Hannah Arendt, buscando ferramentas para pensar o totalitarismo, lança mão de uma operação filosófica que tem como corolário a própria preservação das condições de pensamento: a compreensão . De maneira distinta das questões de método, nas quais a adequação ao objeto é o tema fundamental, Arendt procura uma possibilidade de reflexão que resguarde o sujeito do pensamento e a própria atividade de pensar. Em outras palavras, ela está preocupada com o pensamento como atividade vital, dadas as práticas de aniquilação da vida com as quais se confronta.
A compreensão é uma atividade na qual se mantém um vínculo com o senso comum para que o pensamento não se torne uma máquina de destruição a serviço de suas próprias razões. É deste ponto que parto para defender algumas considerações sobre um evento que ocupa a pauta das discussões públicas no Brasil de modo preocupante: a greve dos policiais militares da Bahia e seus desdobramentos ao longo dos últimos dias.
A ocupação da Assembleia Legislativa baiana por parte dos policiais grevistas, associada a uma onda de ações violentas em Salvador, fez com que o governador Jaques Wagner invocasse o mecanismo constitucional de garantia de lei e ordem (GLO). Isto fez com que o governo federal operasse uma intervenção militar na qual estão mobilizados o Exército, a Polícia Federal e a Força Nacional, num contingente que pode atingir quatro mil homens.
Ainda que o mecanismo da GLO preveja uma intervenção que tem como finalidade a garantia de condições mínimas de manutenção dos serviços de segurança pública em situações de exceção, o foco da ação das forças federais foi a desocupação da Assembleia baiana.
Não entrarei no mérito (mesmo este sendo muito pertinente) do questionamento da própria GLO, a partir da constatação da incapacidade (e da impossibilidade) das forças armadas prestarem serviços de segurança pública. Limito-me a tentar uma reflexão sobre dois pontos: (i) o significado político da GLO, para além de sua legalidade; e (ii) o modo pelo qual se estabelecem posições perigosas em relação à legitimidade do movimento grevista de policiais.
Mesmo correta do ponto de vista constitucional a invocação do mecanismo de garantia de lei e ordem no caso da greve baiana parece um recurso extremo. Em nossa história política recente a memória de tanques e aparato militar nas ruas para a “garantia de ordem” possui um significado específico. É contra este cenário que as lutas por liberdade levadas a cabo no último meio século se ergueram. Não há como escapar da impressão de que isso representa um retrocesso político. Quando temos em conta que esse mecanismo foi mobilizado para se contrapor a um movimento grevista, essa impressão se reforça. Este tipo de intervenção está longe de ser algo desejável para a estabilidade da democracia brasileira.
Pior ainda quando a retórica que sustenta a GLO é marcada pela noção de exceção e pela justificativa dos meios pelos fins. Se o fim é garantir a lei e a ordem, não podemos deixar de considerar essa questão contrapondo a ela a noção de justiça. “As leis garantem ainda menos a liberdade do que a justiça (…)” escreveu Hannah Arendt . A justiça aqui figura como algo que nos faz lembrar que não podemos aplicar meios que contrariem os fundamentos da ordem livre para garantir a liberdade. Tratar os assuntos internos da ordem democrática como questões de política externa é um equívoco. No caso da Bahia esse tipo de tratamento se expressa não somente pela mobilização de tropas do exército – aspecto mais visível da questão –, mas também pela desqualificação do movimento grevista através do questionamento da condição de cidadãos dos policiais ou por sua caracterização como cidadãos de natureza distinta dos demais. E aqui passo ao segundo ponto deste texto.
As ocorrências violentas que se desencadearam em Salvador – principalmente em suas periferias – têm sido tratadas como suficientes para a desqualificação completa do movimento grevista. Não só o da Bahia, mas de toda a mobilização policial que, hoje, atinge alguns estados da federação. Esses desvios e crimes são injustificáveis e devem ser investigados e punidos. Mas, me parece, também não podem ser justificativa para que se descredencie por completo a validade das mobilizações policiais por direitos.
