Despindo as Fantasias da ‘terra que a todos seduz’ – Número 144 – 03/2017 – [23-26]

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Rio de Janeiro é um clichê global poderoso que está em xeque. A cidade rebelou-se contra seu retrato. (…) O Rio atravessa um momento doloroso e fecundo de perigo e reinvenção. A estação de fúrias e tempestades não anula o mar, o sol, o esplendor da Mata Atlântica e a dança infinita, mas estilhaça ilusões e incinera a pachorra pusilânime dos cartões postais (Soares, 2015, p.1).

Com este trecho Luiz Eduardo Soares inicia seu capítulo introdutório de “Rio: Histórias de Vida e de Morte”, publicado pela Companhia das Letras em 2015. Através de uma linguagem direta o autor nos cativa a adentrar com particular interesse nos nove contos por ele ofertados, nos quais mescla sua trajetória de vida pessoal com a política brasileira, principalmente a fluminense. Compõe, entre os relatos, um olhar ora de espectador, ora de ator político dos acontecimentos. Esta construção harmônica atrai o leitor e o faz de imediato simpatizar com a interpretação do mundo cotidiano de Luiz Eduardo, revelado pela ótica tanto do ex-secretário nacional de segurança, quanto pelos olhos deste ainda guri, advindo de família conservadora nos aterradores anos 1960.

Somos absorvidos pelas vivências duras dos seus distintos personagens reais, cujos habitats foram aspirados pela violência que engloba a cidade que risivelmente fora apelidada de maravilhosa pelo maranhense Coelho Neto no início do século XX. Durante toda a narrativa, o desbunde da beleza carioca é confrontado principalmente pela ação furiosa da polícia do estado sobre os moradores da cidade. As histórias se remetem desde aos idos anos 1960 até as recentes manifestações da primavera brasileira, em junho de 2013.

O embate entre os atributos da cidade e as formas arrasadoras com que trata sua população – principalmente a oriunda das comunidades carentes – é apresentado, e a sensação de inquietude diária, típica do carioca, é revelada através dos inúmeros abusos sofridos e relatados na obra. Um dos aspectos mais atrozes narrados trata-se da descrença na garantia dos direitos dos cidadãos. Os episódios descritos se referem a uma gama de acontecimentos brutais, dentre eles chacinas, perseguições e primordialmente violências sofridas nas suas mais variadas formas: racial, doméstica, policial, institucional, do Estado, verbal, nos presídios, ditatorial, miliciana, psicológica e física.

O fio condutor da narrativa é a presença imperativa da violência através dos agentes públicos ou não-públicos, tendo, por vezes, soldados, policiais, políticos, milicianos e pastores como algozes. Fica a impressão de que os cidadãos fluminenses são diariamente fagocitados por esta dinâmica dolorosa e desumana que parece estar enraizada desde a construção originária da cidade e que só poderá ser transformada através de múltiplas reformas institucionais – defendidas por Luiz Eduardo Soares em diversas falas para além das deste livro, sendo a mais emblemática a luta pela desmilitarização da polícia, e também pela ação individual de cada sujeito.

Luiz Eduardo, que tem amplo conhecimento teórico e prático sobre segurança pública, traça no livro uma breve trajetória da instituição policial no Brasil. Desde o século XIX, esta acossa e pune grupos mais ou menos definidos, que transitam do negro escravizado às populações mais pobres. Com o fim da escravidão, passando para os opositores do regime em tempos de ditadura e retornando, enfim, às perseguições contra as parcelas mais pobres da população, sobretudo a negra e moradora da periferia, no período atual. Como destacado no trecho do autor a seguir:

Até fins do século XIX, as vítimas eram os escravos. Depois do fim da escravidão, em 1888, passaram a ser os pobres, sobretudo negros. Finalmente, após o golpe de 1964 e até o fim da ditadura, entre os alvos da violência estatal incluíram-se os opositores do regime, opção que estendeu às camadas médias da população o tratamento brutal. Com a redemocratização, a história retomou o velho trilho e, a despeito de mudanças significativas, as práticas cruéis voltaram a apontar seu crivo seletivo para pobres e negros, moradores de favelas e periferias. Os benefícios do Estado democrático de direito ainda não chegaram à base da pirâmide social (Ibidem, p.165)

Existe ainda, para além da perpetuação dos exercícios autoritários, um tipo de especialização das forças armadas em execuções e na dura repressão política. Os agentes foram capazes de manter essas práticas ao trabalharem na tortura ou no crime como negócio e se embrenharam na contravenção através do jogo do bicho, tráfico (de armas e drogas) e das atividades desempenhadas pelas milícias. Dessa maneira, estes agentes da ditadura perpetuaram suas práticas persecutórias e brutais nestas novas instâncias. Passaram de torturadores da ditadura a contraventores do Estado democrático, trajetória explícita na obra “Os porões da contravenção” de Aloy Jupiara e Chico Otávio, que dialoga com o raciocínio desempenhado por Luiz Eduardo. A análise de Soares também desvela que a violência carioca se configura por meio de outras variadas instituições, sejam elas estatais, como gabinetes políticos, e unidades de polícia, e também entidades privadas.

