Sexto Empírico e Saussure: um diálogo (de mudos?) entre o cético e o linguista – Número 133 – 05/2015 – [39-47]

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É muito cômico assistir aos gracejos sucessivos dos linguistas sobre o ponto de vista de A ou de B, porque esses gracejos parecem supor a posse de uma verdade, e é justamente a absoluta ausência de uma verdade fundamental que caracteriza, até hoje, o linguista.

(Saussure, 2002, p.104).

Sabe-se que, dentre as obras de Sexto Empírico (séc. II d.C.), nossa melhor fonte do ceticismo pirrônico, apenas três sobreviveram: as Hipotiposes pirrônicas (PH), Contra os dogmáticos e Contra os professores – sendo que essas duas últimas foram posteriormente reunidas sob o mesmo título de Adversus Mathematicos (M). Sabe-se, também, que, em Adversus Mathematicos, Sexto Empírico, pode-se dizer, executa seu exercício cético de ir contra não apenas as três partes da filosofia (ou seja, ele vai Contra os Lógicos, Contra os físicos e Contra os éticos), como, também, dispara seu arsenal cético na direção dos professores das artes liberais, aquelas que eram exercidas pelos cidadãos gregos, homens livres. Assim, Sexto Empírico vai contra os gramáticos, os retóricos, os geômetras, os aritméticos, os astrônomos e os músicos.

Neste breviário, vou me deter no primeiro destes tratados: Contra os gramáticos. O próprio Sexto Empírico dá três motivos por que os gramáticos são sua primeira vítima: (i) a gramática consiste em um dos nossos primeiros ensinamentos, posto que ela nos é ensinada logo na primeira infância; (ii) a gramática é uma espécie de primeira disciplina para se ensinar outras artes; (iii) e, por fim, segundo Sexto Empírico, os gramáticos se vangloriam de sua arte estar acima das demais ciências (Adv. Gram. 41).

Contudo, o ataque cético não é disparado indiscriminadamente à arte da gramática. De fato, logo no início de Contra os gramáticos, Sexto faz uma distinção entre duas gramáticas: uma que é a arte de ler e escrever; e outra que professa conhecimentos mais profundos, sobre a natureza mesma da gramática e as “partes do discurso” (Adv. Gram. 49). Sexto, então, adverte que não irá contra a primeira: esta é útil para a vida, uma vez que auxilia nossa memória e outros ensinamentos. Seu ataque cético terá como alvo a outra gramática – e, como não há gramática sem o gramático que diz conhecê-la, seu ataque será contra os gramáticos. Sexto, agora, passa a averiguar os princípios fundadores das gramáticas valendo-se do arsenal cético para mostrar a falta de critério dos gramáticos para estipularem sua arte – ou seja, o cético acaba por mostrar que a arte da gramática é inexistente.

Em minha pesquisa recente dos manuscritos recém-descobertos daquele que é considerado, entre aspas, o “pai” da linguística moderna, Ferdinand de Saussure, acabei por perceber possíveis diálogos, através do tempo, entre o cético Sexto e o linguista Saussure. Neste breviário, então, rascunho essa aproximação da crítica cética presente em Contra os gramáticos ao texto recém-descoberto do linguista genebrino.

Saussure, como bem colocou M. Arrivé, é um autor que “não publicou o que escreveu e não escreveu o que realmente foi publicado sob seu nome” (Arrivé, 2010, p.7). Realmente, Saussure publicou apenas duas obras em vida (uma tese de gramática comparada sobre “O sistema primitivo das vogais nas línguas indo-europeias”, e o estudo “O emprego do genitivo absoluto em sânscrito”). Contudo, a obra que veio a lhe dar notoriedade (aquela que lhe dá o mencionado título de “pai da linguística”), o Curso de linguística geral, apesar de ser assinada por Saussure, foi escrita depois de sua morte por Charles Bally e Albert Sechehaye a partir de anotações de alunos que frequentaram o curso do linguista em Genebra.

