento na política.

Além de o significado de democracia ser reduzido à competição eleitoral livre, sua concepção de “livre” é pouco rigorosa. Para Schumpeter (1961), eleições indiretas, colégios eleitorais, restrições a quem pode votar, fraudes e trapaças, nada disso faz com que o sistema não seja democrático. Ele diz que, para o conceito de democracia ser realista e abranger toda sua diversidade de tipos, tem-se que manter os casos semelhantes aos fenômenos econômicos, como a concorrência desleal, fraudulenta ou a limitação da concorrência, e só excluir as “maneiras não-democráticas de obter liderança” – isto é, “os casos nos quais toda a concorrência com o líder estabelecido é impedida pela força” (SCHUMPETER, 1961, p. 330) –, como a insurreição militar.

Fraudes, influência do poder econômico, manipulação da mídia e regras que deturpam a intenção do eleitor não são, para Schumpeter, uma razão para considerar que a eleição não é livre. O objetivo de democracia para ele, como notou Miguel (2005), é apenas gerar uma minoria governante legítima, e eleições não-violentas, dentro dos seus parâmetros, são suficientes para legitimar a elite no poder, mesmo que ela trapaceie ou tire proveito de formas mais sutis de evitar uma concorrência real.

Em sua conceituação de democracia, Schumpeter (1961: 343) inclui tanto o poder de formar governo, direta ou indiretamente, como o de dissolvê-lo (mas apenas pela recusa de reelegê-lo, na eleição seguinte, nunca antes), mas jamais de controlá-lo. Para Schumpeter, deve haver uma “divisão do trabalho” entre os eleitores e os políticos eleitos, não podendo os primeiros restringir a liberdade de ação dos últimos. Segundo Schumpeter (1961, p. 357), “os eleitores comuns […] necessitam compreender que, uma vez tendo elegido determinado cidadão, a ação política passa a ser dele e não sua [… e …] devem se abster de instruí-lo sobre o que fazer […] (SCHUMPETER, 1961, p. 357).

Como não quer que o povo interfira, Schumpeter (1961, p. 361) considera que “o método democrático não funciona da maneira mais favorável nos casos em que a nação está muito dividida sobre questões fundamentais da estrutura social” e que a democracia funciona melhor onde há pensamento único.

Em síntese, Schumpeter considera a população irracional, cujas emoções são manipuláveis por uma elite que disputa eleições não-violentas (ainda que não necessariamente limpas e certamente cheias de defeitos) com outras elites, cabendo aos eleitores votar aleatoriamente em uma das opções e rejeitar as demais (todas devem, preferencialmente, defender políticas semelhantes) para legitimar que ela aceda ao poder, de onde ela poderá governar como considerar melhor, sem interferências populares. Riker repetiria tal defesa do status quo, também atacando frontalmente os defensores da democratização.

Riker: concepção idealista de democracia é “populismo”

William H. Riker (1982) também critica concepções idealistas de democracia, e o faz com um “espírito próximo ao de Schumpeter, mas de maneira mais formalizada”, na precisa definição de Miguel (2005, p. 11). Segundo Riker, fundador da “escola de Rochester”, o ideal da democracia – isto é, a afirmação normativa de como queremos que seja o mundo natural e a interação humana –, por melhor que seja, só faz sentido se o seu método puder realizá-lo.

O argumento segue, tal como o de Schumpeter, pela afirmação de que não é possível formular a vontade popular e, portanto, não faz sentido pretender que ela seja atendida, ou, em outros termos, que haja governo do povo. O politólogo estadunidense observa que uma mesma votação pode ter resultados diferentes dependendo da fórmula eleitoral adotada, o que seria uma evidência de que os sumários sociais produzidos pela eleição não atendem ao que almeja a teoria democrática, apesar de essa premissa estar na base da sua defesa do ideal democrático.

Ele questiona o valor das sínteses sociais do método democrático para o ideal democrático (isto é, das decisões dos cidadãos nas eleições e dos legisladores nas assembleias) e contrapõe tais tentativas inúteis à sua teoria analítica sobre o modo como funciona o mundo natural e sobre que tipos de resultados podem ser alcançados.

