Em fins do ano de 1788, um padre radical francês envolvido com o processo revolucionário então em curso em seu país – o abade Emannuel Joseph Sieyèz (1748-1836) – escreveu uma pequena obra prima. A obra, editada em janeiro de 1789, denominava-se Qu’est ce qu’est le Tiers État? (O que é o Terceiro Estado?). Tratava-se de uma refutação aberta aos valores e procedimentos da cultura política do Antigo Regime, sustentada na divisão da sociedade francesa em três “estados”. O primeiro e o segundo dos quais ocupados pelo clero e pela nobreza. O restante – o Terceiro Estado – continha a maioria demográfica dos franceses. Maioria demográfica, minoria política, em rigorosa distinção para com os demais estados, minorias demográficas e maiorias políticas.
Sieyès desafiou tal arranjo ao sustentar não apenas que o Terceiro Estado era a nação francesa, mas que tudo que a ele não pertencer estará dela excluído. O abade escrevia de modo claro e ficou famoso com a seguinte série de perguntas e respostas: O que é o Terceiro Estado? Tudo; O que tem sido até agora? Nada; O que deve ser feito? Transformá-lo em algo real. O argumento faz com que a idéia de “nação” ganhe conotação mais tangível: não mais um sentimento e sim associação ativa de sujeitos iguais.
Nosso Abade, embora revolcionário, possuia veia realista. Percebia as sociedades modernas – aí incluída a França – como constituídas por uma complexa divisão do trabalho. O “povo” que acabara de inventar em termos conceituais é, em grande medida, uma unidade abstrata. Fora dessa abstração, o que se tem é uma população fragmentada em incontáveis atividades e profissões, que exigem dedicação física e identitária integral. Explico. Não apenas sapateiros não compartilham dos amoladores de faca suas experiências profissionais, como pensam-se a si mesmos como membros de “sociedades” diferentes.
O que Sieyès indicou foi o princípio de fragmentação – já percebido antes por gente como Bernard Mandeville – do que chamou de “sociedades comerciais”, marcada pela busca privada e particular de riqueza e sobrevivência. O corolário disso é a ausência crônica de tempo compartilhado e significativo para o cuidado com o interesse público: se todos estão forçados a ganhar a vida e a gastar a totalidade de seu tempo nesse esforço, quem poderá – e quando – cuidar do interesse comum?
A resposta, ainda segundo o bom Abade, é simples: o “povo” recém criado escolhe representantes que cuidarão, em tempo integral do interesse público. Uma outra idéia de nação, portanto, aparece. Não mais o sentimento do Antigo Regime (a honra da qual falou Montesquieu) e já não mais a união de iguais, mas algo que se dá pela delegação da vontade popular: a nação é a representação da nação. Muitos dos avanços e dos desencantos com a chamada “democracia representativa” provêm dessa curiosa circularidade.
Representantes, convertidos em legisladores, passam a ter papel relevante na confeçcão de uma cultura pública comum. Quando não devidamente acossados pelo “povo” de Sieyès, arriscam-se a agir como representantes de si mesmos. Nada pior – ou melhor, a depender do lado em que se está – para qualidade da representação do que a apatia dos representados. O círculo pode ser perversamente vicioso, pois a apatia dos representados também pode resultar tanto de indução por parte dos representantes como da própria fragmentação apontada por Sieyès. O que daí resulta é uma idéia de política como ocasião para a maximização de apetites.
Algumas sociedades, no entanto, dispõem de mecanismos de materialização de valores políticos que escapam da circularidade indicada. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, por força da Constituição de 1988, tem papel central na definição do interesse público. Sua última manifestação – o reconhecimento legal da união civil – para fins de casamento e de constituição de famílias – entre casais homoafetivos é um passo notável para a fixação de uma cultura pública democrática entre nós. Fizeram os juízes o que não puderam ou quiseram fazer os partidos e seus parlamentares.
***
Renato Lessa