Tudo bem em Jerusalém; o mal é ocidental: Ensaio sobre o imaginário ocidental em correspondência a um relampejo etnográfico – Número 14 – 06/2011 – [44-56]

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1. Jerusalém é uma cidade metafórica. Experimentar seu cotidiano é um desafio permanente de localização entre histórias milenares, passados míticos, micropolíticas afetivas e geopolítica global. Não apenas nossos caminhos nela se balizam por buscas voluntariosas, por promessas ouvidas no ultramar ou por peregrinações religiosas, mas nesta cidade nossas experiências são perpassadas por fenômenos densos, díspares e em doses colossais como raro se vê. Apesar dos impactos simbólicos repetitivos ao se caminhar pelas ruas, a digestão emocional do que se sente é lenta, e mais lenta é a compreensão intelectual do que se passa. Ao menos para o neófito observador que lhes escreve. A experiência em Jerusalém é especialmente metafórica, me parece. E, se toda metáfora é também uma metonímia, uma representação do todo pela parte, aqui o todo expressa sua irredutibilidade às partes… em toda parte.

2. Jerusalém é tambem chamada de Yerushalaim ou de Al Quds por muitos de seus habitantes. Aqui Salomão construiu o Primeiro Templo, em 950 a.C., destruído pelo babilônios em 586 a.C. Seis décadas depois, o Segundo Templo foi erguido. Em 63 a.C., os romanos conquistaram a cidade inciando um momento de domínio mais conhecido pela crucificação de Jesus, que por ali foi ao Calvário. A revolta dos judeus contra os romanos em 66 d.C. levou então à destruição do Segundo Templo por Tito, e sob novas insurgências a destruição total fora ordenada por Adriano, em 132 d.C. Passados dois séculos, Constantino legalizou o Cristianismo, e sob o Império Bizantino Jerusalém refloresceu. Helena, mãe de Constantino, foi em missão à cidade e encontrou os pontos do percurso de Jesus até a cruz, além da cruz original; demarcou a Via Dolorosa e construiu a Igreja do Santo Sepulcro.  Os persas aqui derrotaram os bizantinos no sétimo século, mas, enfraquecidos, em poucos anos o Califa Omar pode dominar a Palestina sob a insígnia do Islã, e com ela Jerusalém. Em 688, os muçulmanos construíram o domo dourado sobre a pedra da qual Maomé ascendeu ao céu após sua jornada noturna até a mesquita mais distante, no Monte do Templo ou Haram Ash-Sharif. Para os judeus, esta pedra é o centro do mundo e a reminiscência do Primeiro Templo – segundo o Talmud, foi aqui que Deus juntou a terra para formar Adão, e onde Abraão quase sacrificou Isaac.

Os muçulmanos dominariam Jerusalém por treze séculos. Os quatro primeiros foram de tolerância religiosa e convivência entre peregrinos das várias religiões, não obstante as disputas de poder. Apenas no décimo século depois de Cristo o califa perseguiu os não muçulmanos e destruiu igrejas e sinagogas. Vieram então as Cruzadas, que consquistaram a cidade em 1099. Mas em 1187 Saladino derrotou os cruzados e permitiu que muçulmanos  e judeus se reestabelecessem na cidade. Até 1517 os mamelucos ali predominaram, quando foram derrotados pelos otomanos. O que se vê mais ostensivamente hoje, as muradas da cidade velha, são obras otomanas. O Édito de Tolerância do sultão otomano, em 1856, pemitiu o estabelecimento de judeus fora dos muros da cidade velha. Em boa medida sob a patronagem de Moshe Montefiore, o fluxo de judeus aumentou e acabou por formar a atual cidade nova.

