Da Obediência Passiva – Número 166 – 08/2018 – [65-67]

D

Este Breviário em PDF

Tradução de Bruna Frascolla Bloise

1. No último ensaio, tentamos refutar os sistemas especulativos de política introduzidos nesta nação; tanto o sistema religioso de um partido quanto o filosófico do outro. Vamos agora examinar as consequências práticas deduzidas por cada partido quanto às medidas da submissão devidas a soberanos.

2. Como a obrigação à justiça está inteiramente fundada sobre os interesses da sociedade, que requerem abstinência mútua da propriedade para preservar a paz na humanidade, é evidente que, quando a execução da justiça fosse acompanhada por consequências perniciosíssimas, essa virtude deveria ser suspensa e dar lugar à utilidade pública, em emergências tão extraordinárias e urgentes. Aquela máxima, fiat Justitia & ruat Coelum, faça-se a justiça, ainda que o universo seja destruído, é evidentemente falsa, e, com sacrificar os fins aos meios, mostra a ideia prepóstera da subordinação dos deveres. Que governador de cidade hesita em queimar os subúrbios quando eles facilitam a aproximação do inimigo? E que general deixa de saquear um país neutro quando as necessidades da guerra o exigem, e não pode garantir doutro modo a subsistência do seu exército? Passa-se o mesmo com o dever de lealdade, e o senso comum nos ensina que, como o governo nos obriga à obediência só por causa da sua tendência à utilidade pública, tal dever sempre, em casos extraordinários, quando a ruína pública acompanharia de modo evidente a obediência, cederá à obrigação primária e original. Salus populi suprema Lex, a segurança do povo é a lei suprema. Esta máxima está conforme aos sentimentos da humanidade em todas as eras – e ninguém, ao ler as insurreições contra Nero ou Filipe II, é tão seduzido por sistemas de partido que não deseje o sucesso da empreitada nem elogie os agentes. Até nosso alto partido monárquico, apesar de sua sublime teoria, é forçado em tais casos a julgar, sentir e aprovar em conformidade com o resto da humanidade.

3. Sendo a resistência, portanto, admitida em emergências extraordinárias, a questão entre bons raciocinadores só pode ser quanto ao grau de necessidade que pode justificar a resistência e torná-la legítima ou recomendável. E aqui tenho de confessar que sempre hei de me inclinar para o lado daqueles que têm bem estreito o laço da lealdade, e consideram uma infração a ela o último recurso em casos desesperados, quando o público está no mais alto perigo, por causa de violência e tirania. Pois além dos danos duma guerra civil, que comumente acompanham a insurreição, é certo que, quando uma disposição à rebelião aparece em meio a um povo, esta é uma das principais causas da tirania dos governantes, e forçam-nos a muitas medidas violentas que nunca teriam abraçado se todos tivessem se inclinado à submissão e à obediência. Assim, o tiranicídio ou assassínio, aprovado pelas máximas antigas, em vez de amedrontar tiranos e usurpadores, fizera-os dez vezes mais ferozes e inflexíveis; e é agora, com justeza, por isso, abolido pelas leis das nações, e universalmente condenado como método baixo e traiçoeiro de trazer à justiça esses perturbadores da sociedade.

4. Ademais, temos de considerar que, como a obediência é nosso dever no curso comum das coisas, tem de ser inculcado de modo principal, e nada pode ser mais prepóstero do que um cuidado ansioso e uma solicitude em enunciar todos os casos em que a resistência pode ser permitida. De maneira semelhante, embora um filósofo reconheça razoavelmente, no curso de um argumento, que as regras de justiça podem ser dispensadas em caso de necessidade urgente, o que deveríamos pensar de um pregador ou casuísta que fizesse do seu estudo principal descobrir tais casos e reforçá-los com toda a veemência do argumento e da eloquência? Não seria melhor empregado se inculcasse a doutrina geral do que em exibir as exceções particulares, as quais somos, talvez, um pouco inclinados demais a abraçar e estender por conta própria?

5. No entanto há duas razões que podem ser alegadas na defesa daquele partido entre nós que tem, com tanta indústria, propagado as máximas de resistência – máximas que, há de se confessar, são em geral tão perniciosas e tão destrutivas para a sociedade civil. A primeiraé que seus antagonistas, levando a doutrina da obediência ao ponto tão extravagante de não só não mencionar nunca as exceções em casos extraordinários (que podem, talvez, ser desculpáveis) como até positivamente excluí-los, tornou-se necessário insistir nessas exceções e defender os direitos da verdade e da liberdade injuriadas. A segunda e, talvez, a melhor razão, fundamenta-se na natureza da constituição britânica e na forma do governo.

6. É quase peculiar à nossa constituição estabelecer um primeiro magistrado com tanta preeminência e dignidade que, mesmo limitado pelas leis, está, de certa forma, no que concerne a sua pessoa, acima das leis, e não pode ser questionado nem punido por nenhuma injúria ou malfeito que possa cometer. Só seus ministros, ou aqueles que agem por sua comissão, são expostos à justiça; e enquanto o príncipe é atraído, pela perspectiva de segurança pessoal, a dar às leis seu curso livre, uma segurança igual é, de fato, obtida através da punição de infratores menores, e ao mesmo tempo evita-se uma guerra civil, a qual seria consequência infalível se a toda hora fosse feito um ataque diretamente contra o soberano. Mas ainda que a constituição preste essa salutar cortesia ao príncipe, nunca se pode com razoabilidade entender que, com essa máxima, determinou sua autodestruição ou estabeleceu uma submissão domada se ele proteger os ministros, perseverar na injustiça e usurpar todo o poder da república. De fato, este caso nunca se põe expressamente pelas leis, porque é impossível elas, no seu curso ordinário, proverem um remédio ou estabelecer algum magistrado com autoridade superior para disciplinar as exorbitâncias do príncipe. Mas como um direito sem remédio seria um absurdo, o remédio neste caso é aquele extraordinário da resistência, se as questões chegarem a tal extremo que a constituição só possa ser defendida assim. Portanto a resistência tem, é claro, de se tornar mais frequente no governo britânico do que em outros que são mais simples e consistem em menos partes e movimentos. Quando o rei é soberano absoluto, tem pouca tentação de cometer tirania tão descomunal que provoque com justeza uma rebelião – mas quando é limitado, sua ambição imprudente, sem nenhum grande vício, pode levá-lo a essa situação perigosa. Frequentemente se supõe que este tenha sido o caso de Carlos I[1]; e, se pudermos falar a verdade agora que as animosidades cessaram, este também foi o caso de Jaime II. Eram homens inofensivos, se não, em caráter privado, bons homens; mas, tendo incompreendido a natureza de nossa constituição e açambarcado todo o poder legislativo, tornou-se necessário opor-se-lhes com certa veemência, e até privar o último daquela autoridade que usara com tanta imprudência e indiscrição.

***
David Hume

[1] Tal foi o rei assassinado. À sua morte, estabeleceu-se a república, com Cromwell no poder.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.