Bandido bom é bandido morto? – Número 151 – 07/2017 – [65-67]

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Dividir o mundo entre nós e os inimigos gera medo e justifica agressão e guerra. Essas guerras impedem o desenvolvimento da democracia. Os cineastas podem usar suas câmeras para mostrar qualidades humanas, romper estereótipos e criar empatia. Nós precisamos hoje de empatia mais do que nunca.

Asghar Farhadi, na entrega do Oscar 2017

A pesquisa Olho por olho? do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania trouxe números reveladores, e algumas vezes alarmantes sobre questões concernentes a Segurança Pública no estado do Rio de Janeiro. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública a polícia no Brasil matou em 2015 3.320 pessoas, uma média de 9 por dia. Esse índice pode representar apenas um reflexo que a polícia tem de uma população que apoia práticas cada vez mais punitivas e comumente usam bordões como: “bandido bom é bandido morto”, ou, “direitos humanos para humanos direitos”. Esse pensamento justiceiro permeia a mente de muitos brasileiros, fazendo inclusive com que estes aceitem práticas violentas de autoridades policiais ou não.

A pesquisa constatou que há um nível de desconfiança muito grande nas Instituições Públicas. De acordo com as respostas dos entrevistados, a Polícia Militar tem um alto índice de desconfiança, perdendo apenas para a Justiça, que teve os piores números. Logo, o carioca desconfia das instituições diretamente ligadas ao tema da segurança pública.

Quando a população não confia ou discorda dos métodos aplicados pela Justiça, torna-se difícil criar diálogos produtivos acerca dos direitos humanos. Embora a população carioca concorde que a polícia mata demais (62%) e que ela age mais brutalmente na favela do que no asfalto, isso não significa que apoie a defesa dos direitos humanos. Curiosamente, há uma rejeição ao tema, e o pensamento de que ele é incompatível com o combate a criminalidade. 73% acreditam que os direitos humanos atrapalham esse combate, e mais da metade (56%) acredita que os direitos humanos só servem para bandidos, e alguns chegam a declarar que bandidos deveriam ser privados de qualquer direito.

Mesmo com números expressivos como os citados acima, 40,2% dos entrevistados rejeitam o linchamento, a pena de morte, e a frase “bandido bom é bandido morto”. Essa postura, não significa necessariamente que tais pessoas apoiam a luta por direitos humanos, mesmo assim representa que parte dos entrevistados entendem que tais práticas não solucionam o problema da segurança pública no Rio de Janeiro. Lembrando que este número refere-se aos que discordam dos três itens citados combinados. Mas há os que discordem de um, concordem com dois e etc.

Ao estudar mais a fundo o perfil das pessoas que discordam do BBBM (Bandido bom é bandido morto), foi encontrado o fator que mais me despertou atenção. O fator religião foi considerado como item importante na descrição dos números. E o fato de frequentar assiduamente cultos e atividades religiosas também teve impacto na pesquisa.

Evangélicos apoiam menos a frase, que católicos e adeptos de religiões afrobrasileiras. E quanto maior a assiduidade nos cultos, maior o número de pessoas que rejeitam o BBBM. Dos que participam diariamente 73% dos evangélicos discordam da frase, e dos que não participam de culto, 51% rejeitam. Ou seja, dentre todos os números pesquisados o grupo que rejeita BBBM em maior número é o de evangélicos assíduos nas programações religiosas, deixando de lado a ideia de que a religião é um atraso para a sociedade.

Como evangélica – termo que raramente utilizo para me referir a mim mesma, prefiro protestante, que julgo com conotação menos negativa – fiquei surpresa. Deixe-me explicar, há uma distancia abissal entre o evangelho pregado em muitas igrejas hoje, e o Evangelho de Cristo, que pode ser encontrado na Bíblia. O evangelho das mídias e das mega igrejas tem ensinado o grande valor do homem. O quanto nós somos importantes e merecemos alcançar o melhor, sempre. O quanto devemos nos importar com tudo que diz respeito a nós mesmos, e ao crescimento da igreja, como instituição. Esse tipo de evangelho tem criado cristãos que em nada se parecem com Cristo. Pessoas que são soberbas, não conhecem o altruísmo e não tem preocupação com os outros.