3. Em 1917 a Inglaterra fez de Jerusalém a capital administrativa de seu Mandato. Aumentava as tensões com a ascensão dos nacionalismos árabe e judeu, incorrendo em batalhas civis e paramilitares. Com a saída dos Britânicos da Palestina, caberia à ONU controlar a cidade. O plano de divisão territorial entre Israel e Palestina incluía a administração internacional de Jerusalém. Com a guerra de independência de Israel, em 1948, a Jordânia ocupou o lado leste assim como a cidade velha de Jerusalém. Israel ficou com o cidade nova e o oeste. A cidade ficaria dividida, cindida por dezenove anos. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel capturou e ocupou a cidade velha, reconstruindo um bairro judeu no em seu seio, entre a cidade nova e o Kotel – o Muro das Lamentações. O Haram Ash-Sharif, onde fica o domo dourado, faz parte basicamente da mesma estrutura que o Kotel. O Muro das Lamentações é o muro oeste do Segundo Templo, e além de um ponto sagrado para os judeus contemporâneos, funciona hoje como o guardirreio geológico de todo o plano do Monte do Templo, incluindo a mesquita Al-Aqsa (mais distante) e a pedra tão sagrada para judeus quanto para muçulmanos. Logo após a tomada da cidade velha em 1967, o comandante israelense devolveu a administração do Monte do Templo para os líderes muçulmanos de Jerusalém. Segundo consta, mesmo na época de atividade do Segundo Templo, não era qualquer judeu mas apenas o alto escalão do rabinato que podia entrar dentro do Templo – a lei da Torá (Velho Testamento) proíbe a entrada de não sacerdotes no local mais sagrado, onde repousaria a Torá original e onde a presença divina seria permanente. Hoje, para muitos, ainda é inadmissível que tal local esteja sob cuidados de muçulmanos. E dentro do Domo Dourado não se admite a entrada de não muçulmanos. Do lado do Kotel, ao longo do muro, se reza, chora, deseja e comunha… no Shabbat se canta e dança. Mas o acesso a ambos os locais é rigidamente controlado por detectores de metais e raios-x. A presença militar não é pouca, e surpreende a qualquer visitante. Cenas de rezas compulsivas feitas com a Torá sobre um fuzil impactam, mas não ofuscam os abraços entre rabinos e desconhecidos nas cantorias e danças de uma sexta feira a noite.

Se o conjunto Kotel-Haram-Ash-Sharif não possui a convivência interreligiosa pacífica como um marco monumental, sua interdependência (ou mesmo coincidência física) não deixa de ser uma ironia sutil sobre a viabilidade de sua gestão e solução política. E que conjunto mais belo! Sua aparição toca profundamente os sentimentos de quem ali se permite aventurar. Já na Igreja do Santo Sepulcro a convivência interreligiosa em uma única construção chega a ser maravilhante… não exatamente pela presença de católicos, ortodoxos gregos, etíopes ou cópticos, que ao longo dos séculos interpenetraram a estrutura arquitetônica, formando um mosaico eclesiástico, e nem tanto pela orquestração entre os cultos destas várias igrejas – que se intercalam em cânticos de franciscanos e procissões de armênios envoltas em fumaça… o que realmente surpreende é que quem ciceroneia a celebração destes cultos, quem abre alas para as cerimônias, quem abre as portas de cada capela, enfim, quem inaugura e encerra as atividades diárias da Igraja do Santo Sepulcro ao trancar e destrancar a cada manhã e noite sua enorme porta de madeira há novecentos anos… são muçulmanos. Há nove séculos, desde a tomada de Jerusalém por Saladino e a expulsão dos cruzados, é uma família muçulmana que cuida do sítio mais sagrado dos cristãos! E as várias tendências cristãs não chegam a um consenso sobre a reforma necessária do prédio, já há algumas décadas.

Como local mais sagrado para judeus e cristãos, assim como um dos mais sagrados para muçulmanos, Jerusalém ainda é a capital disputada de ambos Israelenses e Palestinos. Poucos países a reconhecem como capital de Israel, dado seu status controverso, e preferem Tel Aviv como localização de suas embaixadas. O estado de Israel evita que qualquer parte de Yerushalaim caia sob controle político e jurídico da Palestina, e não permite que aqui fique a sede da Autoridade Palestina, apesar de muitos palestinos considerarem Al Quds como sua capital natural. Em Mamilla, um ponto badalado na cidade nova, é possível observar uma campanha civil ‘por uma Jerusalém unida’. Mas, para além da beleza cosmopolita inicial do mote, percebe-se que se trata de uma defesa de uma Jerusalém Israelense, apenas, e com a manutenção de muros em seu entorno, separando-a da Cisjordânia. Aliás, uma Jerusalém unida é também um mote oficial do estado de Israel. E seu ímpeto tem sido de criar ‘estabelecimentos’ de judeus entre a Jerusalém oriental e o resto da Cisjordânia. Tais estabelecimentos, junto com outros na Cisjordânia, acompanhados de muros e forte presença militar, teriam o objetivo de criar fronteiras à outrance, por fato consumado, para o Estado Palestino – que se promete criar em setembro vindouro. É claro que isto não significa um consenso judeu nem israelense sobre as ações do Estado Israelense a esse respeito – até porque, como se diz, ‘onde há dez judeus, há onze opiniões’ (p.e. há judeus ortodoxos que negam o Estado de Israel e até participam de intifadas)… mas digamos que essa é uma posição aparentemente hegemônica. Seja do lado israelense, seja palestino, neste momento, debates, ânimos e ações diretas se acirram sobre o estatuto deste aglomerado humano que chamamos Jerusalém, com mais de três milênios de história registrada e dramática.

