Os Ajudantes II: Sara Ramo – Número 165 – 07/2018 – [62-64]

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1. Poderia então ser fornecida, num prólogo, a estrutura dos lugares escuros. Nela nunca se é e sempre se está. Isso pode ser melhor entendido nos seguintes termos: um ajudante não é solícito ou perigoso, ele estásolícito ou perigoso. O traje mostra bem o espírito do trânsito entre a solicitude e a periculosidade. Nos lugares escuros é imperioso portar uma fantasia, todos a usam, não importa qual seja, não importa quem seja. Neles se imagina sob intensas variações aquilo que se percebe habitualmente. Em suma, tudo é familiar e tudo é diferente.

2. A chegada num lugar desse tipo costuma se dar por causa da perseguição a alguma coisa que foge, que não quer ser alcançada de pronto. Isso quer dizer que ninguém entra num lugar escuro, mas se descobre nele. Por esse motivo se pode dizer que aquele que anda atrás de alguma coisa, essa que foge, de modo lúdico ou não, está distraído com o seu afazer. A coisa não precisa necessariamente fugir assustada. Ela pode até mesmo nos olhar corajosamente nos olhos. Assim se deduz que foi algo que saiu do escuro. É impossível determinar onde especificamente acaba a rotina, o claro, e começa essa outra coisa, mas se pode perceber quando a transição já foi feita.

3. Ora, é da estrutura do lugar escuro, que aquele que passa a habitar dentro dele, tendo sido encaminhado distraído por ter perseguido algo, passa a lá estar por condenação e não por vontade. Se tivéssemos alguma preocupação moral, poderíamos concluir que não é preciso ter feito algo errado. O condenado, todavia, sempre acha que tem culpa. O seu equívoco corriqueiro é julgar que o mal foi praticado durante a infância e que por isso mesmo ele não lembra. A relação de culpa se torna ainda mais interessante, porque o escuro não é um lugar ruim. Trata-se de um bairro perigoso, por assim dizer, mas muito divertido. A condenação, por outro lado, torna explícita a vulnerável condição de quem perseguia. As duas sensações são conciliadas: a culpa pela condenação e a tentação de ficar em silêncio por se sentir premiado. O silêncio, próprio a quem se diverte com o que não deveria, é uma constante.

4. O lugar escuro tem atmosfera variável / rapidamente modificável.

5. A estrutura da qual falamos não exclui a pluralidade dos mundos, mas ela se afirma como um mundo inteiro. Porque é uma condenação, impõe-se como se fosse o mundo todo. Sem qualquer efeito de perspectiva, nele podem ser realizadas imensas travessias.

6. Não é vedado que se compartilhe o escuro / resta claro, porém, que não é atividade muito simples, posto favorecida se partilhada com alguém que já esteja morto. Digamos de outra forma, é simples compartilhar o escuro com alguém morto, o difícil é receber um outro que esteja vivo, um novo vivo. No fim, no mais das vezes, o terceiro apenas assiste, atônito, sem saber o que que passa.

7. É também da estrutura: o tempo lhe passa de modo particular. Afora isso, é sempre da mesma forma, o tempo passa mais rápido embora pareça mais devagar.

8. Como o escuro é repleto de ajudantes, só se fica realmente sozinho, se se estiver muito, mas muito solitário.

9. O lugar escuro é ocupado por criaturas. Elas seguem a forma e o rosto humanos. Pode ser que cheguem a falar, por assim dizer. Por assim dizer porque não se pode precisar se na verdade não são apenas ruídos. Mas como o escuro sempre esteve aí, não é estranho imaginar que nós imitamos o rosto das criaturas e que na verdade a nossa voz é o ruído e não a delas.

10. Uma criatura não é um daimon. Ela não nos acompanha. Existe, na verdade, uma relação de preenchimento. As criaturas preenchem o lugar escuro. Não se pode dizer que alguém tem uma criatura. Apenas se pode dizer, quando for o caso, que muitas criaturas pertencem ao espaço que circunda alguém.

11. Dizer que a criatura é derivada de uma postura animista não muda muita coisa. A convenção de que o movimento se inicia em nós é meramente especulativa e egocêntrica. Pode ser que exista uma contemporaneidade entre nós e o escuro e que na verdade sejamos os animados e não os animadores. Da mesma forma, seria muito rude receber o chamado de uma voz e simplesmente não responder. O pampsiquismo parece um excesso: um animismo bem disposto parece ser mais à altura do problema.

12. Os ajudantes circulam.

13. Nós e eles somos facilmente persuadidos da ação da magia. Isso quer dizer que facilmente entramos em acordo sobre as formas como seremos amedrontados. Dessa maneira, no que concerne ao governo da situação, não importa muito quem manda e quem obedece, mas a forma como isso se dá. Não é preciso recusar um comando só porque ele foi feito à partir do escuro.

14. As criaturas só resistem para poderem sentir a aproximação do momento em que poderão se entregar à bagunça. Há dois tipo de bagunça: a longa e a curta. Há quem defenda que a bagunça boa é a curta, mas posto assim, como um universal, o enunciado é plenamente discutível.

15. A nossa relação com os ajudantes, como em toda relação política, é imensamente ambivalente. Tudo nos leva a crer que também a deles conosco. Nós os amamos e odiamos ao mesmo tempo. A predominância eventual de um afeto sobre o outro é meramente derivada da dinâmica, não altera esse fato. A paciência sempre prova verdadeiro tal elemento estrutural.

16. Nós punimos cruelmente as criaturas. Elas fazem o mesmo conosco. Essa não é bem uma justificativa válida nem para nós e nem para elas. Pode ser que seja dessa forma, porque assim agindo tornamos a relação mais previsível e resolvemos momentaneamente a ambivalência colocando no lugar dela a ambiguidade. Ao invés de amarmos e odiarmos ao mesmo tempo, colocamo-nos sob a falsa certeza de que é necessário não amar a quem odiamos.

17. As transgressões, de ambas as partes, são motivadas pelo sentimento de não se sentir suficientemente amado. Pode-se imaginar a agonia produzida pela busca por uma criatura que nos ame de verdade.18. A crueldade pode resolver por um instante a ambivalência, mas ela não dissolve o desejo inconsciente de ser devorado. Os ajudantes parecem querer que sumamos da mesma forma que nós a eles.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.