Em contrapartida, o evangelho pregado por Cristo nos ensina que não somos melhores que ninguém, inclusive que somos pecadores, ou seja, propensos e inclinados a cometer falhas das mais variadas. Ensina que devemos amar ao próximo como amamos a nós mesmos, e que antes de julgar, devemos encontrar em nós nossos erros. Este não é um evangelho de facilidades, mas um evangelho de amor, em meio a um contexto de indiferença.

Jesus foi pobre e andou com os miseráveis, com os excluídos e com a minoria, mesmo com tantos preconceitos.  Foi severamente perseguido, humilhado publicamente, preso mesmo sem provas contundentes e morto através da crucificação. Mesmo sem ser bandido, foi crucificado ao lado de dois, e solicito quando um deles lhe pediu por misericórdia (Lucas 23.39-43). Jesus não apenas ensinou, como foi exemplo vivo de que misericórdia e perdão devem ser nossos aliados na vida, e acima de tudo, o amor.

Quando entendemos que somos humanos, passíveis de erros e acertos, quando eu entendo que esse Jesus me ama mesmo com meus inúmeros defeitos, é impossível acreditar que alguém mereça ser morto por um crime. Quando eu olho pra mim, e enxergo toda potencialidade de mal que há em mim, e que mesmo assim eu tive oportunidades, não posso afirmar que não acredito na regeneração, pois todo cristão tem o dever de acreditar.

Essa pesquisa traz um alento. A ideia de que  alguns cristãos conseguiram entender os ensinamentos de Cristo, mesmo com tanta informação errada sendo pregada e difundida. Saber que 73% dos que frequentam assiduamente um culto rejeitam a ideia do BBBM mostra que oposto ao que pensam, o evangelho nunca foi retrógrado. Ao contrário, o Jesus descrito acima era  um revolucionário que mudou as diretrizes do mundo através do amor e de um olhar pessoal de misericórdia por aqueles que mais eram julgados.

Dentro da pesquisa há também muitos números preocupantes. Quando os entrevistados foram indagados acerca do que leva alguém ingressar no universo do crime, 49% apontaram questões que envolvem a natureza individual. Índole, escolha e falta de caráter foram apenas alguns dos motivos levantados. Fica evidente que há um distanciamento entre nós “homens de bem” dos “bandidos” quando há a crença de que apenas eles possuem uma inclinação ao mal. Quando na  verdade todos estamos sujeitos aos mais variáveis erros, mas todos nós, inclusive os “bandidos” devem ter a chance de tentar novamente.

As estatísticas nos apontam números de guerra, e os homicídios crescem, aumentando a banalização da morte e a indiferença a ela. Mesmo não defendendo o BBBM, muitos seguem o cotidiano sem se assustar com esses índices. A forma como o crime é combatido no Brasil é atroz, a forma como vive a população carcerária é desumana, sem mencionar a falta de acesso a educação nos lugares mais periféricos. A violência está natural. E muitos que defendem morte aos bandidos, não estão lutando por justiça, apenas estão indiferentes ao valor da vida humana.

Depois de acompanhar todas as informações levantadas pela pesquisa, é notório que os desafios na área de Segurança pública são imensos. Há uma mentalidade formada, que não é simples nem rápido para ser mudada. Porém, em meio a esse cenário complexo, pode-se vislumbrar também caminhos para que haja mudança, mesmo que lenta. Como na fala do cineasta Asghar Farhadi, presente na pesquisa, nos dividir só gera medo, e o medo gera guerras. Devemos ter empatia para com o outro. Desconstruir estereótipos, dialogar, são maneiras de entender que por mais diferente que lhe pareça, há algo no outro que pode lhe acrescentar.

Um olhar com amor, com empatia e com compaixão, pode trazer à tona um novo mundo de descobertas. Humanizar aquele que julgamos monstros, mudar a nossa forma de enxergar o outro, pode fazer uma grande diferença na vida de alguém. Bandido bom não é bandido morto. É bandido que se recupera, recomeça a sua vida, e é reintegrado com sucesso à sociedade.

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Nemayda Furtado

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.