4. Tive a sorte de conhecer alguns personagens fascinantes desta cidade e seus entornos. No centro da antiga cidade romana de Jerusalém, na encruzilhada precisa de ângulos retos que definia o início do Cardo (mercado romano), hoje funciona o café Al Bashora. Seu dono, uma figura animada, sorridente e simpática, Hilmi, é um palestino israelense. Árabe de família muçulmana, nascido na velha Jerusalém pré 1967, então pertencente à Jordânia, Hilmi se tornou cidadão israelense quando criança, com lembranças da guerra dos Seis Dias. Ateu e comunista, Hilmi ingressou na Frente Popular pela Libertação da Palestina. No entanto – entre histórias, piadas, cafés e clientes – ele afirma que seu sonho é que as duas ‘nações’, israelenses e palestinos, convivessem de maneira igualitária sob o mesmo estado. Esse é seu autodenominado sonho. Não sabe como chegar lá. O grande problema que trava a possibilidade dessa comunhão sob o mesmo estado seria a ausência de uma esquerda em Israel.

Outra figura simpática, generosa e atenciosa que tive a oportunidade de conhecer foi o irmão mais novo da família Muna, donos da excelente e premiada Educational Books, na Jerusalém oriental. Palestino e especialista no conflito árabe-israelense, Muna também compartilha o ideal de esquerda de duas nações em pé de igualdade sob um mesmo estado, e se queixa de que não restaria qualquer esquerda em Israel, que a esquerda israelense se resumiria a literalmente vinte pessoas, boa parte residindo fora do país. Por enquanto, não haveria outra saída ao apartheid israelense senão a criação do Estado Palestino.

Quase no centro do Café Al Bashora, um pouco deslocada em relação ao cume da cúpula que jaz sobre a encruzilhada central da antiga Jerusalém romana, há uma fonte. Ela está seca, é verdade, mas há uma fonte. E Hilmi recebe a todos. Os Muna, por sua vez, não faltam com formação, informação e simpatia.

Para o observador incauto que lhes escreve, pensando além das intolerâncias, ódios e terrores que habitam disputas nacionalistas de soberania territorial, parece haver uma polarização entre as atitudes sociais e políticas institucionais de sujeitos progressistas. Se por um lado, seu cotidiano é perpassado por atitudes de cortesia, trocas e até amizades, essa postura de convivência, cooperação e mutualidade não se traduz facilmente em propostas governamentais ou mesmo em políticas de estado. Como no sonho de Hilmi, não há um projeto histórico e instituinte que consiga chegar a termos com o estado-nação. Que isso seja fruto também de operações da geoplítica global, de interesses em jogo e de hegemonias políticas, não há dúvida. Mas gostaria de arriscar um raciocínio aqui sobre os fundamentos imaginários desta polarização entre sociabilidade progressista e dificuldades com o estado-nação. Essa polarização seria um desdobramento do imaginário ocidental.

5. Tomando o imaginário como um conjunto magmático de significações (e não símbolos) que se instauram naturalmente pela socialização e pela percepção do mundo por parte do ser humano e que fundamentam a sociabilidade e a compreensão do sujeito de si, da alteridade e do mundo, que o situa no universo (a um só tempo consciente e inconscientemente), como concebe Castoriadis, pretendo fazer uma brevíssima reconstrução do imaginário ocidental e suas implicações para as dificuldades e limites que impõe para pensar a política, contemporânea inclusive.

