Há vários experimentos em curso no planeta, nos quais o exercício do governo sustenta-se em amplas coalizões partidárias e parlamentares. A natureza crescentemente fragmentada das sociedades e seus efeitos sobre as escolhas eleitorais assim o determinam. Tomemos o caso de Israel: desde a sua fundação, em 1948, os governos naquele país, para obter o apoio do número mágico de, ao menos, 61 deputados fiéis, em um parlamento composto por 120 membros, sustentam-se em heteróclitas composições partidárias.
A Itália, depois de haver destruído seus sistemas eleitoral e partidário do pós-guerra, a partir da década de 1980 vê-se às voltas com o embate entre duas grandes coalizões: os berlusconianos da Casa da Itália e a vasta constelação abrigada no Partido Democrático, tataraneto do velho PCI. Qualquer uma dessas alternativas implicará a prática de governos de coalizão. Até mesmo o Reino Unido, orgulhoso de seu sistema eleitoral majoritário – supostamente capaz de garantir maiorias “puras” e monopartidáias – sucumbe a um governo de coalizão, com a associação entre os conservadores de David Cameron e os “Lib-Dem” de Nicholas Clegg. E por aí a coisa vai.
Exemplos abundam, mas para nenhum deles cunhou-se um conceito, para fixá-los como espécie distinta na constelação dos sistemas políticos. Imaginem só alguém a descrever o aziago governo de Benjamin Netanyahu, com ares de elucidação, como “parlamentarismo de coalizão”. Uma reposta polida a tal gesto de iluminação poderia ser simplesmente: “Sim, e daí?”.
Entre nós, o léxico político dispõe da expressão “presidencialismo de coalizão” (PC), um tanto ubíqua na imprensa e na análise acadêmica conservadora. Mais do que descritiva, ela exerce um efeito de apaziguamento sobre os espíritos. É como se uma voz a acompanhasse, toda vez em que é formulada, a dizer: “meus filhos, é assim que as coisas são”. Nada, enfim, como a força de um nome inercialmente estabelecido para deflacionar o espanto, a indignação e a crítica.
Além do efeito normalizador exercido pelo seu nome próprio, o experimento PC, por singularmente brasileiro, teria, assim, algo em comum com as jabuticabas. Há evidente exagero ufanista na apreciação da singularidade, resultado de aplicação de velho truque nominalista: cunhar um nome singular para um experimento trivial – por exemplo, governos de coalizão – e produzir a crença de que tal experimento, pela aplicação do conceito, resulta em algo único e original.
Coalizões há por toda parte, o que não impede que particularidades locais sejam detectadas. O risco do exagero na afirmação da singularidade reside em uma espécie de patriotismo institucionalista, sustentado na crença de que os laboratórios nacionais desenvolveram drogas inovadoras para lidar com os dilemas da assim chamada “governabilidade”. A falta de boa sociologia política não ajuda em nada a pensar o quanto dessa droga releva do ambiente que ela pretende debelar.
Instalado no consulado tucano, precedido do ensaio do governo Sarney, o experimento PC, à partida, apresentava uma fisionomia bifronte: por um lado tratava-se de um modo de governar no qual, dada a inexistência de base parlamentar suficiente, o presidente eleito é levado a compor vasta e heterogênea coalizão para fazer valer seus projetos de governo, com as devidas erosões e adições aí implicadas; por outro, e de modo mais velado, o experimento PC repôs um velho mote da tradição política nacional: o de que a modernização, qualquer que seja o seu desenho, exige a composição como o “atraso”. O experimento PC combina, portanto, pragmatismo político com maldição sociológica. A fusão desses dois horizontes consagra a presença do arcaísmo como condição social e política perene. A exigência de “governabilidade” faz do comportamento predatório um sintoma de racionalidade.
O experimento PC, sob Lula, expandiu os padrões usuais, pela extensão e maior heterogeneidade da coalizão. Diante da variedade do que se convencionou chamar, não sem certo humor, de “base aliada”, os talentos e atributos do Presidente apareceram como recursos inestimáveis. O experimento deve, nesse sentido, muito ao personagem e à sua habilidade na negociação e na composição de posições inconciliáveis.
A passagem para o governo de Dilma Roussef torna mais aguda uma dimensão já presente no experimento PC. Trata-se de um arranjo – para além do pragmatismo e da sociologia – fundado em lógicas de chantagem. A habilidade na chantagem converteu-se, também, em marcador de racionalidade política. Presente em “etapas” anteriores do experimento, a força de tal componente nos dias que correm sugere nova definição: o experimento PC é um modo de governar segundo o qual uma oposição potencial – e por vezes real e desleal – faz parte da base do governo. Há, portanto, algum absurdo na coisa. A parceria com o partido do Dr. Temer – além da presença de hooligans políticos na base aliada – é hospedeira do risco de instabilidade política, a despeito de ter sido “construída” com finalidade oposta. Mesmo sendo artificiais, como nos ensinou o bom Hobbes, os animais políticos não podem contradizer suas naturezas. O experimento PC exige operadores diuturna e absolutamente fiéis a suas naturezas, o que exige esforços extraordinários de coordenação.
Para lidar com isso, o ex-presidente Lula parece assumir a macro-coordenação política do governo. A presidente, em apresentação vigorosa da expansão do Bolsa Família, reforça seu papel de macro-coordenadora da gestão do governo. Resta ver o que resultará dessa diversificação não usual de papéis, se complementaridade ou ainda maior confusão. É de se supor que as soluções produzidas no âmbito da macro-coordenação política tenham implicações sobre a estrutura da gestão. Ficará mais difícil saber quem governa quem.
De qualquer modo, o primeiro gesto do macro-coordenador político foi o da sutura do atrito com o PMBD, o principal ator do experimento PC. O PT, dirigido por operadores atônitos e com déficit reflexivo notório, arrisca-se à coadjuvância. Jamais sairá do governo, o que reduz seu capital de chantagem. As hostes do Dr. Temer estão muito mais à vontade nesse jogo.
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Renato Lessa