Sem dúvidas, o movimento grevista baiano foi conduzido de modo equivocado por suas lideranças, ficando claras ações que se baseavam na intimidação, no uso das prerrogativas policiais de modo criminoso e na disseminação de ações violentas. Isto produz fragilidades políticas internas ao movimento em vista da sua legitimidade. Se estamos falando de contribuir para a consolidação de um regime livre e, por isso, justo, a impossibilidade de justificarmos meios por fins deve valer tanto para oprimidos quanto para opressores. O recurso à violência, inevitavelmente, esvazia de conteúdo político a ação humana e a torna injustificável. Mais uma vez lembrando Arendt, a violência é a única ação humana muda, logo, também vazia de conteúdo político. É fundamental que os movimentos de policiais, ao se organizarem para reivindicar seus direitos, abram mão de seus armamentos e se municiem de palavra e ação. Só assim é possível sustentar o argumento, nem sempre evidente ao senso comum, de que eles são cidadãos como outro qualquer e por isso é legítimo que defendam os direitos dos quais são titulares. Podemos ponderar, ainda, a necessidade de que categorias profissionais específicas busquem formas mais eficazes de mobilização do que as greves. Para além dos desdobramentos imediatos do cenário baiano, entretanto, considero importante definir algumas questões que nos auxiliem a pensar sobre o tema dos direitos do profissional de segurança pública. O problema é que esse ponto fundamental acaba sendo retirado do horizonte de reflexão a partir de uma discussão entre rotos e esfarrapados.
As últimas instituições do estado brasileiro a serem vistas como parte da democracia foram as polícias. Este argumento contribui para que avaliemos com pesos adequados os desvios e equívocos de uma categoria profissional que muito recentemente passou a se organizar pela conquista de direitos. Podemos, também, a partir daí considerarmos os riscos de se marginalizar este setor profissional. Não é preciso aqui expor o conjunto de argumentos e estudos que mostram que esse déficit democrático é um dos aspectos fundamentais da degradação dos serviços segurança pública no Brasil. Os estudiosos do tema acumulam títulos nas prateleiras que indicam a urgência de se pensar a segurança pública como tema da democracia. Uma consequência disso é o fato de que muitos policias – agentes da garantia de execução das leis – figuram como perpetradores de inúmeros atentados contra ela e – o que é mais grave – contra a vida das pessoas.
Quais seriam, então, as vias pelas quais é possível democratizar estas instituições secularmente geridas como órgãos repressores e garantidores das injustiças estatais? Fala-se, com frequência, da necessidade de reestruturação das instituições policiais, agenda que é, inclusive, encampada por parte dos efetivos dessas corporações (a Associação Nacional de Entidades Representativas de Praças Militares Estaduais – ANASPRA , por exemplo, tem o tema da desmilitarização como sua principal bandeira). Essa, sem dúvida, é uma discussão que tem que ser enfrentada. Mas o que é importante para o argumento que defendo aqui é outra questão: o acesso dos profissionais de segurança pública ao mundo dos direitos. Faz parte da realidade da maioria esmagadora de trabalhadores estaduais de segurança pública no Brasil a precariedade de suas condições de trabalho. Escalas absurdas, ausência de serviços adequados de assistência médica, baixos salários, assédio moral, exposição a condições desumanas, punições arbitrárias, falta de planos de carreira, etc são alguns dos pontos mais graves que afetam as vidas dos trabalhadores de segurança pública. Não é possível imaginar que se democratizem as instituições de segurança pública sem que observemos esses temas como agenda de reflexão e intervenção prática. A historiadora Lynn Hunt em seu livro intitulado A invenção dos direitos humanos: uma história , ao tratar daquilo que chamou do “paradoxo da autoevidência”, nos mostra que ainda que, retoricamente, os direitos fundamentais tenham que ser vistos como universais e autoevidentes, na prática, tal universalidade só possui eficácia e plausibilidade através das lutas de grupos particulares pela conquista de direitos. Esse tipo de reflexão nos lembra que não é possível incluir na discussão sobre direitos e deveres, nas sociedades livres, aqueles que não são alcançados pela titularidade desses direitos. Essa é uma das principais fontes de injustiça da lei. Em termos mais diretos: não se pode esperar que os profissionais de segurança pública atuem como verdadeiros vigias da lei enquanto os mantivermos alijados de muitos de seus direitos fundamentais. É assim para qualquer setor da sociedade, não pode ser diferente para o caso dos policiais.