O Ocidente, postulo, é um imaginário, um conjunto magmático de significações. Ele não é um conjunto restrito de bens materiais, instituições políticas e sociais ou sentimentos afetivos. Definir o ocidente a partir de critérios desse tipo incorre frequentemente em usurpar a história de diferentes povos que de forma ou outra criaram ou possuíram tais elementos. Definir o ociente a partir de critérios geográficos também apresenta dificuldades sociológicas enormes. O ocidente como o defino aqui não é a descrição da totalidade de civilizações, mas apenas um conjunto central (mas, por definição, não exclusivo nem imutável) de significações imaginárias que formam fundamentais no processo de instituição de  múltiplas sociedades ao longo da história.  É preciso ressaltar também que este Ocidente não se opõe a um ‘oriente’ de modo estruturalista. A oposição binária e analítica ao “oriente” define este apenas como um aglomerado tomado em sua negatividade em relação ao autointitulado ocidente. Nesta oposição, o oriente se torna apenas o local de degradação do ocidente, analítica e moralmente. O ocidente como imaginário é uma constelação de significações sociais e imaginários que se opõe a uma diversidade de outras significações cujas características próprias, positivas e comuns restam ser trabalhadas – ou intelectualmente definidas.

O ocidente imaginário (não irreal), enfim e sumariamente, consiste numa ontologia dualista do mundo, numa concepção de uma natureza humana malévola, numa teoria social da governamentalidade e numa filosofia da história. A ontologia dualista do mundo pode ser traçada ao monoteísmo da tradição bíblica, que distingue um Deus externo ao mundo, e que resulta em distinções entre matéria e espírito, corpo e alma, natureza e cultura, por exemplo. Uma concepção malévola da natureza humana já se fazia presente tanto na Torá (Velho Testamento, Noé), quanto na mitologia grega – malévola no sentido de que naturalmente, partindo de si, o homem tenderia ao caos e à violência contra o próximo ou contra os mandamentos divinos. A este caos se contraporia as teorias da ordem e da governamentalidade a partir de um poder soberano uno (em correspondência mundana seja a um monoteísmo divino, seja a um reinado divino) tanto em sua versão hierárquica, centralizadora ou monárquica, quanto sua versão igualitária, descentralizadora ou republicana. Tal imagináro sobre uma natureza humana caótica e anárquica, malévola ou decaída e pecaminosa a ser superada por uma ordem instituída pela hieraqruia ou pelo equilíbrio de forças e igualdade, constituiria, nas palavras de Marshall Sahlins, uma metafísica da ordem especificamente ‘ocidental’. Essa metafísica seria uma verdadeira structure de longue durée, presente há três mil anos e que ainda hoje define os marcos da política em boa parte do mundo, mesmo que tenha assombrado uma fração menor da humanidade relativamente à totalidade da existência humana. Seguindo nosso suposto, tal metafísica, ou imaginário social, não correspondeira a um ocidente geográfico… mas ela é o ocidente em si… transterritorial, mesmo que territorializavel. E a esta metafísica totalizada da ordem, corresponde uma filosofia da história que, mesmo que variável, aponta para uma teoria da mudança e para um fim social, uma ordem social ideal, mesmo que este fim esteja implícito ou inconsciente.

Essa “metafísica ocidental” – parte das significações do ocidente imaginário associada às teorias da soberania e da governamentalidade, de uma gestão da população baseada na ordenação das relações entre os elementos – não é exclusiva ao ocidente geográfico, e nem é absoluta dentro do ocidente geográfico. Em Israel e na Palestina, o encontro conflitivo entre ocidente e oriente geográfico supostamente ocorre, como se tem em conta no senso comum. Mas os conflitos físicos e violentos que ocorrem entre Israel e Palestina se dão dentro de um campo onde o ocidente imaginário reina absoluto – sim, o Islã é ocidental segundo o que se propõe aqui como ocidente. O encontro problemático que ocorre em Israel/Palestina, e que ocorre dispersamente no mundo inteiro, desde o surgimento do ocidente imaginário, é o contraste entre, de um lado, a “metafísica ocidental”, sua concepção de uma natureza humana perversa e suas teorias da soberania da governamentalidade, e, de outro lado, outras metafísicas e concepções concorrentes de natureza humana. Este é o conflito interno em todos nós familiarizado com o imaginário ocidental. A nós, nascidos e criados no capitalismo, socializados em meio às teorias sociais hobbesianas e habituados a esta razão prática da sociabilidade capitalista, fica difícil imaginar uma natureza humana distinta ao complexo da possessão-destruição. Criemos pânico porém não nos desesperemos: se o imaginário ocidental ameaça progressivamente nossa existência desde há três mil anos, alternativas a esse paradigma se encontram na nossa própria socialização, disputando nosso cotidiano desde tempos longínquos até hoje:

o que nós estamos acostumados (pleased) a considerar natureza humana consiste em sua maior parte de inclinações de adultos machos (burgueses), excluindo enormemente mulheres, crianças e idosos e à negligencia relativa do único princípio universal da socialidade humana, o parentesco. Pode-se pensar que a natureza humana começa no lar; mas aí ela teria que ser pensada diferentemente do interesse próprio, já que a caridade sempre esteve lá” (Sahlins, The Western illusion of human nature; 2008, 44).

