Único escritor lusófono a receber um Prêmio Nobel de Literatura, Saramago foi um dos grandes nomes das letras portuguesas, mas sua celebridade esteve sempre envolta em polêmica. Jamais foi uma unanimidade, o que não é mau. Pois, uma vez que toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues, a falta dela representa uma vantagem do debate público português. A morte de Saramago, ocorrida há um ano, foi cercada de pompa, circunstância e polêmica; foi, nesse sentido, fiel a sua vida. Militante comunista, intelectual franco e crítico da sociedade portuguesa, ateu inveterado, Saramago acumulou pertenças controversas que justificam certos desentendimentos e a coleção de desafetos.
À época do velório, Cavaco Silva, atual presidente de Portugal, leal a suas convicções pessoais, recusou-se a comparecer ao sepultamento, conflagrando grande debate público acerca das atitudes apropriadas à dignidade da função presidencial em situações de grande importância nacional. As desavenças entre Cavaco Silva, um político conservador, e Saramago remontam a um ato censório de que foi objeto O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) por parte de Sousa Lara, subsecretário de Estado da Cultura em 1992, durante governo de Cavaco Silva. Por esse motivo, o livro não concorreu ao Prêmio Literário Europeu. Em 1993, já casado com a jornalista espanhola Pilar del Río, Saramago fixou residência em Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Saramago aproximou-se da Espanha, que lhe retribuiu o gesto com gratidão. Adotou-o como se fosse um autor espanhol e celebrou-o ao mais alto nível, inclusive quando de sua morte.
O intelectual
A decisão de Cavaco Silva de não prestar as derradeiras homenagens a Saramago nos concerne apenas num sentido: ela explicita poderosas divergências ideológicas, morais e partidárias, que atravessam a posição de Saramago junto à cena pública portuguesa. E mais. A animosidade de Cavaco Silva é também índice de uma peculiaridade das letras portuguesas contemporâneas com relação às brasileiras: a inseparabilidade entre a discussão literária e o debate dos grandes temas nacionais.
Desse modo, é possível perceber que, ainda que a literatura brasileira seja vigorosa e tenha sido ainda mais pujante no passado, ela jamais pôde contar com uma massa expressiva de leitores. É este desencontro fundamental que constitui uma situação literária diferenciada, e não a quimérica baixa qualidade da produção brasileira. De um país que não pode identificar sua literatura, porque o letramento é ainda baixo, não se pode esperar que seus literatos contribuam intensamente para o debate público. A obra de Saramago enfrentou grandes temas nacionais, chispou e crispou alguns, encantou outros, mas, de qualquer modo, fez da atividade literária um espaço de reflexão pública. Uma vez que lhe fora franqueada a via da intervenção pública, sustentada pela tradição portuguesa de debate público, Saramago aproveitou a oportunidade, a ocasião. Valeu-se desta vocação das letras portuguesas para colocar-se, nesse sentido, ao lado de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa.
Com Saramago, insinua-se a imagem do intelectual público, da sua condição crítica e independente, que, apesar da tentação, não pode ser explicada a partir de um ponto de vista moralista. Não se trata de acusar o intelectual médio de mansidão, mas de pensar as condições do desenvolvimento de uma literatura vigorosa, capaz de contribuir para o debate público, capaz de criar intelectuais. Certamente a longa militância política, seguida pela experiência jornalística, conferiu a Saramago experiências importantes. Saramago chegou a ser diretor-adjunto do Diário de Notícias, em 1975, logo após a Revolução dos Cravos, o que lhe valeu, inclusive, duras e amargas críticas. À frente do jornal, foi responsável pelo “saneamento” do mesmo – como então se dizia –, isto é, demitiu muita gente, reorganizando o pessoal do jornal supostamente por razões ideológicas. Este episódio assombra, ainda hoje, a imagem de Saramago.
