A primavera árabe e as lembranças de 1848 – Número 9 – 05/2011 – [28-30]

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As revoltas populares em países do Norte da África e do Oriente Médio vem sendo chamadas por muitos de “primavera árabe”. A onda de protestos e enfrentamentos iniciada na Tunísia no mês de janeiro já teve reflexos em pelo menos mais 13 países da região. Dois presidentes que ocupavam os cargos há décadas foram derrubados, um país está sendo bombardeado por uma coalizão internacional liderada pela OTAN, milhares de pessoas foram mortas, presas ou deslocadas e os conflitos ainda parecem longe do fim.

A idéia da primavera é uma metáfora expressiva para descrever estes acontecimentos, se tomarmos como referência as zonas temperadas do globo, em que as quatro estações do ano são bem definidas.  A primavera traduz-se no despertar da natureza após os rigores do inverno. É a vida que volta a brotar da terra adormecida. A primavera árabe, despertar de povos submetidos a governos de caráter autoritário, não é de modo algum um movimento com sentido único, deve ser reconhecida a pluralidade de questões que estão colocadas nos diferentes focos de insatisfação. O que há em comum nas diversas manifestações? Homens e mulheres que exigem “reformas políticas” e, sobretudo, melhores condições de vida.

O título primavera remete também a outro importante momento da história do Ocidente: a Primavera dos Povos, em 1848. Em alguma medida é possível estabelecer analogias entre a Primavera de 1848 e as convulsões no mundo árabe. Em primeiro lugar, deve-se recordar que os anos 1846-1847 foram marcados pela baixa produção agrícola e por uma crise industrial que geraram escassez de alimentos e desemprego. Além disso, as populações dos países em que ocorreram levantes estavam submetidas a regimes autoritários e, em alguns casos, sujeitos à dominação estrangeira. Por fim, outro aspecto característico de 1848 foi a difusão do espírito de contestação por várias nações, o “efeito dominó” que transformou insurreições inicialmente localizadas em um acontecimento de grandes proporções.

De modo análogo, a região atualmente em conflito sofre com os impactos de uma prolongada crise econômica mundial, com governos autoritários, comandados por líderes que procuram prolongar a sua permanência no poder indefinidamente, apesar da insatisfação popular e das frequentes acusações de corrupção. Diante deste cenário, seria possível afirmar como Tocqueville – em suas lembranças sobre 1848 – “Nós dormimos sobre um vulcão…”.  De fato, um vulcão adormecido parece ter entrado em erupção e, como em 1848, o efeito de “contágio” foi quase imediato.

Na primavera do século XIX revoltas de caráter liberal, nacionalista e, em alguns casos, democrático se espalharam por parte do continente europeu. Franceses, húngaros, tchecos, austríacos, alemães e italianos se insurgiram contra seus governos nacionais protagonizando o que na leitura do historiador inglês Eric Hobsbawm foi o mais próximo que se chegou, até então, de uma revolução mundial.

Na França, por exemplo, em fevereiro de 1848, os trabalhadores parisienses derrubaram a Monarquia de Julho e instauraram a Segunda República. Entretanto, em pouco tempo os moderados assumiram o poder e reprimiram as manifestações de caráter mais popular. Em março do mesmo ano a população alemã saia às ruas de Berlim para exigir a convocação de uma Assembleia Nacional eleita por sufrágio universal. Na Áustria, ainda em março, manifestações populares, insufladas por políticos de orientação liberal, contribuíram para derrubar o chanceler Metternich, no poder há 30 anos. Em Praga, os nacionalistas conseguiram reunir o Congresso Pan-Eslavo, que representava o esforço de afirmar uma identidade eslava frente aos germânicos, mas o congresso foi reprimido e dissolvido à força.

A história da Primavera dos Povos narra mais derrotas do que conquistas. Em alguns casos, os avanços obtidos foram incorporados à dinâmica política local, mas na maior parte da Europa a situação anterior foi restaurada. Se os resultados concretos das insurreições ficaram aquém do espírito revolucionário que as presidia, o seu valor simbólico permanece ainda hoje. Aquela primavera serviu de inspiração para muitos movimentos contestatórios que aconteceriam depois.

Não é possível precisar ainda quais serão os efeitos reais da primavera árabe, mas alguns analistas já apontam para a possibilidade de que sejam realizadas reformas, sem a mudança efetiva dos grupos que dominam o poder, como ocorreu até agora na Tunísia e no Egito. Apesar do desejo de ver os revoltosos triunfarem, não se pode ignorar que a situação é complexa, pois aparentemente na maioria dos países não há uma oposição articulada capaz de substituir prontamente os autocratas e responder de forma imediata aos anseios da população.

A postura das lideranças dos países mais ricos do mundo em relação a toda esta situação é ambígua, pois a retórica democrática não combina com a tentativa de disciplinar o rumo dos levantes, motivada pelo temor de que os atuais governantes sejam substituídos por grupos radicais islâmicos. Ironicamente, governos que se intitulam defensores da democracia, por um longo tempo apoiaram e legitimaram os regimes autoritários. O conservadorismo travestido no discurso humanitário provavelmente atuará para garantir que o equilíbrio de forças na região permaneça inalterado.

Ainda que esta primavera não consiga extinguir definitivamente o inverno que até bem pouco tempo parecia eterno nestes países, ela demonstra, ao contrário de uma visão muito difundida por alguns ideólogos do Ocidente, que estes povos não estão condenados ao despotismo e nem são intrinsecamente refratários aos valores liberais. Na pior das hipóteses, a imagem da primavera ajuda a recordar que os invernos não duram para sempre.

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Chiara Araujo

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.