O parentesco são as relações com outros que são intrínsecas ao ser subjetivo de uma pessoa e sua identidade objetiva. Como princípio geral e abstrato, o “parentesco é uma relação mútua de ser. Parentes são membros um do outro (…) o outro em si mesmo é intrínseco para a existência do um” (ibidem:46). Há vários modos de parentesco: residência comum, história comum, troca de dádivas, providência de alimentos, memórias compartilhadas, etc. – implicando a mutualidade do ser. Como fenômeno universal na humanidade, o parentesco habilita concepções espontâneas, razões práticas e mesmo conceitos elaborados sobre a própria natureza das pessoas de modo que “para a maior parte da humanidade, o interesse próprio (self-interest) como o conhecemos é in-natural no sentido normativo: ele é considerado loucura, bruxaria ou outro motivo para ostracismo, execução ou ao menos terapia”. Logo, o conceito ocidental da natureza humana seria uma ilusão antropológica de desproporção mundial (ibidem: 51).

Mesmo que se postule ou não que humanos são essencialemnte parentes uns dos outros, não se trata aqui de contrapor uma concepção de natureza humana benévola ao imaginário ocidental da natureza humana perversa. O problema é a naturalização e o biologismo em si, que elide a instituição imaginária do social histórico, nos termo de Castoriadis. Tal naturalização define os marcos metafísicos de qualquer política possível. Dito isto, segundo Ashis Nandy, várias civilizações tiveram noção da possibilidade da exploração do imaginário do interesse próprio, egoísmo e possessividade do ser humano, e se instituíram por um imaginário e uma sabedoria tradicional que evitasse tal comportamento e promovesse outros, ao contrário do que se deu com o imaginário ocidental.

6. A ideologia do nacionalismo, e de um estado-nação, é uma formulação moderna e uma ocidentalização imaginária de uma concepção do parentesco. Suas idéias, datando da Revolução Francesa, por exemplo em Burke, postulam uma mutualidade do ser restritas em um território administrado por um estado moderno – de tal maneira a corresponder a um território econômico afim ao capitalismo (ver Fiori, O Poder americano: cap.1), o que não é um detalhe. Nela se gestam oposições variáveis de não-parentesco (em relação a populações definidas a partir de critérios arbitrários) e de admissão das significações capitalistas e do interesse próprio, com forte presença da governamentalidade e elisão ideológica da distinção entre classes promovida por sua economia política característica.

O sionismo teria surgido como um nacionalismo típico do século XIX do leste europeu, mais vinculado a uma exclusividade étnica do que seus correspondentes no oeste europeu à época da Revolução Francesa (ver Domingues, “A Sociologia Israelense (…)”, RBCS v.25, n.23). Transferido ao Oriente Médio, seus impactos e deslocamentos territoriais são o cerne do conflito Arabe-Israelense. Seu fundamento, e possível solução não deixam de ser imaginários (e reais). É preciso dizer que o sionismo nunca foi um consenso absoluto, mas sim uma diputa permanente sobre o que deveria ser um estado-nação judeu. Além de se localizar na “terra prometida” por Deus aos “filhos de Israel”, como consta na Torá, contemporaneamente o Estado de Israel se justifica moralmente no senso comum pela Diáspora e sobretudo pela Shoah (holocausto). Porém, o anti-anti-semitismo não se equiparou ao sionismo, tomando formas diferentes, e, em alguns casos, até um antisionismo semita. E dentro do conjunto das posições sionistas, um estado exclusivista também não foi um consenso.