A sua trajetória polêmica, de comunista libertário e, por vezes, áspero, avivou e perturbou a recepção da sua literatura. A confluência de sentimentos, de rancores e de amores, foi uma conseqüência infalível. Não era possível permanecer indiferente a Saramago, a um intelectual que expressava sua opinião livremente, um intelectual constituído pelo hábito do debate público, desde os tempos da militância política e do jornalismo. O literato surge como personagem público, como cidadão interveniente. Mesmo quando não convocado para expressar sua opinião, Saramago intervinha, afirmava aquilo em que acreditava. Com ou sem razão, chamava a atenção para o que considerava vil ou injusto. Era bem um intelectual sartreano, que se manifestava à revelia do pudor ou de preocupações com sua própria imagem perante a mídia e a opinião pública. Não há, portanto, nenhuma assimetria entre o Saramago militante político, o jornalista e o romancista. São todas manifestações da vocação do intelectual para discutir e problematizar aquilo que o senso comum e o discurso técnico tomam por dado ou evidente. O intelectual é aquele que sente a aspereza sob as superfícies lisas e que não é posto a ferros por preconceitos. Sua franqueza não seria nada sem certa delicadeza do sentimento, para lembrarmos Hume.
A obra
Não é possível, no entanto, passar ao largo da carga crítica encerrada na obra de Saramago. Em livros como Levantado do Chão (1980) e, mais notavelmente, em Memorial do Convento (1982), Saramago ensaia, ao modo de Walter Benjamin, a invenção de uma outra escrita da história. Não se trata mais daquela história oficial, a história dos vencedores, mas da celebração dos anônimos, da tradição subterrânea dos vencidos. Buscam-se as dissonâncias inaudíveis sob as harmonias retumbantes através de textos que exploram a oralidade da escrita. A tão criticada escrita de Saramago, pouco convencional, carente de pontuação e frequentemente ambígua, reforça o aspecto oral e, portanto, social da linguagem. Estas peculiaridades formais permitem que seus textos sejam uma revisão daquilo que a História oficial monumentalizou, como escreveu Antônio Guerreiro ao Expresso.
Com A Jangada de Pedra (1986), Saramago faz sua primeira investida pública no tema do iberismo e critica a confluência de Portugal e Espanha com relação à Europa. O romance conta a história da separação cataclísmica da península ibérica do resto do continente europeu. Lançada ao mar, a península viria a estabelecer uma ligação entre a África e a América Latina, realizando, graças à catástrofe sísmica, a sua vocação histórica. A Jangada de Pedra representa uma fabulação sobre os caminhos e descaminhos da civilização ibérica. Questiona, portanto, o discurso hegemônico envolvido na justificação do ingresso de Portugal e Espanha na Comunidade Econômica Européia (CEE), ocorrido em 1986. Em 2002, o livro recebeu uma adaptação cinematográfica, dirigida pelo holandês George Sluizer. Foi a primeira adaptação da obra de Saramago para o cinema.
Mas foram as investidas (anti)teológicas que mais suscitaram alvoroço. O debate entre Saramago e a Igreja foi desencadeado por O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) e inflamado por declarações públicas do autor. Emerge desta obra a imagem de um Cristo humanizado, que acusa o Deus dos cristãos de todas as guerras de religião que ocorrerão. Em Caim (2009), seu último livro, Saramago volta-se para o Antigo Testamento e mais uma vez trata de profanar o sagrado. É digno de nota o grande interesse que Saramago revelava pelos textos bíblicos. Todavia, o estilo cáustico e sardônico destes textos contribuiu enormemente para que fossem considerados libelos anticristãos, acendendo a polêmica em torno do autor e ampliando o número de desafetos. Ensaio sobre a Cegueira (1995), por sua vez, inaugura uma fase universalista da obra de Saramago. Já instalado em Lanzarote, Saramago concebe uma situação anônima, sem nenhuma referência cronológica ou geográfica que permita identificá-la. Seu objeto é a própria condição humana, uma análise do caos de uma sociedade desagregada. Foi a segunda obra de Saramago a receber adaptação para o cinema, em 2008, dirigido por Fernando Meirelles.
Saramago foi um autor de notável sucesso, de público e de crítica. Sua capacidade analítica, aliada ao hábito da intervenção pública, valeu-lhe grande celebridade e animosidade. Sua obra, em larga medida admirável e seguramente única, não deixou de receber crítica pertinente, que a acusou de cair, por vezes, na tentação de ordenar a vida num sistema normativo e hierarquizado, que se avizinhava da prédica moral. Todavia, comportamentos tais como o de Cavaco Silva, apenas servem para confirmar o aspecto polêmico de Saramago e, por isso mesmo, atestam a sua condição de intelectual público.
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Bernardo Biachi