O capítulo que remete a Dulce Pandolfi se impõe como o grande elo que costura os contos do autor. Neste, Luiz Eduardo apresenta os rituais de tortura sofridos durante a ditadura pela historiadora que, encarada como figura subversiva, foi perseguida pelos agentes policiais e presa em 1970. Sua desventura nos braços repressores do Estado autoritário durou mais de um ano, lhe deixando sequelas irreparáveis. Todavia, mesmo com o fim do regime autoritário, não foram extinguidas as práticas de tortura e desaparecimento, nos fazendo encarar o espectro de desumanização que estes episódios mantêm vivo sobre a instituição policial até a atualidade. Este espectro ainda aterroriza o Estado democrático de direito, principalmente dentro das favelas e dos presídios brasileiros.

“A história de Dulce mostra a que preço a ordem tem sido imposta para permitir o progresso, tal como definem seus beneficiários” (Ibidem, p.189). Talvez essa seja a frase mais emblemática do livro, que sintetiza todos os contos aqui relatados. A biografia de Dulce, assim como as demais, nos apresenta como o Estado brasileiro, tão desigual, lança mão da escusa do progresso, da ordem e do desenvolvimento para embrutecer suas instituições, proporcionando aos seus habitantes, histórias de vida e de morte, ilustradas neste livro por meio da narrativa da cidade do Rio de Janeiro.

A esperança do autor parece vir dos jovens que de tempos em tempos criam, seja na ditadura ou através das manifestações, resistências e embates políticos que sacodem e confrontam diretamente o poder autoritário exercido pelo Estado. Inúmeros são os casos relatados por Luiz Eduardo sobre processos de marginalização de populares e a contrapartida de enfrentamento destes, que resulta, se não em ganhos diretos, numa atmosfera indócil da população carioca frente aos abusos sofridos. As violências sofridas não parecem mudar e continuam sendo perpetuas uma série de chacinas e abusos de poder, que já não encontram, contudo, uma multidão apática, mas sim moradores e jovens dispostos ao enfrentamento.

Embora não destacado no livro, por não fazer parte do seu recorte cronológico, para além dos jovens resistentes na ditadura, nas favelas e nas manifestações de junho de 2013, temos hoje cidadãos perseguidos – e alguns presos políticos – pelo Estado democrático de direito em função dos eventos internacionais sediados no país. Foram postas em pauta e aprovadas leis em função da realização da Copa do Mundo FIFA e os jogos olímpicos, e tramita aceleradamente o projeto de Lei Antiterrorismo, devido à pressão internacional para que o Brasil tivesse um código legal para lidar com práticas enquadradas nesta categoria. O que estes casos supracitados têm em comum? Todos – manifestantes, policiais, perseguidos políticos, diretor de hospital na baixada, jovens que se vinculam com o tráfico – estão imbricados numa cidade onde a única resposta recebida aos desafios e dilemas urbanos parece ser a forma autoritária e violenta com que o sistema agride os sujeitos. Estes indivíduos, por sua vez, traçam suas trajetórias particulares a partir de suas capacidades de se sujeitar ou afrontar o que lhes é imposto.

O texto nos indica que a saída almejada pelo sociólogo está atrelada às condutas particulares dos indivíduos e seus mecanismos de enfrentamento e resistência, que são os responsáveis por empoderar os cariocas e lhes dar a capacidade de serem finalmente, protagonistas potentes dos rumos da sua cidade. Tendo em vista os acontecimentos contemporâneos à publicação deste artigo, a ocupação das escolas estaduais realizadas por estudantes em 2016 parece corroborar a hipótese de Luiz Eduardo.

A cidade maravilhosa, tem, portanto, sua rotina diária atravessada por esses elementos dicotômicos e entrelaçados que são sua violência e beleza. Estes se comportam, no Rio de Janeiro, como a paixão na letra de Chico Buarque, tratando-se de um imenso fole de acordeão, que desatina os corações ao ora brincar de inflá-los e outras de esmagá-los. O carioca se comportaria, então, como um indivíduo que adapta sua vida entre o deslumbramento que o detém, ao enxergar a beleza extraordinária da sua cidade, e a violência urbana sistêmica e assombrosa, que o avilta todos os dias.

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Tamires Alves

HOLLANDA, Chico B. Tipo Um Baião. 2011.
JUPIARA, Aloy. Otávio, Chico. Os Porões da Contravenção. Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. Record, 2015.
NETO, Henrique M C. A Cidade Maravilhosa, contos. 1928.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.