Nas últimas décadas, no entanto, com a ruptura progressiva do elemento igualitarista no sionismo procedido pelo declínio do trabalhismo, o consenso sionista foi se abrindo. Com o assassinato de Ytzhak Rabin, em 1995, então pela segunda vez como primeiro ministro e em meio a negociações com a Autoridade Palestina, por um jovem judeu da direita radical, radicalizou-se a polarização entre esquerda e direita, o que se traduziu em vitórias subterrâneas e avassaladoras para a direita, que deslocou todo o terreno operacional em sua direção. A construção de estabelecimentos judeus na Cisjordânia, o isolamento de Gaza e o levantamento de um muro não são fatos nada triviais, e com impactos brutais. Jerusalém, como disse, se encontra no cerne deste conflitos. Como pólo sagrado para toda a tradição bíblica e capital desejada de ambos países, o monte de Sion se encrustra na Cisjordânia. Durante algum tempo, foi o alvo preferido de ataques terroristas vindos do leste. A decisão de cercar a cidade, desapropriar vários bairros árabes e estabelecer judeus em seu entorno, com a construção de um muro de seis a oito metros de altura que percorre dezenas de quilômetros e é pontuado por alguns checkpoints que regulam e limitam a circulação entre bairros e a entrade de palestinos à Israel são alguns dos fatos conhecidos e noticiados amplamente. A brutalidade desses acontecimentos é notória… mas vivenciar isto mesmo que por alguns instantes é difícil de descrever ou mesmo de imaginar à distância.

7. A sede da Autoridade Palestina se situa em Ramallah – pela exclusão de Al Quds pelo estado Israelense – quinze kilometros ao norte, no cotovelo de Jerusalém. Ramallah é uma cidade rica, repleta de negócios, predios de alto padrão, comércio e trânsito intenso de veículos de luxo. Sua vida cultural não fica para trás. Após passar o checkpoint israelense e cruzar os muros da exclusão da palestina, chega-se em Qalandia, uma pequena cidade satélite, como um bairro de Ramallah que bem parece um bairro de Jerusalém também, dado o enorme fluxo de carros entre as duas. Em Ramallah, entre os transeuntes, comerciantes e soldados, fui muito bem recebido. A “Rua Brasil”, inagurada por Lula, desemboca em frente ao monumento do túmulo de Arafat. Seguindo a estrada lateral se chega até a bonita Universidade de Birzeit, de onde se tem uma vista maravilhosa da Palestina. Ao final de um dia agradável de passeio, devia retornar a Jerusalém. No caminho havia Qalandia, o checkpoint e o muro. Resolvi descer do ônibus e ver o muro de perto.

De início, a visão do muro é algo alegórico, uma imagem da tv que finalmente se atesta a veracidade. Sim, é horrível, mas é real, você se encontra com ele. E há grafitis enormes, pixações com protestos altermundialistas, verbetes pró Palestina, às vezes alguma mensagem antisionista e até uma eventual manifestação antisemita. Mas a grande maioria das pixações no muro em Qalandia são altermundialistas, internacionalistas e com mensagens interessantes e inspiradoras do tipo “Ctrl+Alt+Del” ou “One Wall, Two Jails”. Com sorte, dá para encontra um grafiti astuto do Banksy… e aquela parada adquire um tom de passeio. Mas aí você segue o muro. Caminha algumas centenas de metros, ladeando uma barreira de concreto de seis metros de altura de um lado, ao longo de uma estrada de terra, com alguns escombros do outro lado, que o separa dos quintais, jardins, hortas e cercas das casas e prédios de Qalandia. Naquele trecho todas as residências tem boa aparência, são bem construídas e quiçá espaçosas. No muro se vê uma corda para escalá-lo, algumas marcas de fogo, e até uma rampa de pedregulhos que possibilitaria passar para o lado israelense… mas que levaria a uma área com duas faixas de cerca alta de arame. Ao subir essa rampa e olhar para baixo, me lembrei de Hamze.

Hamze é um rapaz de Ramallah que trabalha num albergue em Jerusalém. Além de ser seu trabalho, o albergue é sua prisão, como ele mesmo diz. Hamze é um palestino nascido na Cisjordânia e que não consegue os documentos necessários para entrar em território israelense, quanto menos para trabalhar. Sua opção foi tentar a vida trabalhando na Jerusalém oriental. Sua alternativa, no entanto, é não sair do local de trabalho, pois ao tentá-lo algumas vezes, já ficou preso três meses por não portar documentos de permissão. Suas únicas saídas habituais são para cortar o cabelo. E ele só retorna para Ramallah a cada dois ou três meses para ver a família e amigos. Cada vez que retorna, tem que pagar uma quantia equivalente a duzentos Reais para um grupo que organiza entradas clandestinas a Israel para palestinos sem autorização. O procedimento é pular o muro, de seis metros. Hamze, de vinte anos, já quebrou duas vezes a perna fazendo isso.