O Curso acabou fadado a um destino que parece ser natural a obras desse porte, obras que fundam uma ciência: este livro ganhou uma espécie de “interpretação padrão” (mesmo por aqueles que jamais o leram). Segundo essa interpretação-padrão e já crítica de sua perspectiva de linguagem, Saussure teria proposto uma visão abstrata de língua, que desconsidera a historicidade do sujeito falante, sua ideologia, enfim, que relega para um segundo plano a língua em uso. Saussure teria apresentado tal visão de linguagem a partir daquilo que a crítica se apropriou e chamou de “4 dicotomias saussurianas”: língua/fala; significado/significante; sincronia/diacronia; paradigma/sintagma.

A dicotomia língua/fala já daria a ver como Saussure teria operado um gesto abstracionista sobre a linguagem humana. No Curso, temos um Saussure a afirmar que, assim como nos aparece, a linguagem humana é “multiforme e heteróclita” (Saussure, s/d[1916], p.17). Então, para que fosse possível se conhecer um objeto que tivesse um mínimo de estabilidade, o linguista retirou tudo aquilo que é acidental, mutável da linguagem e deixou apenas o que seria socialmente comum, passível de certa estabilidade – e que, portanto, poderia ser objeto de conhecimento. Eis a dicotomia fala (parole) – um ato individual, uma exteriorização que depende da vontade do sujeito falante – e língua (langue) – um produto social, uma espécie de convenção que faz ser possível o exercício da faculdade da linguagem. O estudo essencial da linguística é o exame da língua, um “tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade” (Saussure, s/d[1916], p.21). Ou seja: a linguística deve ter como único objeto a língua, não a fala.

A língua, ainda segundo o Curso, seria um sistema de signos linguísticos. Os signos linguísticos não significariam por si mesmos, mas, antes, teriam seu valor determinado pela relação que estabeleceriam com os demais signos do sistema. Aqui é interessante notar que Saussure fala de um sistema de signos, mas sua perspectiva de linguagem – que acabou por influenciar outras áreas do conhecimento, fazendo com que, por num período, a linguística fosse uma espécie de ciência-farol de outros campos do saber (como a antropologia de Lévi-Strauss e a psicanálise de Lacan) – ficou conhecida como estruturalismo (apesar de Saussure nunca ter usado tal termo).

Contudo, como adiantei no início deste breviário, no momento em que explicava o modo como tive a ideia de aproximar o cético e o linguista, em 1996, foi encontrado um conjunto de manuscritos na estufa do hotel da família de Saussure. Em 2002, Simon Bouquet e Rudolf Engler organizaram e editaram esse material – que, até aquela data, estava restrito à consulta na Biblioteca pública e universitária de Genebra.

A partir de então testemunhamos como que um renascimento de interpretações do pensamento de Saussure. Se algumas afirmações que aparecem nos manuscritos ratificam o que encontramos no Curso, outras, no entanto, ganham a polêmica que uma descoberta desse tipo levanta. Mesmo aquela interpretação-padrão a que me referi anteriormente, a de que Saussure teria formulado uma visão abstrata de linguagem, crítica feita por um conjunto bastante diverso de autores que podem ser abarcados por uma nomenclatura também ampla de pós-estruturalistas, acredito, pode ser reformulada.

Entendo que a experiência de ler os manuscritos de Saussure revela um autor bem menos abstrato – e, também, bem menos assertivo do que a interpretação que fizemos dele deixou transparecer. Antes de tudo, creio que o mais valioso sobre esses Escritos é poder ver um autor, considerado fundador de uma ciência, se colocando questões, titubeando em dar respostas, tateando no escuro com suas reflexões. Vemos, então, um investigador que se engana, se desvia, e que, por vezes, anota depois de uma longa consideração: “Mas não era isso que eu queria dizer inicialmente. Eu me desviei” (apud Arrivé, 2010, p.15).