Riker divide as visões da democracia, então, em dois tipos, o “populismo” e o “liberalismo”. O que ele chama de “populismo” seria a “forma rousseauniana de ver o voto, com a ideia subjacente de que o governo deve corresponder ao que os cidadãos julgam ser o melhor, de que as políticas públicas devem corresponder à vontade do eleitor. Ele condena o “populismo” por não considerá-lo factível e defende, em seu lugar, a outro tipo de interpretação do voto, que ele nomeia como “liberalismo”. Seria a forma madisoniana de ver o voto, pela qual deveria existir da possibilidade de um político que faz o mal ser rejeitado.

Mackie (2003) critica duramente a novilíngua rikeriana e, inclusive, associa genealogicamente Riker diretamente aos teóricos elitistas. Mackie (2003) constata que além de tratar suas duas interpretações do voto como exaustivas e excludentes, ele adota o rótulo pejorativo de “populismo” para se referir ao “que o resto do mundo chama de democracia”, isto é, “a qualquer teoria democrática que dependa de uma conexão sistemática entre a opinião ou vontade dos cidadãos e a política pública”, que ele considera como impraticável. Assim, pode defender uma restrição à democracia sem se apresentar como antidemocrático.

Tanto o “populismo” como o “liberalismo” teriam como condição necessária o caráter popular, que assegura a participação e a igualdade, sendo a eleição de novos governantes, para ambos, o único remédio possível para governos ineficientes. Pode-se criticar essa visão schumpeteriana de divisão do trabalho entre políticos e eleitores, como se não fosse possível pressionar os governantes por meio de manifestações e outras ações coletivas. Entretanto, há aí outro problema da argumentação central de Riker, também salientado por Mackie, além do elitismo demofóbico, e que é uma falha bem mais básica e rasteira: o uso de dois pesos e duas medidas.

Segundo Riker, reconhecidas essas semelhanças fundamentais entre o “liberalismo” e o “populismo”, o que diferenciaria ambos seria a condição suficiente. Enquanto para o “populismo”, a liberdade seria obtida incorporando-se a vontade do povo nas ações dos governantes, o que seria inalcançável, para o liberalismo a restrição aos governantes pela limitação do mandato e eleições periódicas seria condição suficiente para assegurar a participação e, com isso, gerar liberdade. Assim, a superioridade do “liberalismo” sobre o “populismo” seria justamente seu objetivo rebaixado: como é minimalista e nada diz sobre a qualidade da democracia, tem um objetivo factível, sendo, assim, logicamente completa.

Há aí claramente o uso de dois pesos e duas medidas, pois enquanto a visão “populista” não se sustentaria em função da incerteza de que o sistema eleitoral adotado reflita o amálgama das visões dos cidadãos, a condição “liberal” já seria atendida se houvesse a possibilidade de um mau político ser rejeitado, mesmo que ele não fosse. Além de criar uma bipolaridade inexistente, portanto, Riker considera que um dos pólos se valida mesmo sem a certeza, enquanto que a incerteza inutilizaria a validade do outro pólo. Assim como para Schumpeter, para Riker o resultado do voto é, portanto, irracional e sequer importa, só sendo relevante a sua realização, para legitimar o governo eleito.

A antidemocrática teoria de Riker sofreu ainda um último e mais devastador ataque de Mackie, que percebeu que a classificação bipolar do autor, além de “idiossincrática” e “polissêmica”, é “inconsistente em pontos cruciais” do próprio argumento dele. Afinal, se não há garantias de que os governantes podem ser removidos, já que haveria uma aleatoriedade, então não é verdade que a participação dos cidadãos restrinja os governantes.

Riker repete a maior parte da argumentação de Schumpeter, apesar da diferença de estilo. Como pontos desviantes mais substantivos, porém sem modificar profundamente o viés conservador do status quo e alienante da participação, estão o fato de que ele enfatiza menos a irracionalidade da população e mais a inexeqüibilidade da agregação de preferências (inspirado no teorema da impossibilidade, de Kenneth Arrow), e uma aleatoriedade da possibilidade de uma decisão de rejeitar um mau governante poder contribuir para a sua destituição (ou melhor, não reeleição).