Lembrando de Hamze, da militarização e dos possíveis riscos, achei melhor sair dali. Um trabalhador numa construção civil ao lado também recomendou que descesse da rampa. Com a passagem da espécie de efeito analgésico de um passeio ao longo um ícone do mundo contemporâneo e das mensagens inspiradoras de altermundialismo nele inscritas, que são subversões simbólicas de alta qualidade, comecei a perceber que, de fato, o muro estava lá, era enorme, gigantesco, e cujo fim não enxergava ao não ser por um checkpoint que mais se assemelhava a uma parte de penitenciária combinada a um pedágio de estrada. Aí uma tristeza começa a abater. Ver a terra cortada e pessoas divididas de maneira tão imponente e radical não é fácil, mesmo para uma pessoa socializada em grandes metrópoles brasileiras. O muro que corta a terra me deixou bastante sério. Não sabia o que acontecia.

Até consegui manter o bom humor ao encontrar duas crianças que brincavam na estrada de terra e nos entulhos ao seu lado. Sem uma língua em comum para nos comunicar, falei em Brasil, eles responderam com futebol, chutaram pedras ao alto, rimos, fazíamos embaixadinhas com pedaços de minério. E, rindo, eles jogaram pedras para o lado israelense, como uma demonstração in loco da intifada. Perguntei se já haviam estado lá, do outro lado. Disseram que não, e tacaram mais pedras. Continuamos andando. Eu perguntei sobre suas casas. Ficava ali, próxima ao muro. Era um lugar bom (abstraindo a parede de concreto ao lado), um prédio de classe média, classe média alta, talvez. Rindo, eles correram ao entulho e voltaram com um pedaço de plástico que jogavam para o alto, rindo ainda mais. Quando se aproximaram vi que era uma granada. Uma granda sem pino que não havia detonado.

A surpresa e o susto instantâneos só se tornaram um assombro momentos depois. Um dos meninos apareceu com o pino da granda, rindo e brincando de guerra. Eu exclamei para que largassem aquilo, que poderia explodir a qualquer momento. Eles largaram, jorgaram de volta ao entulho ao lado do muro. Achei melhor ir embora imediatamente. Voltando pela estrada, em direção ao checkpoint, os meninos me seguiram por algum tempo, interagindo comigo. Em certo ponto falaram “money”, eu sorri e falei “no money”. Pouco depois pararam de caminhar ao meu lado. Eu continuei. Alguns metros adiante, percebi que jogavam pedras, rasteiras, em minha direção. De início aparentava uma simples molecagem. Segui caminhando. De repende as pedras começam a ficar maiores e mais altas, tacadas para acertar… e o estrago não seria pequeno. Parei e gritei para eles. As pedras não paravam de vir pelo ar. Com o clima pesado e o humor mudando drásticamente no cenário agora totalmente hostil, olhava para as criaças e desviava das pedras. Pensei em tacar pedras de volta, para espantá-los. A vontade era correr atrás deles e dar umas belas porradas, mas eram apenas crianças… pensei em correr para pegá-los e dar uma enorme bronca. Mas o que me impedia de  fazer isso não era apenas devido a uma falta de língua comum para dar-lhes broncas. O que ocorria ali é que diante daquele cenário, do muro, do checkpoint, das cercas e granadas, da violência permanente naquele local entre Jerusalém e Ramallah, naquele momento simplesmente não fazia sentido fazer qualquer coisa em relação aos dois infantes, a não ser continuar caminhando e desviar das pedras. Mesmo que falássemos a mesma língua, não havía bronca ou discurso que fizesse frente à realidade do entorno. Aquelas crianças, bem nutridas, bem vestidas, com uma boa casa, foram socializadas em meio a batalhas campais, cresceram com um muro gigantesco sendo erguido em seu quintal, se habituaram a granadas, e nunca estiveram do outro lado, há poucos metros do seu lar… não foram permitidas fazê-lo. Jogar pedras é algo relativamente leve em seu repertório de experiências. Aquela divisão, aquele muro é uma maneira sistemática de brutalizar pessoas.

Sob ameaça, sem saber como agir, fui embora, muito perturbado e com medo. No final das contas, não sei exatamente por que as crianças jogaram aquelas duas dezenas de pedras. Talvez porque não lhes dei dinheiro, talvez porque acharam que era israelense ou judeu, talvez porque simplesmente ia para Israel. Não sei.