Testemunhamos Saussure enfrentar o desafio de uma primeira dificuldade: definir o objeto que o linguista se meteu a investigar – afinal, o que é a linguagem humana? Acompanhamos Saussure a se perguntar: “Será que a linguística encontra diante de si, como objeto primeiro e imediato, um objeto dado, um conjunto de coisas evidentes, como é o caso da física, da botânica, da astronomia, etc.?” (Saussure, 2002, p.23). E então lemos, em outra anotação, a resposta que ele próprio se dá:

Lembremos, com efeito, que o objeto da linguística não existe para começar, não é determinado em si mesmo. Daí, falar de um objeto, nomear um objeto, nada mais é do que recorrer a um ponto de vista A determinado (Saussure, 2002, p.26).

Esté é um dos nós que me fizeram pensar que Saussure reconhece em seus manuscritos aquilo que Sexto havia criticado em seu tratado Contra os gramáticos: os gramáticos não têm um objeto dado, definido para a sua arte.

Isso pode ser notado logo no início de Contra os gramáticos, quando Sexto Empírico passa a examinar a definição que os gramáticos deram para o seu objeto, a gramática. Ele se põe a derrubar cada uma das definições encontradas – por exemplo: para aqueles que dizem tratar a gramática de todo proferimento e de todo significado grego, o cético rebate dizendo da impossibilidade de uma arte cujo objeto seja ilimitado (Adv. Gram. 113). Além disso, avisa o cético: como se não bastasse o objeto dos gramáticos ser ilimitado, infinito, ele muda; assim, não há meios de que haja, sobre tal, qualquer conhecimento humano.

Penso ser interessante fazermos aqui uma aproximação entre o combate cético de Sexto Empírico em oposição aos gramáticos e o movimento epistemológico que efetuou Saussure dezoito séculos mais tarde, quando se pôs a tarefa de disciplinar um curso de linguística geral. Saussure, então, reconhece aquilo que Sexto já havia criticado nos gramáticos: eles não têm um objeto dado, definido, analiticamente bem delimitado. O objeto dos gramáticos (dos linguistas) não é da ordem do evidente para seu investigador. Um físico, um botânico não teriam dúvidas em responder e apontar o que estudam para quem venha a lhes perguntar. Entretanto, para um linguista é diferente: como responder o que é a linguagem, como apontar para este objeto? Saussure reconhece em seus manuscritos: a língua humana não se deixa determinar, de modo que a linguística é uma ciência sem objeto definido. Delimitar seu objeto é, dessa forma, nada mais do que, deliberadamente, tomar um ponto de vista determinado. Creio ser no mínimo interessante o fato de que Saussure, nesse momento inaugural da linguística como ciência, reconhece o embaraço que Sexto Empírico já denunciava: ser pesquisador de uma ciência cujo objeto (a linguagem) não é evidente – o que acarreta a necessidade de se criar o objeto a partir de um ponto de vista.

Interessante também é percebermos que Saussure, em seus Escritos, hesita por determinar uma língua imutável – que sabe inexistente – conforme acabou por ser sua interpretação-padrão de que, respondendo a um imperativo epistemológico, Saussure teria fixado um estado de língua com uma estabilidade de cerca de cem anos. Ao contrário do Saussure que acabamos por interpretar de uma leitura rápida, breve do Curso, em seus Escritos o linguista afirma que, se há um princípio em linguística é que a língua muda com o tempo.

Isso leva Saussure a reconhecer, também, que a identidade dos elementos linguísticos não é essencial, mas fixada pela diferença destes dentro do sistema (Saussure, 2002, p.64). Nas palavras de Saussure: “A diferença entre termos é um ‘dado negativo’’, e essa negatividade se exerce em todos os lugares na língua. Daí a seguinte constatação: “a ausência total de seres linguísticos dados em si” (apud Depecker, 2012, p.60). Ao contrário de outras ciências, a identidade linguística não é evidente. Ou seja, determinamos “um ponto de vista a partir do qual julgar identidades” (Depecker, 2012, p.70). A identidade não é um ponto absolutamente fixo, mas é uma questão de critério. Nesse sentido, Saussure reconhece que “proclamamos a existência” de entidades linguísticas, apelamos pela existência de similitudes a partir de identidades reconhecidas “de ouvido”, e conclui que “é profunda a ilusão de coisas que seriam naturalmente dadas na linguagem” (Saussure, 2002, p.171). Novamente, me parece profícua uma aproximação entre Saussure e Sexto Empírico, uma vez que, em Contra os gramáticos, quando o cético vai discutir os elementos da gramática (mais especificamente as vogais), como um efeito em cascata, ele acaba por atingir, como o linguista, a questão da identidade.