Sartori: a “correção” do “pluralismo exagerado”

Giovanni Sartori é um autor ainda relevante para diferentes áreas dos estudos institucionais, como o das formas de governo e o dos sistemas eleitorais. Em sua análise dos últimos, ele revela implicitamente o quanto é herdeiro das concepções schumpeteriana e rikeriana de democracia, de modo semelhante ao que ocorre com boa parte dos pesquisadores da ciência política.

Sartori (1996) observa que o efeito dos sistemas eleitorais sobre eleitores pode variar de “fortemente restritivo”, como nos sistemas majoritários, a “completamente não-restritivo”, na representação proporcional pura. Sistemas restritivos reduzem as possibilidades de voto do eleitor ou o inibem de votar em sua primeira preferência (em outros termos, restringem o chamado “voto sincero” e estimulam o “voto estratégico”) por reduzir o número de candidatos com chances reais.

Essa correta compreensão dos sistemas eleitorais, no entanto, está acompanhada da concepção normativa de que a vontade popular deve ser limitada. Sartori define os sistemas eleitorais como “fortes” se limitam os eleitores e reduzem os partidos, e “fracos” se não o fazem. Ainda mais evidenciadas tornam-se suas prioridades (estabilidade e governabilidade em vez de correspondência da vontade popular) ao afirmar que, se não há o efeito redutor dos partidos, “o sistema eleitoral se torna ineficaz”.

Desse modo, os sistemas proporcionais – como é o caso do adotado no Brasil para a eleição de deputados e vereadores – seriam “fracos”, por não imprimirem um efeito sobre o resultado, espelhando diretamente a vontade do eleitor. Na opinião de Sartori, isso possibilita que o eleitorado se disperse e que haja radicalização e polarização. O autor defende a adoção de um sistema majoritário (como, aliás, muitos nos partidos de oposição e na imprensa têm feito no país), que ele considera “forte” justamente porque limita a vontade do eleitor, forçando-o a votar estrategicamente e não “sinceramente”. O resultado tende a ser a convergência para o centro, sem radicalismos que ameacem o status quo.

Fica claro que Sartori está de acordo com a opinião de Schumpeter de que a democracia funciona pior onde a nação está muito dividida. Entretanto, nesses casos, que ele chama de “sociedades difíceis”, Sartori admite que a representação proporcional possa ser adequada, mas não sem fazer uma ressalva, que reforça sua posição contrária à supostamente desestabilizadora interferência popular: o sistema proporcional deve ser “corrigido”. Esse é o termo que ele emprega para se referir a mecanismos que limitem a proporcionalidade (há vários, como, por exemplo, fórmulas que sobrerrepresentem os primeiros colocados e a cláusula de barreira).

Sartori vai além, afirmando que “na sua forma pura, a representação proporcional é quase sempre contraproducente” (SARTORI, 1996, p. 91). O objetivo do sistema eleitoral, portanto, não seria converter a vontade popular em poder, e sim limitá-la. Livre, ela levaria a radicalismo, polarização, sairia do “centro”, ameaçaria o status quo. Nas palavras dele, a representação proporcional pura, ou mesmo a “quase-pura”, leva a uma fragmentação do sistema partidário baseada em um “pluralismo exagerado”. Por “pluralismo exagerado” Sartori entende sistemas políticos em que tenha presença parlamentar um número maior do que cinco partidos! Para que a representação proporcional pudesse ocorrer nas “difíceis” sociedades heterogêneas, então, seria preciso “corrigi-la”, adotando-se um “modelo impuro de proporcionalidade.” Há, portanto, uma ideia explícita de que é um erro a ser corrigido ter no parlamento uma reprodução da diversidade de opiniões da população. Aliás, a reduzida quantidade de seis partidos já seria, para ele, um “pluralismo exagerado”.