Porque o contexto da greve da Bahia é importante para a reflexão sobre este ponto? Trata-se, em primeiro lugar, de um movimento reivindicatório de direitos que teve como resposta do estado não o diálogo, mas a repressão (cartilha essa, aliás, também utilizada pelos estados quando mobilizam as próprias polícias em contextos de resistência civil – como ocorreu, por exemplo, no caso de Pinheirinho). O próprio movimento, por outro lado, escreveu por essa cartilha ao tolerar e disseminar ações criminosas por parte de seus integrantes. As reações, tanto à esquerda quanto à direita, em segundo lugar, por parte daqueles que são contrários à greve, podem colocar muito a perder. A direita é tautológica (como de costume): os policiais não são cidadãos comuns e como repressores não devem fazer nada mais do que reprimir quando solicitados pelos governos. A esquerda é mais engenhosa, mas chega aos mesmos equívocos: os policiais não são trabalhadores, são agentes repressores do estado e do capital, logo, suas reivindicações por direitos não podem ser acolhidas pelos outros movimentos por direitos. Há aqueles que consideram a mobilização policial como motim e, assim, desqualificam de modo ainda mais profundo a greve. Ainda que o movimento se torne criminoso, chamar os grevistas de amotinados é reproduzir o vocabulário da legislação militar brasileira que, de partida, possui elementos exógenos aos códigos democráticos (Nestas legislações, por exemplo, o ato de desobediência pode ser considerado crime).
As abstrações acerca da caracterização dos policiais como servidores do capital e a difusão das ideologias que vinculam polícia e repressão são duas formas de pensamento que tornam Hannah Arendt uma referência importante para a reflexão que proponho aqui. Ao falar de compreensão Arendt vincula a reflexão política a uma postura na qual nos esforçamos para sentir o mundo como nossa casa. Acredito ser importante nos afastarmos tanto das tautologias ideológicas quanto das teorias conspiratórias, pois, elas nos aprisionam em suas próprias razões e nos afastam de uma postura em que falamos entre nossos pares.
Repito. Os erros do movimento grevista e os crimes cometidos por policiais, grevistas ou não, devem ser investigados e punidos. Mas não podemos permitir que sejam feitas generalizações que produzam uma espécie de linchamento ideológico de lutas legítimas por direitos que deveriam ser encampadas por aqueles que buscam a construção de sociedades livres e justas. Ao incorporarmos essas agendas, estaremos, inclusive, mais aptos a discutir os equívocos e desvios dos movimentos policiais. Perpetuar o isolamento político dos trabalhadores de segurança pública é, necessariamente, assumir uma postura conservadora.
Agora se inicia uma greve conjunta entre policiais civis, policiais militares e bombeiros militares no Rio de Janeiro e já temos notícias de presos sob a acusação de liderarem o movimento grevista. O debate deve ficar aberto e precisamos ficar atentos para que não se ponha na vala comum da noção de crime ações legítimas e democráticas. Da mesma forma, não podemos admitir que ações criminosas sejam postas sob o guarda-chuva reivindicatório. O que não pode acontecer, de maneira alguma, é que se sustentem posições que considerem que não é legítimo que os trabalhadores de segurança pública falem de seus direitos. O acirramento das tensões e o linchamento ideológico das mobilizações policiais podem produzir importantes retrocessos, como tentei mostrar nessa breve argumentação.
Aqueles que não acreditam que seja legítimo que os policiais falem e lutem por seus direitos pouco têm a exigir dessa categoria profissional. Pensar que policial não é cidadão ou não é trabalhador consiste, de certa forma, em levantar aquela velha bandeira de que “bandido bom é bandido morto”. Só que ao contrário.
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André Rodrigues