Sexto, ao chamar a atenção para a arbitrariedade das divisões gramaticais, acaba por mostrar que, para haver uma teorização, é preciso tratar alguma coisa como igual à outra, quando isso, na verdade, é uma mera abstração arbitrária – o que leva à impossibilidade, por exemplo, de se acatar à existência de uma entidade como a sílaba. Neste momento do seu tratado, Sexto Empírico descreve a catalogação que os gramáticos fazem das vogais – subdivididas em longas, curtas ou diacrônicas (os elementos diacrônicos, neste contexto, são aqueles pronunciados ora como longos, ora como curtos) – e das consoantes – que se contrapõem em não-vogais (as modernas oclusivas), semivogais (constritivas) e duplas.

A crítica de Sexto vai no sentido de que os elementos diacrônicos (Adv. Gram. I 105ss) por natureza não existem, já que eles dependem da vogal para se decidir se serão pronunciados como longos ou curtos. Em outras palavras, o elemento é suscetível de ser diacrônico, mas ele não é diacrônico em sua essência. Como exemplo, Sexto diz que o elemento é suscetível de ser diacrônico assim como o bronze é suscetível de se tornar estátua – mas, enquanto é apenas suscetível, ainda não é estátua – e a madeira de se tornar barco – enquanto não é barco, é só madeira.

Assim, Sexto questiona por que considerar que o alfabeto grego tem 24 elementos e não 60 (Adv. Gram. I 14) – que seria o número a que se chegaria, por exemplo, caso se contassem as variantes fônicas de cada vogal e consoante tratadas como iguais às outras. É claro que, inversamente, esse número poderia ser bem menor do que 24 se os critérios de classificação fossem vistos sob outro ponto de vista.

E aqui, mais uma vez, enxerguei uma coincidência que me deu mais ânimo na empreitada de forçar um diálogo entre o cético e o linguista, pois Saussure, em seus manuscritos, observa a mesma arbitrariedade apontada por Sexto. Com efeito, diz Saussure:

Visto que há, aqui, uma tentativa de recorrer à sílaba como recurso natural quando não se sabe mais o que fazer da soante, observamos que é uma característica totalmente geral, da escola de que falamos, cultivar esse detestável círculo vicioso e pensar que duas questões obscuras, cada uma no que lhe diz respeito, ficam mais claras quando são adicionadas em um único todo (Saussure, 2002, p.124).

Saussure chama a atenção para o fato de que os gramáticos comparativos, ao quererem determinar um som (um fone) recorrendo à definição de sílaba, que nada revela sobre esse som, acabam caindo num círculo vicioso (que é, sabe-se, um dos tropos que levam à suspensão do juízo pirrônica). Para Saussure, seria mais claro manter esses dois elementos como distintos, “mesmo que isso nos custe confessar que nada sabemos, nem de uma nem de outra” (Saussure, 2002, p.124). O linguista, então, prefere suspender seu juízo acerca das sílabas e das soantes a que postular alguma asserção sem fundamento – nos termos céticos, a que postular uma mera hipótese. Saussure admite que o linguista deveria partir de um ponto “fixo e definido”; entretanto, ele próprio reconhece que os fundamentos últimos da linguagem não cumprem tal rigor (Saussure, 2002, p.171).