Sartori considera que as eleições são necessárias para legitimar a democracia, tal como Schumpeter e Riker, mas, como eles, associa a vontade popular a caos. Sabendo, como Riker, que sistemas eleitorais diferentes levam a resultados diferentes, em vez de desqualificar, como o colega de Rochester, a votação em si, Sartori prefere adotar a defesa do sistema que melhor restringir o incômodo eleitor. Dessa forma, nesse aspecto, o politólogo italiano se alinha mais à ideia de Schumpeter de que o caos está já nas preferências dos eleitores e não só em sua agregação, como indica a linha de argumentação rikeriana.

Sartori defende “uma mistura satisfatória de representação adequada com suficiente governabilidade”. Por “mistura satisfatória” entenda-se submissão da representação à estabilidade. Por “representação adequada” deve se entender “restrição da representação”. Em síntese, para ele os sistemas eleitorais devem ser tão “fortes” quanto a sociedade viabilizar (“sociedades difíceis” requerem sistemas “fracos” “corrigidos”), para que sejam “eficazes” no objetivo de restringir o eleitorado, que tende a um “pluralismo exagerado”. Sartori não parece, como Riker, considerar impossível que sumário social produzido pela eleição atenda à vontade do eleitor; ele acha que isso ocorrer é prejudicial à estabilidade mesmo.

O’Donnell: “cláusulas de razoabilidade” das liberdades na democracia

Guillermo O’Donnell (1999) observa que há “definições prescritivas” de democracia, que são deontológicas, discutem como deve ser a democracia, mas advoga pela adoção de uma “definição realista”, para poder classificar os países como claramente não-democráticos e autoritários ou como “democráticos” (que cumprem requisitos mínimos, ou “poliárquicos” na terminologia dahlsiana) e realizar comparações empíricas entre eles.

A democracia, segundo o autor, requer uma série de características, que ele sintetizou a partir de revisão bibliográfica. As eleições devem ser competitivas (mínimo de dois concorrentes, com oportunidades razoáveis de informar aos potenciais eleitores sobre as suas opiniões), livres (ninguém é coagido), igualitárias (todos os votos valem o mesmo), decisivas (quem se elege toma posse e pode tomar as decisões que o marco legal e constitucional lhe autoriza), inclusivas (muitos podem votar e potencialmente ser votados) e institucionalizadas (há a expectativa generalizada na população de que as eleições sempre ocorrerão em períodos e/ou condições pré-determinados por lei). Além dessas características das eleições limpas, a democracia requer ainda liberdades e garantias.

Para um critério restritivo de democracia, não pode ser enumerada uma lista infindável de liberdades necessárias. Segundo muitos autores, as liberdades e garantias relevantes para que haja democracia são as de expressão, associação e informação. O’Donnell se complica quando afirma que cada uma dessas liberdades tem uma “cláusula de razoabilidade”, um limite interno, que geralmente está implícito na teoria da democracia. Em seus exemplos, a liberdade de associação é limitada por não permitir associações com fins terroristas; a liberdade de expressão é limitada pela proibição legal de calúnia e difamação; e a liberdade de informação não impede a oligopolização dos meios de comunicação de massa.

Estará mesmo a oligarquização da mídia no mesmo nível de “razoável” exclusão da lista de garantias fundamentais para a democracia, tal como a calúnia e as organizações terroristas? O’Donnell diz ser útil uma definição realista e restritiva de democracia, que não incorpore outros fatores “não situados no plano do regime”. Mas o que são “fatores não situados no plano do regime”?

O próprio autor adota a seguinte definição de regime: “padrões formais e informais, explícitos ou implícitos, que determinam os canais de acesso às principais posições do governo, as características dos atores admitidos ou excluídos dessas posições e os recursos e estratégias que eles podem usar para alcançá-las.” Oligopolização da mídia não está no plano do regime, então? A mesma pergunta pode ser feita em relação ao financiamento privado e ilimitado de campanha, à exclusão de imigrantes, e a muitas outras características presentes na maior parte das poliarquias do mundo. Ainda que menos conservador que Schumpeter, Riker e Sartori, o rigor científico de O’ Donnell diminui quando ele considera que maior democratização ameaça o status quo.