Chegando ao checkpoint, subi num ônibus que ia rumo a Jerusalém. Poucos metros depois fomos parados por alguns soldados israelenses que brincavam de jogar água uns nos outros pouco antes de chegar a vez do meu ônibus passar a cancela. Eram iguais aos meus novos amigos em Israel, mesma idade, rostos e expressões parecidas, funções similares. Entraram no ônibus e ordenaram que todos os estrangeiros saíssem do ônibus e passassem a pé pelo checkpoint de pedestres. Os demais passageiros, não sei se com documentos israelenses ou não, podiam permanecer. Eu já estava muito chateado com o que acabara de acontecer. Quanto fui falar com os soldados, olhava em seus olhos e eles nos meus, e tinha vontade de pedir para parar aquilo, para que fôssemos tomar uma cerveja juntos. E via que o sentimento era correspondido. Mas as funções e ordens tinham que ser cumpridas, nossos sentimentos endureciam. Já anoitecia, e fui para a fila dos pedestres. Junto com outros estrangeiros, entramos no compartimento onde se verifica os documentos dos transeuntes e se faz os procedimentos de segurança, raios-X e vistorias. Eu era o último na fila dos estrangeiros. O grupo andava, e de um galpão sujo e mal arejado, entrávamos por corredores estreitos definidos por grades nos dois lados e acima de nossas cabeças. Aquilo bem me lembrava cenas de algo que é melhor não mencionar. Que clima horrível. A fila parou para o check up. Vários árabes que se encontravam atrás de mim agora tentavam furar a fila ou gritavam para andarmos mais depressa. Como aquilo brutaliza as pessoas.

Tudo de maravilhoso que tinha visto nos dias anteriores – não obstante o mal-estar diante da ultramilitarização – todas as pessoas incríveis que havia conhecido, as amizades com palestinos, israelenses, árabes, muçulmanos, judeus, sírios, que tinha feito… toda aquela bonança social sentida que só aumentava a cada dia em Jerusalém e Ramallah se revertia rápidamente para uma das piores sensações que já tive, de medo, raiva, impaciência e desprezo. Aquele muro divide a terra, as pessoas… e ali sentia que rasgava a alma.

Dias antes, entrava num taxi em algum ponto da cidade com o nome composto com ‘Sion’. Rumava ao Portão de Damasco, na cidade velha. Para evitar o trânsito, o motorista chamado Mahmoud, muçulmano, preferiu ir pelo bairro de Mea She’arim, conhecido por ser o bairro dos judeus ortodoxos das várias tendências. Era fim de Shabbat, e as ruas de Mea She’arim estavam repletas de homens vestidos de ternos e chapéus negros, barbas e cabelos compridos a frente das orelhas. Com o intermédio precário do Inglês, perguntei a Mahmoud se os ortodoxos e os judeus em geral conversavam com ele no seu taxi. Ele respondeu, “sim, nós conversamos… mas no coração eu não sei o que acontece”. Esta frase havia me emocionado quando a ouvi. Na volta de Qalandia para Jerusalém ela ganhava sentido.

8. Sem elidir as importantes distinções políticas entre esquerda e direita, podemos remeter nosso pensamento político a um imaginário comum, com significações recalcitrantes, mesmo que cambiantes. Os desafios imaginários do altermundialismo guardam várias semelhanças entre Palestina, Brasil e o mundo inteiro. Pensar um projeto histórico igualitário, autonomista e cosmopolita que chegue a termos com a maneira pela qual tratar a realidade do estado-nação, para superá-lo ao mesmo tempo em que supera as remições imaginárias de sujeitos socializados no capitalismo e na violência sistematizada é um problema de dimensões globais. A imposição de ordenações a partir de uma teoria da soberania e da governamentalidade e da imaginação de uma natureza humana perversa acaba por ritualizar o mito que anuncia. Em setembro se criará o Estado Palestino. Oxalá isso contribua para uma vida melhor para todos na região. Do ponto de vista do imaginário ocidental, tudo bem em Jerusalém. No coração, eu não sei o que acontece.

Nota: Se o texto que aqui finda foi tortuoso, peço perdão ao leitor atento. Mais tortuoso foi escrevê-lo.

Dedico este ensaio a Fernanda, Ida e ao International Solidarity Movement. Fernanda que me acompanhou em Jerusalém e Ramallah, nas ótimas e péssimas experiências e que não arredou o pé. Ida nos apresentou o International Solidarity Movement e seguiu à Palestina, onde apoiam a resistência não-violenta dos palestinos contra ocupações ilegais e por uma condição digna de vida. Para elas e para o ISM, toda minha admiração e respeito.

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Gabriel Locke

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.