A arbitrariedade de critério para se definir o que é uma sílaba, o que é uma vogal, também resvala na própria delimitação das línguas: até onde digo que esta língua é latim e a partir de que ponto digo que isto é francês (português, espanhol etc.)? Saussure confessa que o critério para se dividir línguas, para se nomear até onde temos, então, latim e francês, é uma linha imaginária e imaginada; trata-se de uma delimitação “totalmente arbitrária e convencional” (Saussure, 2002, p.144). Em suas palavras:

Ora, a que se pode comparar, na realidade, a pretensa sucessão do latim pelo francês? Imaginemos, numa cidade, uma rua muito longa: pode-se discutir, nos conselhos municipais, se vai lhe ser dado, em todo o seu comprimento, um único nome; por exemplo, Bulevar Nacional; ou se essa rua será dividida em duas partes, Bulevar do Templo e Bulevar da Escola, ou em três, bulevar de X, de Y e de Z ou, enfim, em dez, quinze frações, com nomes diferentes. A existência distinta de cada um desses trechos de rua é, naturalmente, uma coisa puramente nominal e fictícia, não cabe perguntar como o Bulevar Y se transforma em Bulevar X, nem se o Bulevar Y se transforma subitamente e insensivelmente em Bulevar X, porque, para começar, não existe, em lugar algum, Bulevar Y ou Bulevar X, exceto em nosso espírito. Do mesmo modo, não há em parte alguma, exceto em nosso espírito, um certo ser que seja o francês por oposição a um certo ser que seja o latim (Saussure, 2002, p.143).

Saussure admite que a própria nomeação de uma língua é um gesto abstrato e arbitrário. O ponto em que cortamos um conceito e começamos outro não se baseia em alguma característica fundamental nem de um, nem de outro. Essa rua “não existe” em parte alguma por si mesma. É uma convenção que faz com que uma rua permaneça “a mesma” rua – ou que a letra b permaneça idêntica a ela mesma de um instante para outro (Saussure apud Depecker, 2012, p.151).

Assim, temos um surpreendente Saussure (surpreendente para quem foi acostumado a entender Saussure a partir da interpretação-padrão do Curso de linguística geral). Esse Saussure que emerge de seus Escritos parece ser menos estruturalista e mais pragmático – quase podemos dizer: um Saussure pós-estruturalista.

De fato, Saussure, em suas anotações, afirma que uma palavra só existe verdadeiramente por sua confirmação de seu emprego – poderíamos dizer, de forma mesmo provocativa: pela confirmação de seu uso. Isso quer dizer que ele parece admitir que a palavra só existe no acontecimento de sua performatividade. E sua identidade só pode ser abstraída pela regularidade de seu uso (cf. Depecker, 2012, p.115).

Como foi dito anteriormente, uma das grandes críticas pós-estruturalistas a Saussure foi no sentido de que ele havia definido o objeto da linguística como uma língua absolutamente abstrata, como um sistema de signos linguísticos que desconsideraria a língua em uso. E de novo, neste ponto, creio ser possível fazer uma aproximação (acredito que feliz) entre Saussure e Sexto Empírico.

Isso porque, em Contra os gramáticos, Sexto defende, ao longo de seu tratado, que os falantes de uma língua não devem seguir as normas infundadas dos gramáticos, mas devem se fiar pelo uso comum da linguagem. Essa defesa de Sexto pelo uso comum é tamanha que alguns comentadores, como Desbordes (1982), chegam a afirmar que o cético não se limita a criticar, mas que ele também defende algumas posições, como a de que a língua não é natural, mas convencional (exs. Adv. Gram. I 145, 148-149 etc.) – e a de que o uso comum da linguagem é o critério prático que devemos seguir quando usamos a linguagem verbal.

Desta maneira, quando Sexto se pergunta se haveria alguma espécie de correção natural para a linguagem, ele próprio responde que tal coisa não existe – o que há é uma correção inventada pelos gramáticos. E como o cético não dá crédito a essa correção inventada, ele chega à conclusão de que não há critério de correção fora do uso comum. O que Sexto enfatiza ao longo de seu Contra os gramáticos é que, ao contrário das normas prescritas pela gramática, a correção está na observação do uso comum da linguagem.