Considerações finais

As críticas de Urbinati (2006) aos estudos sobre o voto são, no fundo, críticas à concepção “liberal” de Riker, ou à “divisão de trabalho” sustentada por Schumpeter. É, de fato, limitada a compreensão da eleição não como um meio, mas como a democracia em si. Entretanto, ela mantém a dicotomia rikeriana tão corretamente condenada por Mackie (2003). Todo estudo das instituições passa a ser visto como inútil para a democratização da sociedade, o que significa abrir mão de um lócus fundamental de luta política.

Voltando, uma vez mais, a crítica ao primeiro grupo, há que se reconhecer que a defesa da estabilidade sempre foi central no pensamento político. Aristóteles, talvez o pioneiro na política comparada, analisou as constituições das cidades-estado gregas, preocupado com a transição das variações boas de cada forma de governo – “monarquia”, “aristocracia” e “politeia” – para a versão pervertida, degenerada, em que quem governa visa ao seu interesse particular: “tirania”, “oligarquia”, “democracia”. No Renascimento, Maquiavel aconselhou o príncipe como se manter no poder em uma época em que a alternância no governo se dava a partir de punhaladas nas costas e veneno nas taças.

Não há, obviamente, nenhum problema em se preocupar com a estabilidade. Diante de um cenário de instabilidade, tornam-se improváveis a confiança, o compromisso, o planejamento, as metas de longo prazo, o estabelecimento de regras com as quais todos estejam de acordo e pelas quais todos possam coexistir sem que o mais forte destrua o mais fraco. Entretanto, a estabilidade é apenas um elemento importante, não pode ser o objetivo final, e essa crítica se aplica a parte considerável dos debates acadêmicos sobre reformas institucionais.

Schumpeter e Sartori claramente adotam a premissa de que a vontade do eleitor leva ao caos, à instabilidade, a conseqüências nefastas para a sociedade. Todo o argumento deles decorre daí. Riker e O’Donnell são menos explícitos no estabelecimento de tal premissa, mas ambos (bem mais claramente o primeiro) forçam a argumentação, adotando dois pesos e duas medidas.

A estabilidade não é um bem por si mesmo; a facilidade de governar é nociva se as decisões contrariarem a maioria; ditaduras freqüentemente mostram isso. Diante da presença maciça de um discurso que pretere a democracia em nome da estabilidade, as palavras de John R. Hibbling (1991:183-184) são esclarecedoras. Ele trata do Congresso estadunidense como seu objeto de estudo – o que prova que o conservadorismo e o estudo das instituições não precisam andar juntos –, mais especificamente, da enorme improbabilidade de um desafiante derrotar nas urnas um deputado que se candidate à reeleição. Sua observação, no entanto, é generalizável para as instituições em geral, e os politólogos deveriam repeti-la como mantra: “A estabilidade, por si mesma, não é sempre ruim, mas o é no caso de uma instituição que supostamente deveria ser ‘responsiva’ às mudanças de espírito e de preocupações do público.”

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Guilherme Simões Reis

Referências:

HIBBLING, John R.. Congressional careers: Contours of life in the U.S. House of Representatives. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1991.
MACKIE, Gerry. Democracy defended. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
MIGUEL, Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”. BIB, n. 59, 2005, pp. 5-42.
___ “A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo”. Dados, vol. 45, n. 3, 2002, pp. 483-511.
O’DONNELL, Guillermo. “Teoria democrática e política comparada”. Dados, v.42, n.4, 1999.
PARETO, Vilfredo, Sociological writings. Editado por S. E. Finer. Nova York: Praeger, 1966.
RIKER, William H.. Liberalism against populism: A confrontation between the theory of democracy and the theory of social choice. São Francisco: W. H. Freeman, 1982.
SARTORI, Giovanni. Engenharia Constitucional: Como mudam as constituições. Brasília: UnB, 1996.
SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática?. Lua Nova. São Paulo, n. 67, 2006, pp. 191-228.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.