A observação ao uso está na própria crítica que Sexto Empírico faz para desacreditar a possibilidade de ser a gramática uma arte, pois está no ataque aos princípios que devem existir para que haja uma especialidade relacionada ao helenismo – já que um dos pré-requisitos para uma especialidade ser assim considerada é que ela seja baseada em algum princípio (Adv. Gram. I 180). Nessa investigação, diz Sexto que, caso haja princípios, eles deverão ser ou técnicos ou não-técnicos. Se forem princípios técnicos, eles serão construídos ou a partir deles mesmos ou de uma segunda especialidade, e essa de outra, levando a um regresso ao infinito – de modo que a especialidade não teria um princípio e, assim, não seria sequer uma especialidade (Adv. Gram. I 180). Por outro lado, se forem não-técnicos, o único princípio encontrado será aquele do uso comum (Adv. Gram. I 181). A conclusão, então, é que não há a pureza sobre a qual os gramáticos pretendiam fundar o critério de helenismo, já que não se pode definir a correção gramatical (Dalimier, 1991, p.17). Assim, já que qualquer critério técnico acaba levando a um regresso ao infinito, ele se mostra inútil, só restando a confiança no uso comum.

Essa inexistência de material que corroborasse para a construção de uma ciência inspirou Sexto na sua empreitada contra os gramáticos. Sua busca investigativa sobre a possibilidade mesma de existência da gramática terminou por declará-la inútil, vã. Segundo Sexto, não existe gramática na medida em que não há experiência do ilimitado – como Saussure reconheceu que o objeto da linguística precisa ser criado, como lemos em famosa passagem do Curso: “Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (Saussure, s/d[1916], p.15).

O linguista, então, cria um objeto – a língua. O cético se recusa a esse papel: permanece com a inexistência da gramática (p. ex. Adv. Gram. I 75). O linguista prefere inaugurar a ciência da linguagem a partir de um ponto de vista que ele sabe ser completamente arbitrário: “Não há ‘um ponto de vista mais indicado que outro’” (Saussure apud Depecker, 2012, p.69). Saussure viu a linguagem humana a partir de um ponto de vista e delimitou identidades linguísticas em consequência deste ponto. Ele poderia, é claro, ter criado uma outra linguística, uma outra ciência – criou esta, que ficou conhecida como uma perspectiva estruturalista de linguagem. Ele criou deliberadamente uma ciência a partir do que ele e Sexto concordavam ser inexistente: a linguagem humana.

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Ana Paula El-Jaick

Referências:

ARRIVÉ, M. Em busca de Ferdinand de Saussure. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

DEPECKER, L Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Tradução de Maria Ferreira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

DALIMIER, C. Sextus Empiricus Contre les grammairiens: ce que parler grec veut dire. In: SAÏD, S. (Ed.). Quelques jalons pour une histoire de l’indentité grecque. Leiden: Univ. des Sciences Humaines de Strasbourg, Travaux du Centre de Recherche sur le Proche-Orient et la Grèce Antiques, 1991. n. 11, p. 17-32.

DESBORDES, F. Le langage sceptique: notes sur le Contre les grammairiens de Sextus Empiricus. In: BARATIN, Marc; DESBORDES, Françoise (Org.). Langages, mars 1982. n. 65.

SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler. Tradução: Carlos Augusto Leuba Salum; Ana Lucia Franco. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.
______. Curso de linguística geral. São Paulo, Editora Cultrix, s/d [1916]

SEXTUS EMPIRICUS. Contre les professeurs. Introduction, glossaire et index par Pierre Pellegrin, traduction par Catherine Dalimier, Daniel Delattre, Joëlle Delattre et Brigitte Pérez, sous la direction de Pierre Pellegrin. Paris: Éditions du Seuil, octobre 2002.

______. Against the grammarians. (Adversus mathematicos I). Translated with an introduction and commentary by D. L. Blank. (Claredon later ancient philosophers). New York: Oxford University Press Inc., 1998.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.